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Nietzsche:  transmutação do espírito, lidar com a história  

 

Tiago Pinto dos Santos

Estudante do 6º semestre de Filosofia - UNISANTOS

 

Nietzsche destaca-se na história do pensamento por ser um homem que grita sozinho e destoa no meio de uma multidão que canta em uníssono. Sua voz é estrondosa e provoca rupturas nas paredes que a cercam – as paredes da tradição. É o melhor dos mundos possíveis este no qual habitamos? É o movimento da história bom e perfeito como um deus, diante do qual nós deveríamos

nos curvar respeitosamente? Não será esta história um grande empreendimento preconizado por homens, isto é, animais movidos não apenas por razão e discernimento, mas também, e talvez, sobretudo, animais impulsionados por vontade, instintos, afetos e desafetos? Sendo assim, entendendo a história como construção humana, não seria aconselhável lidar com ela cautelosamente – cuidando para escolher e aceitar algumas coisas e rejeitar outras livremente? São questionamentos como esses que podemos enumerar como possíveis inspirações que levaram Nietzsche a opor-se à tradição negando a concepção de história hegeliana, a saber, a história como movimento do Espírito Absoluto. Segundo essa concepção, o presente seria o resultado de tudo aquilo que um dia surgiu de melhor, o produto das melhores escolhas e dos mais brilhantes pensamentos.

A humanidade estaria caminhando progressivamente rumo à perfeição, ponto no qual o homem seria senhor da realidade, pois conheceria todas as suas leis de funcionamento.

Em sua obra Segunda Consideração Intempestiva, Nietzsche pensa acerca da história, e partindo do critério da utilidade desta para a vida, estabelece três modos diferentes de lidar com a história: modo histórico, a-histórico e supra-histórico. Esses três conceitos podem ser comparados a três imagens às quais Nietzsche daria vida em Assim Falou Zaratustra, a saber, o camelo, o leão e a criança. Pode-se dizer que àqueles conceitos correspondem respectivamente às três imagens estabelecidas por Nietzsche. E é possível afirmar também que o primeiro e o segundo conceito-imagem revelam um modo radical e, por conseguinte muitas vezes equivocado de se lidar com a história, uma vez que ambos podem levar ao aprisionamento de uma verdade absoluta, seja ela de esquerda ou de direita. O conceito-imagem supra-histórico-criança evoca, ao contrário, a quebra entre certo e errado, esquerda e direita para dar lugar ao espírito sinuoso e dançante que livremente mescla elementos que outrora seriam antagônicos. Nietzsche destaca a importância de um estado mediano entre o histórico e a-histórico:

Esta é justamente a sentença que o leitor está convidado a considerar: o histórico e o a-histórico são na mesma medida necessário para a saúde de um indivíduo, um povo e uma cultura. (NIETZSCHE, p. 11, 2003)

A veneração pelo progresso da história presente em muitos dos filósofos modernos caracteriza o que Nietzsche chamará de homem histórico. Este é o homem que vê na história um movimento de superação contínua, no qual as ideias mais brilhantes e verdadeiras prevaleceriam sobre as ideias falsas. Nietzsche, levantando questio-namentos acerca do que seria esta atitude existencial, pergunta se não seria como “entrar em água suja, se for a água da verdade, e não afastar de si frias rãs e sapos que queimam?” (NIETZSCHE, 1996). Isto é, aceitar irrefletida e acriticamente tudo aquilo que lhe chega por meio da história, tendo confiança que o que passou pelo crivo dos séculos é necessariamente o melhor.

O homem histórico é aquele que origina uma história antiquária, na qual são preservadas as preciosas relíquias centenárias. Conforme foi dito acima, Nietzsche, em sua obra Assim Falou Zaratustra, constrói uma imagem para designar este tipo de atitude existencial – a imagem do camelo, animal que carrega consigo um reservatório de alimentos e representa o homem que venera a tradição e se esforça para conhecê-la profundamente a fim de colaborar com a sua manutenção; o prazer deste homem consiste apenas em acumular conhecimentos:

Muito de pesado há para o espírito, para o espírito forte, que suporta carga, em que reside o respeito: pelo pesado e pelo pesadíssimo reclama sua força.

O que é pesado? Assim pergunta o espírito de carga, assim ele se ajoelha igual ao camelo, e quer ser bem carregado.

O que é o pesadíssimo, ó heróis? Assim pergunta o espírito de carga, para que eu o tome sobre mim e me alegre de minha força. (NIETZSCHE, 1996).

O homem enquanto camelo carrega sobre si o peso de séculos e utiliza o tempo da sua vida para reunir esta carga. Ele conhece, ama e mantém o movimento da história e não hesita em sacrificar a sua própria individualidade em favor do suposto progresso da história, que se torna, desse modo, uma pesada massa, constituída por milhares de individualidades anuladas, que renunciaram a possibilidade de pensar por si mesmas, e, por conseguinte, diferentemente, para pensar o mesmo e assim manter e alimentar a grandiosa tradição:

Ele chama seu modo de viver de acordo com o seu tempo e completamente sem reflexão de “a entrega total da personalidade ao processo do mundo”. A personalidade e o processo do mundo! O processo do mundo e a personalidade da pulga terrena! (NIETZSCHE, p. 76, 2003).

O excesso de zelo antiquário pode levar a outro extremo. Quando o homem se dá conta de que sua existência está sendo empregada num serviço estéril de manutenção do mesmo, e de que sua subjetividade está sendo sacrificada para alimentar o progresso da humanidade, aterroriza-se, e sente a necessidade urgente de lutar ferozmente contra tudo aquilo que venerava até então; ele tem sede do novo e medo de ser absorvido de vez pela onda da massificação. Seu grito clama pela assunção de si próprio, por um descolamento do coletivo: “Se ao menos não tivéssemos de ouvir eternamente a hipérbole de todas as hipérboles, a palavra: mundo, mundo, mundo; enquanto cada um, sinceramente, só deveria falar de homem, homem, homem.” (NIETZSCHE, p. 76, 2003). O tipo de história que este homem constrói é uma história monumental, como um feixe de estopins; como pequenas explosões coléricas que são coerentes apenas com a vontade momentânea de quem as provoca. 

O homem a-histórico é aquele que se põe contra a história; enquanto o homem histórico dizia sempre “sim” o homem a-histórico diz sempre “não”. O problema é o “sempre”, que leva ao absolutismo: tudo que resulta da história é bom e perfeito ou tudo que resulta da história é falso e deve ser visto com certa precaução. Até então ou o homem está a favor da história, ou está contra a história; posteriormente, veremos que Nietzsche anunciará a necessidade de estar, sobretudo, a favor da vida.

Ao conceito de homem a-histórico é possível comparar a imagem do leão. Se o camelo é aquele que se curva para acumular sobre si a grande carga da história, o leão é o que luta contra essa veneração, e que destrói, com sua força, esse espírito de manutenção, abrindo, por conseguinte, espaço para o novo. 

Meus irmãos, para que é preciso o leão no espírito? Em que não basta o animal de carga, que renuncia e é respeitoso?

Criar novos valores - disso nem mesmo o leão ainda é capaz: mas criar liberdade para nova criação - disso é capaz a potência do leão. (NIETZSCHE, 1996).

O leão provoca a ruptura. Ele é símbolo do próprio Nietzsche, que grita contra a força de uma tradição. É a resistência, a tentativa de não sucumbir à força do mesmo. O espírito a-histórico é aquele que briga e que luta, e, não obstante, seja essa atitude importante, não deixa de ser arriscada, uma vez que uma excessiva exposição de si pode levar à falência o projeto revolucionário. O leão é apenas um, enquanto os camelos são muitos. A força leonina de resistência à tradição cessa quando ele é obrigado a refugiar-se, incompreendido, no deserto – lugar onde sua voz não pode mais ser ouvida; aí, nenhuma revolução é mais possível, e sua ação se torna estéril. O leão carece de sinuosidade.

Se por um lado há o camelo como a força de manutenção, por outro lado há o leão como a força de destruição. Nietzsche, sendo coerente com a sua missão de propor um caminho para a superação dos valores existentes de ‘certo – errado’, ‘falso – verdadeiro’, vai além desses dois extremos para anunciar um terceiro modo de lidar com a história, o modo crítico, próprio do homem supra-histórico. Este é o homem que está verdadeiramente além da tradição dicotômica – bem e mal. O supra-histórico reúne em si elementos do histórico e do a-histórico; ele conhece o passado e a tradição, sem curvar-se perante ela. Quando olha para o passado, não se esquece de si mesmo, nem do tempo ao qual pertence. Sua força não é nem mantenedora nem destruidora, porém plástica, isto é, capaz de apoderar-se de elementos do passado e modelá-los a fim de que respondam às necessidades do presente. Em sua atividade destruidor-criativa, o supra-histórico visita ideias antigas as quais foram esmagadas pelos interesses de alguns homens, que se diziam refletores do espírito absoluto, e lhes dá nova vida, transportando-as para o presente espaço de reflexão. Desse modo, ele aceita algumas ideias e rejeita outras, agindo em favor da vida, e não em favor da manutenção da história. A respeito deste homem e sua ação, Nietzsche diz:

 

Ele precisa ter a força e aplicá-la de tempos em tempos para explodir e dissolver um passado, a fim de poder viver: ele alcança um tal efeito conforme traz o passado para diante do tribunal, inquirindo-o penosamente e finalmente condenando-o; (NIETZSCHE, p. 30, 2003)

 

Nietzsche associa ao homem supra-histórico, a imagem da criança. A criança é aquela que brinca inocente e livremente. A imagem da criança evoca a atitude preconizada por Nietzsche – não se curvar perante o passado nem declarar guerra permanente contra ele, mas ao contrário, buscar e preservar alguns elementos do passado, e renunciar a outros elementos, de modo a abrir espaço para novidades. “Inocência é a criança, e esquecimento, um começar ­de-novo, um jogo, uma roda rodando por si mesma, um primeiro movi­mento, um sagrado dizer-sim.” (NIETZSCHE, 1996). Se o homem histórico dizia sim a tudo que vinha da tradição, e o homem a-histórico a negava insistentemente, o supra-histórico, ou ainda, a criança, pode voltar a dizer sim, porém não um sim que ama e venera, mas um sim que é resultado de um olhar atento e simples. A criança é espontânea em suas atitudes e gestos, ela ainda não sabe fingir para ser conveniente a determinadas situações. Ela gosta de algumas coisas e não gosta de outras, e ainda não tem vergonha nem medo de expressar sua vontade e seu pensamento sendo coerente consigo mesma.

A criança não desperta tantas atenções quanto o leão. Ela pode estar presente em muitos lugares sem que não se dê muita importância a sua presença. Ela pode agir silenciosa e discretamente. A revolução provocada por um homem supra-histórico, por um espírito de criança, é mais implosiva do que explosiva, uma vez que destrói a tradição a partir de dentro. É uma presença corrosiva.

 A história crítica é esta história estabelecida pelo julgamento do homem supra-histórico que preserva e condena; não é mais a história das oposições e dos grandes embates entre duas verdades absolutas que querem o lugar de únicas, mas caracteriza-se como o modo extemporâneo de lidar com a história, isto é, um modo de estar inserido no tempo, porém não absorvido pelo tempo. Estar inserido numa instituição, mas não abandonar a própria singularidade em vista dos seus ideais. Estudar um sistema filosófico e não necessariamente concordar totalmente com ele.

A atitude extemporânea é um estar e não estar ao mesmo tempo. É pensar diferente mesmo em meio a uma multidão que pensa igual. Não é fazer uso da vida em favor da história, mas utilizar-se da história para promover a vida.

 

Referência bibliográfica:

NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva – da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marcos Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. (Conexões).

______________. Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1996.