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Do etnocentrismo à alteridade:  A ficção científica de Gabriel Tarde e Darcy Ribeiro

Edgar Indalecio Smaniotto
Mestre e Doutor em Ciências Sociais - Unesp/Marília

Fragmentos de história futura, de Gabriel Tarde, e Yvy-marãen: a terra sem males, ano 2997, de Darcy Ribeiro são duas obras de ficção científica que descrevem diferentes futuros utópicos. Ambas revelam muito do conhecimento das ciências sociais da época em que foram escritas, e como estes conhecimentos balizam nossa visão de sociedade. Afinal quando um autor escreve uma utopia, em geral ela faz um contraste entre a sociedade que vive e aquela imaginada, revelando as reformas que ele espera ver concretizadas em sua sociedade.


Não é uma surpresa que cientistas sociais venham também a se utilizar de narrativas de ficção científica para descrever sociedades utópicas, apresentando novas configurações sociais. Mais que um exercício de futurologia Fragmentos de história futura e Yvy-marãen: a terra sem males, ano 2997 revelam os anseios utópicos de épocas distintas, bem como a própria evolução da antropologia enquanto uma ciência da alteridade.
O francês Gabriel Tarde (1843-1904) se formou em direito, foi magistrado, diretor do Departamento de Estatística Criminal e posteriormente professor no Collège de France. É um dos responsáveis pelo estabelecimento de uma “psicologia social”, que está bastante presente em seu livro de ficção científica Fragmentos de história futura.
Publicado apenas em 1896, apesar de iniciado em 1870, Fragmentos é um meio caminho entre a utopia filosófica, ao estilo de Platão, Francis Bacon e Thomas More, e a ficção científica propriamente dita de um Júlio Verne ou H.G. Wells. Este inclusive prefacia a edição inglesa de 1904, prefácio este que a editora brasileira Cultura e Barbárie, acertadamente também traduziu para a edição nacional, que aqui comentamos.
De início Gabriel Tarde narra os grandes “progressos” que a sociedade humana irá atingir no decorrer dos próximos séculos, inclusive o estabelecimento de uma única língua, improvavelmente o grego. Já aqui, o autor deixa clara sua concepção de filosofia, sendo que seu livro será em grande parte uma apologia das ideias platônicas como observadas na República.
O autor, em diversos momentos, comenta a superioridade da cultura grega antiga sobre a cultura de sua época ou futura: “para a infelicidade dos jovens escritores, antigos poetas, mortos havia séculos, como Homero, Sófocles, Eurípides, tinham voltado à vida, cem vezes mais exuberantes do que no próprio tempo de Péricles” (2014, n.p.).
É também uma sociedade sem miséria e higienizada, revelando aqui o comprometimento do autor com as teses eugenistas de sua época. A narrativa prossegue com a apresentação de aspectos sociais, políticos e tecnológicos da sociedade futura.
Tudo muda, entretanto, a partir do ano 2489, quando o Sol começa a se apagar, seguindo-se uma catástrofe humanitária sem precedentes: bilhões morrem, uns poucos sobreviventes se deslocam para as regiões quentes do Saara e da Arábia, mas mesmo esses estão ameaçados. Até que surge um herói, de nome grego, Milcíades, que propõe o deslocamento da sociedade humana para o interior da Terra, opção que é logo tida como única forma de sobrevivência da espécie humana.
O livro prossegue narrando a vida no subsolo, e é aqui que Gabriel Tarde faz uma grande inversão: para o autor, o que poderia ser a destruição da humanidade será a construção de uma utopia. Em A máquina do tempo, de H.G. Wells, ao se deslocar para os subterrâneos, os humanos acabam perdendo sua humanidade, se tornando os morlocks; aqui, por sua vez, Tarde considera esse deslocamento o maior benefício para a humanidade.
Habitando cavernas, os humanos estão livres das intempéries, de guerras, de doenças (os micro-organismos foram congelados), da luz solar - substituída por luz artificial, tida como mais eficiente - e se alimentam dos inúmeros animais e plantas congeladas instantaneamente quando o Sol se apagou. A superfície do planeta torna-se uma gigantesca geladeira, de onde são colhidos suprimentos.
A química e a psicologia se tornam as ciências mais desenvolvidas, a primeira por possibilitar a criação de materiais a partir do minério, e a segunda como psicologia social, importante para a adaptação do ser humano às novas condições. A vida transcorre quase toda dedicada à ciência e às artes, e o narrador, que narra esse futuro a partir do ano 596 da Salvação, quando a Humanidade foi forçada a se tornar “intraplanetária”, reconhece que a vida no interior da Terra seria mais natural que em seu exterior. Chega a cogitar que devam existir outras humanidades, em outros mundos, que certamente optaram pela vida no interior da Terra também.
Gabriel Tarde postula que a fauna e a flora seriam entraves ao progresso, sendo o reino mineral o verdadeiro elemento de progresso da Humanidade. Critica a divisão social e enaltece uma sociedade sem camponeses e operários, onde todos se dedicam ao trabalho intelectual. Uma sociedade com “um mínimo de trabalho utilitário e um máximo de trabalho estético” (2014, n.p.).
Estamos diante de uma sociedade higienizada e eugenista, onde os nascimentos são controlados, e apenas os “gênios” podem ter filhos, uma humanidade com cerca de 50 milhões de habitantes, governada por sábios (influência clara de Platão) e que possui aversão ao “outro”. Em um momento, encontram uma tribo subterrânea de chineses, que teriam tido a ideia de também se refugiarem no subsolo. Aqui, o autor deixa claros seus preconceitos: os chineses são descritos como bárbaros que não se preocupam com o desenvolvimento científico, violentos e canibais (os ocidentais se alimentavam apenas de animais e vegetais congelados, enquanto os chineses, de seus compatriotas congelados). Após um breve contato, em que se propõe escravizar ou mesmo exterminar os chineses, decide isolá-los, por ser impossível lhes ensinar algo. É uma utopia eugenista, própria de um certo pensamento do século XIX, baseado tanto no positivismo como nas ideias de Francis Galton.

Na utopia de Gabriel Tarde não existe espaço para a alteridade, sua visão, a partir de uma ciência social construída no século XIX na Europa, é etnocêntrica, racista e eugenista. Uma visão que podemos contrastar com outra utopia, esta escrita pelo cientista social brasileiro Darcy Ribeiro, a partir de uma visão de alteridade, uma utopia tropical, libertária, legitimamente brasileira, que se propõe não a exclusão, mas a inclusão, uma outra forma de pensar as relações de alteridade, a partir da perspectiva de uma ciência social do Sul, do colonizado, e não do colonizador.
Darcy Ribeiro foi um dos mais importantes antropólogos brasileiros, dedicado a pensar o Brasil. Ao longo de sua vida, publicou obras seminais para entender o povo brasileiro, a América Latina e o processo civilizatório da Humanidade. Foi etnólogo e indigenista, educador, senador, ministro em duas ocasiões (da Casa Civil e da Educação), senador e reitor, além de romancista. Imprescindível pensador brasileiro, Darcy Ribeiro também se aventurou pela ficção científica: Yvy-marãen: a terra sem males, ano 2997 é a descrição de uma utopia sul-americana.
Como o próprio narrador (um escandinavo) expõe no texto, “Yvy-marãen” significa “Terra sem Males” na língua tupi-guarani. Darcy Ribeiro pretende justamente expor ao leitor a possibilidade de que a América do Sul possa se tornar uma verdadeira utopia, desde que seus elementos culturais e naturais estejam em harmonia.
Yvy-marãen é uma “macronação” que ocupa toda a América do Sul, habitada pelo povo mestiço dos ivynos, que se originaram a partir dos habitantes das diversas nações sul-americanas. São ao todo 2 bilhões de seres humanos, neolatinos, frutos da Península Ibérica.
O narrador, que é escandinavo, é acompanhado de um chinês, ambos turistas. Assim como nos modernos canais do YouTube, os turistas comentam para seu “público cibernético” as principais características naturais, econômicas e sociais de cada região dessa grande nação sul-americana que visitam. Na região conhecida como “Amazônidas”, encontra-se a floresta completamente preservada, sendo que a agricultura e a criação de animais são feitas de forma a não prejudicar a natureza — o que não inviabiliza que seus habitantes possuam a mais alta tecnologia, como aeroportos capazes de receber “grandes aviões intercontinentais”.
O “Incário” é a região dos Andes do antigo Império Inca, e os turistas narram as particularidades dessa região e seu povo, que se dedica com entusiasmo ao estudo do Oceano Pacífico. Então os turistas adentram a região do Pantanal, um centro internacional de turismo fotográfico, onde “bichos e homens seguem o ritmo das águas” (2014, n.p.). Já na região dos “sulinos”, presenciamos tanto a paixão pela pesca quanto pela matemática.
Em sua excursão por Yvy-marãen, os turistas entram em contato com os “beninos”, seres extraterrestres de pura energia e mente coletiva, que ficaram curiosos quanto aos cogumelos produzidos pelos uruguaios, já que se pareciam com uma inteligência extraterrestre conhecida por eles, de outro mundo. Chegam então a “Brasília”, capital de Yvy-marãen, que alimenta o mundo graças à transformação do cerrado no maior campo agrícola existente. Além disso, é o território que produz “combustível solar”, substituindo o carvão e o petróleo.
O “Rio” é a “terra que sabe cuidar de turistas”, enquanto o território da “Bahia” é ocupado por quem sabe viver, e é para lá que vão multidões de turistas aprender a “ser gente”. As “Praias Mornas”, que eram o antigo Nordeste, são habitadas por gente com velhíssimas tradições.
Por fim, na “Terra sem males” de Darcy Ribeiro, cada habitante se comunica instantaneamente por um comunicador de pulso, existe uma democracia direta, e a criatividade é incentivada, bem como novas formas de relacionamentos e organizações sociais. O paraíso tropical de Darcy Ribeiro é uma terra de liberdade e miscigenação.

Outro espanto é a modernidade dessa civilização tropical, assentada na ciência mais avançada e na tecnologia de ponta, mas capaz de valorizar profundamente toda nossa herança humanística. Eles formam hoje, em 2997, um corpo de dois bilhões de gentes, uma das parcelas maiores da humanidade. Nela totalmente incorporada, orgulhosa tanto de sua singularidade como de sua capacidade de convivência alegre com todos os homens da Terra (RIBEIRO, 2008, p. 56).

Enquanto para Gabriel Tarde a humanidade adota o grego como única língua, demostrando a intenção do autor de postular a superioridade da cultura grega, Darcy Ribeiro postula uma “língua artificial” que possibilita aos computadores “traduzir, em tempo real, qualquer língua a qualquer outra” (2008, p. 44)).Preserva-se a diversidade das línguas humanas, mas a comunicação torna-se também eficiente, a tecnologia está a serviço da diversidade e da alteridade, não o contrário.
A utopia de Darcy Ribeiro contrasta com a proposta por Gabriel Tarde; para o francês, o outro, caracterizado pelos chineses, são bárbaros e devem ser afastados, na melhor das opções; já para o brasileiro, as relações de alteridade, entre eu e o outro, são de compreensão e trocas culturais. Seja o outro o povo mestiço de “Yvy-marãen”, os extraterrestres “beninos” ou os turistas (escandinavo e chinês), as relações são de alteridade.
Ao ler essas duas propostas de ficção científica, podemos notar o quanto as ciências sociais progrediram no entendimento do ser humano e na compreensão das relações de alteridade. Ao comparamos as visões de futuro de Gabriel Tarde e Darcy Ribeiro, somos capazes de compreender a mudança que houve dentro das próprias ciências sociais. O outro não é mais um objeto de curiosidade museológica, isso na melhor das opções, mas sim, parte de uma cultura e individualidade de igual importância. Não existe uma hierarquia cultural ou “civilizacional”, mas sim diferentes formas de ser humano.
A utopia de Gabriel Tarde convida a humanidade para viver no centro da Terra, isolada, totalmente cercada, em que a própria Terra se torna um muro de rochas intransponível. Em nossa época Fragmentos de história futura só pode ser lido como uma distopia!
Já a utopia de Darcy Ribeiro convida a humanidade para o ar livre, para uma Terra vasta, onde a diferença impera, tanto geográfica, quanto de povos e línguas, não existem muros, é um espaço aberto ao outro, inclusive o outro de outros mundos. Yvy-marãen: A terra sem males, ano 2997 é a utopia que ainda almejamos, que devemos e queremos construir.

Referências bibliográficas

RIBEIRO, Darcy. Yvy-marãen: A Terra sem Males, ano 2997. In: ______. Utopia Brasil. São Paulo: Hedra: 2008, 37-58.
TARDE, Gabriel. Fragmento de história futura. Desterro: Cultura e Barbárie, 2014. [Edição em e-book - não paginado].