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SOLIDÃO NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE

 

ÍCARO SOUZA FARIAS

Mestre em filosofia – UFF

Doutorando em Filosofia – UFRJ

Ó solidão! Solidão, pátria minha! Quão terna e bem-aventurada me fala a tua voz!

Nós não interrogamos um ao outro, não reclamos um ao outro, passamos, um ao outro aberto, por portas abertas.

Pois contigo tudo é aberto e claro; e mesmo as horas correm aqui com pés mais leves [...] (NIETZSCHE, 2011, p. 176).

 

Solidão como medida profilática

A solidão é um tema caro a Nietzsche. São muitas as passagens que o filósofo dedica ao mencionado tema em sua obra. As abordagens acerca da temática não são estanques, não encerram um sentido único ao longo de seus escritos; pelo contrário, sofrem modificações. Seria o filósofo do martelo entusiasta do isolamento em quaisquer circunstâncias? Todo ato de isolar-se lhe parece legítimo? Estar só resulta necessariamente no apartamento permanente das relações humanas? Ao longo do texto procurarei elucidar os significados distintos que a solidão ocupa na filosofia de Nietzsche.

O ser humano opta pela solidão por razões distintas. Por exemplo: A) Há pessoas que se isolam provisoriamente (ou permanentemente) por conta de traumas que decorrem das relações humanas; B) outras se isolam com a finalidade de desenvolver-se asceticamente, privando-se das interferências do falatório e da convivência com outras pessoas para aperfeiçoar seu desenvolvimento espiritual conforme sua crença; C) há ainda aquelas que optam pelo isolamento como uma medida de recomposição de forças, de reorganização criativa para fins de amadurecimento subjetivo. Parece-me que as duas primeiras opções são mais comumente aceitas e praticadas, enquanto a terceira é mais frequentemente negligenciada. Talvez porque a sociedade na qual vivemos tende a adjetivar negativamente a solidão de maneira geral, associando-a a infelicidade, a depressão e a incapacidade de socialização.

A sociedade atual acossa o indivíduo persuadindo-o a crer que é sempre necessário interagir com outras pessoas, seja pessoalmente ou por meio das redes sociais. É necessário construir uma imagem (um perfil) que seja palatável, que seja objeto de admiração coletiva. É preciso ser visto, é necessário ser público, é indispensável não “sumir” por muito tempo. Nesse contexto, o isolamento, a reclusão voluntária parece indicar um estado mórbido de tristeza. Mas o que pensa Nietzsche a respeito da solidão? Como já aclarado,estar só não é uma questão lateral para Nietzsche, é na verdade um tema fundamental em seu pensamento. Para ele, a solidão pode ter motivações legítimas, ou não, a depender de seu propósito. Em Aurora (obra de 1881) Nietzsche escreve,

 

Renunciar ao mundo sem conhecê-lo, como uma freira – isso resulta numa estéril e talvez triste solidão. Isso nada tem em comum com a solidão da vita contemplativa do pensador: quando ele a escolhe, não está abdicando de nada; talvez significasse renúncia, tristeza, ruína de si mesmo, para ele, ter de perseverar na vita pratica: a esta ele renuncia, por conhecê-la, por conhecer-se. Assim pula ele nas suas águas, assim adquire ele a sua serenidade (NIETZSCHE, 2008, p. 229).

 

 

O exílio deliberado, a solidão voluntária não consiste numa renúncia ao mundo, de uma rejeição à realidade. Exclui-se, desse modo, em perspectiva nietzschiana, a opção pela solidão para fins ascéticos religiosos. A escolha pelo recolhimento é parte integrante da economia reflexiva do pensador. Se o religioso se recolhe, “negando” o mundo, com a finalidade de se elevar espiritualmente – em sentido transcendente –, o pensador se refugia para oxigenar suas ideias, fertilizar o terreno de suas investigações. Em outro aforismo da mesma obra, Nietzsche avalia a solidão como uma necessidade do pensador:

 

A: Mas por que essa solidão? – B: Não estou aborrecido com ninguém. Mas sozinho pareço ver os amigos de modo mais nítido e belo do que quando estou com eles; e quando amei e senti mais a música, vivia longe dela. Parece que necessito de perspectivas distantes para pensar bem das coisas (NIETZSCHE, 2008, p. 246).

 

Vê-se aqui que a solidão endossada por Nietzsche não é uma consequência de relações humanas frustradas, não é o efeito de um aborrecimento. O filósofo entende ser importante, ou melhor, imprescindível afastar-se, tomar distância do seu objeto de paixão para avaliá-lo, escrutinar suas nuances, detalhes, minúcias que não são perceptíveis quando se está por perto. Nesse sentido, nosso filósofo afirma: “Estando entre muitos, vivo como muitos e não penso como eu; após algum tempo, é como se me quisessem banir de mim mesmo e roubar-me a alma” (NIETZSCHE, 2008, p. 248). Na presença de outros a autenticidade do eu parece se perder, vai se diluindo na convivência gregária. Afastar-se do outro (temporariamente) torna-se uma atitude profilática, cujo objetivo busca restaurar a individualidade, recompor a própria subjetividade. Nesse sentido, Nietzsche arremata, “o deserto me é necessário, para ficar novamente bom” (NIETZSCHE, 2008, p. 248). A ida para o deserto se faz em benefício da saúde, cujo objetivo é revigorar a própria potência. 

 

Solidãoe o autoconhecimento

 

Em Assim falou Zaratustra(obra de 1885)a solidão ganha maior destaque. Ainda no início do prólogoNietzsche narra a trajetória de Zaratustra, que aos trinta anos de idade deixou sua pátria para um autoexílio nas montanhas, onde passou dez anos usufruindo da solidão. Após uma década de reclusão, Zaratustra acumulou farta sabedoria, sentindo, doravante, necessidade de transbordá-la, compartilhá-la com outras mãos: “Estou farto de minha sabedoria, como a abelha que juntou demasiado mel; necessito de mãos que se estendam” (NIETZSCHE, 2011, p. 11). No transcorrer da história Zaratustra sofrerá fracassos e frustrações em sua empreitada de compartilhar seu conhecimento com outros homens, que ainda não estavam aptos para beber da fonte de sua sabedoria. Amiúde, Zaratustra recorrerá à solidão (sua pedra de toque) como retirada estratégica para preservar a si mesmo, regressar a si próprio.

“Foge para a tua solidão, meu amigo!” (NIETZSCHE, 2011, p. 51). Com essas palavras Zaratustra inicia a seção “Das moscas do mercado”.Zaratustra exorta o leitor a afastar-se do mercado (leia-se, do rebanho, da multidão): “Onde cessa a solidão, ali começa o mercado, ali também começa o barulho dos grandes atores e o zumbido das moscas venenosas” (idem). No rebanho a gritaria impera, o alarido prevalece, silenciando a individualidade criadora. Os grandes criadores (os criadores de valores) não contemporizaram com o mercado, não se submeteram ao tumulto do rebanho que silencia traços de singularidade. “Longe do mercado e da fama se passa tudo que é grande: longe do mercado e da fama habitaram, desde sempre, os inventores de novos valores” (NIETZSCHE, 2011, p. 52). A solidão novamente se apresenta pelos lábios de Zaratustra como medida imprescindível para combater a subserviência aos valores estabelecidos, para alijar a possibilidade de ser mais uma personalidade idêntica ao rebanho, isto é, impessoal, diluído na massa.

Mas Zaratustra prega para qual propósito? Ele quer ser o precursor de uma nova religião? Quer arrebanhar fiéis? Torná-los seus caudatários? Em uma célebre passagem, da seção “Da virtude dadivosa”, Zaratustra discursa para seus discípulos. Após o discurso o personagem silencia. Em seguida, volta a falar com seus seguidores: “Agora prossigo só, meus discípulos! Ide vós também agora sozinhos! Assim desejo eu” (NIETZSCHE, 2011, p. 75). Não é o objetivo de Zaratustra criar um agrupamento de sabujos, de homens submissos aos seus ensinamentos; longe disso, com suas palavras ele induz seus companheiros a buscarem a solidão, alijando-se do seu mestre, pois, parafraseando Nietzsche, não se retribui bem a um professor permanecer sempre na condição de aluno.

A solidão, para Nietzsche, é condição indispensável para colocar os valores dominantes em xeque, para submetê-los a uma avaliação crítica. Em Além do bem e do mal a solidãoé condição sinequa nonpara os espíritos livres: “na medida em que somos os amigos natos, jurados e ciumentos de solidão, de nossa mais profunda, mais solar e mais noturna solidão – tal espécie de homens somos nós, nós espíritos livres!” (NIETZSCHE, 2010, p. 46). O espírito livre não se curva ao que é comumente aceito como verdade, não se subordina a uma hegemonia política, cultural, moral ou religiosa; ele postula a autodeterminação como atitude em prol da crítica e da criação de valores. Para ele, a solidão é sua âncora, seu ponto de equilíbrio, o recurso do qual lança mão para reestabelecer seu impulso crítico, seu fermento de independência.

Vê-se, pois, que a solidão está longe de ocupar um espaço periférico na obra de Nietzsche, ela figura numa posição determinante em sua filosofia. No prólogo de sua autobiografia intelectual Ecce Homo,o filósofo alemão define de forma lapidar o que entende por filosofia: “filosofia, tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes – a busca de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o que até agora a moral baniu” (NIETZSCHE, 2009, p. 16). Filosofia não é apenas uma prática introspectiva, reflexiva, ela também exige ousadia. Trata-se de uma aventura que demanda coragem. Requer bravura para se esquivar do nivelamento tão caro à vida em rebanho. Viver deliberadamente no gelo, nos cumes é uma atitude extemporânea, imprópria para o seu tempo e ao mesmo tempo necessária para melhor compreendê-lo. Para tanto, a solidão é uma companheira essencial.

Solidão, para Nietzsche,não é sinônimo de sofrimento, tristeza, dissabor. Nas palavras do filósofo: “Objeção é também sofrer da solidão – sempre sofri somente da ‘multidão’” (NIETZSCHE, 2009, p. 48). Estar solitário nunca foi uma interdição para ele, mas sim uma libertação. Poder-se-ia questionar se o demasiado apreço que Nietzsche concede à solidão estaria associado a uma empáfia, a um desapreço pelas pessoas em razão de um sentimento de desprezo para com elas. Quanto a isso, Nietzsche deixa patente: “Demonstro ainda hoje a mesma afabilidade para com todos, trato inclusive com distinção os humildes: em tudo não há um grão de soberba, de secreto desprezo” (NIETZSCHE, 2009, p. 48).Em outras palavras, quando Nietzsche recorre à solidão não é para afirmar uma suposta superioridade em relação às demais pessoas. 

A solidão parece ser uma característica do filósofo, que se transformou em arma e armadura para seu filosofar. Também emEcce Homo, Nietzsche expõe seu método de guerra, recenseando quatro pontos que o constitui. O segundo ponto é o que nos interessa, a saber, “Segundo, ataco somente causas em que não encontraria aliado, em que estou só – em que me comprometo sozinho” (NIETZSCHE, 2009, p. 30). A solidão como aliada: eis um imperativo nietzschiano, que nele se fez carne, que define inclusive sua humanidade:

 

Minha humanidade é uma contínua superação de mim mesmo. – Mas tenho necessidade de solidão, quer dizer, recuperação, retorno a mim, respiração de ar livre, leve, alegre... Todo o meu Zaratustra é um ditirambo à solidão [...] (NIETZSCHE, 2009, p. 31).

 

Em algumas das obras derradeiras de Nietzsche – Assim falou Zaratustra, Ecce Homo – a solidão se intensifica, ganhando novo nível de radicalidade como foi explicitado. Conquanto, nas referidas obras a solidão esteja muito associada às idiossincrasias filosóficas de Nietzsche, ela pode ser pensada para além das suas características subjetivas, haja vista que o próprio filósofo convida a todos – pelos ensinamentos de Zaratustra – a retornar si mesmos.A solidão, portanto, é um recurso, uma manobra, uma estratégia para todos aqueles que querem moldar o caráter com as próprias mãos.

 

Referências

 

NIETZSCHE, Friedrich. Aurora:reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das letras, 2008.

 

______. Ecce homo:ou como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

 

______. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

______.Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.