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Ciberpatuá Quântico:

Uma história em quadrinhos poético-filosófica que se insurge contra os dogmas

Edgar Franco (Ciberpajé)1

Ainda no ano de 1997 batizei os quadrinhos que faço, devido há algumas de suas peculiaridades, de quadrinhos Poético-Filosóficos. No mesmo ano publiquei um artigo de minha autoria intitulado “Panorama dos Quadrinhos Subterrâneos no Brasil”(FRANCO, 1997). Na época, para a realização da pesquisa que gerou o artigo, foram analisados 400 fanzines de todas as regiões do país, no intervalo de 1989 a 1995. Para sistematizar a análise, os quadrinhistas foram divididos em linhas, observando semelhanças de linguagem, afinidades estilísticas e temáticas. Para batizar uma das linhas surgiu o termo “quadrinhos poético-filosóficos” que posteriormente batizaria esse gênero de quadrinhos, propus a primeira definição para ele:

 

Linha Poético-filosófica – Quadrinhistas que passam deliberadamente mensagens filosóficas e questionamentos existenciais em seus trabalhos, muitas vezes lançam mão de textos poéticos de sua autoria ou de outrem como roteiro para suas HQs. Nem sempre têm compromisso com a linearidade da narrativa, além disso, são caracterizados por muito experimentalismo no enquadramento e no traço (FRANCO, 1997, p.54).

 

Ao batizar o gênero utilizei o conceito de poética na visão aristotélica de devir – diretamente conectada ao contexto filosófico – de possibilidades de vir a ser, mas também no sentido de poíesis como “o ato criativo”, assim, em meu entender, a somatória de devir e criação é igual a “poética”.

 

Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer, o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (…) diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e o outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente ao universal, e esta ao particular (ARISTÓTELES, 1987, p.209).

 

A consolidação do termo “quadrinhos poético-filosóficos” para batizar esse singular gênero de quadrinhos brasileiros aconteceu na pesquisa de pós-doutorado de Elydio dos Santos Neto, realizada em 2010 no Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo, e intitulada “As Histórias em Quadrinhos poético-filosóficas no Brasil: contextualização histórica e estudo das interfaces educação, arte e comunicação”. Em artigo escrito em 2009, Santos Neto já apontava quais as características definidoras do gênero:

 

São, portanto, três as características que principalmente definem uma história em quadrinhos poético-filosófica: 1. A intencionalidade poética e filosófica; 2. Histórias curtas que exigem uma leitura diferente da tradicional; 3. Inovação na linguagem quadrinhística em relação aos padrões de narrativas tradicionais nas histórias em quadrinhos. Quando se fala de intencionalidade poética aqui é no sentido sugerido por Edgar Franco, que se referenciou no pensamento de Aristóteles, isto é, um olhar que, sem perder completamente o pé do chão presente e estando aberto aos influxos criativos da imaginação, consegue vislumbrar as coisas que ainda não são e trazê-las para a fruição e reflexão do leitor ou leitora. (…) Quando se fala de intencionalidade filosófica a referência é ao desejo, que explicitam os autores poético-filosóficos, de provocar uma reflexão mais profunda sobre a condição humana em seus leitores e leitoras e, para isso, compartilham suas visões sociais, oníricas, subjetivas, cósmicas, políticas e espirituais por meio da linguagem dos quadrinhos (SANTOS NETO, 2009, p.90).

 

Santos Neto (2009) também ressalta que por suas singularidades únicas, mesmo sofrendo influências de certas vertentes do quadrinho autoral europeu, o gênero poético-filosófico de quadrinhos é um fenômeno da arte sequencial genuinamente brasileiro. E dentre os quadrinhistas representantes do gênero ele destacou-me e também a Gazy Andraus, para os quais dedicou livros publicados pela editora Marca de Fantasia.

 

Ciberpatuá Quântico é uma de minhas HQs que se enquadram perfeitamente nos parâmetros da definição proposta por Elydio dos Santos Neto, ou seja, tem clara intencionalidade filosófico-reflexiva, explora possibilidades expressivas não usuais nos quadrinhos, é constituída de poucas páginas e usa texto poético. A história em quadrinhos nasceu de minhas reflexões sobre o surgimento das religiões e dos dogmas místicos que são fundamentalmente estruturados sobre o medo diante do inusitado e desconhecido, que pode ser desde um fenômeno da natureza como uma tempestade e um furacão, também os frutos do desenvolvimento científico, ou até mesmo feitos do conhecimento empírico desconhecido pelos outros, como na lendária história do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, que foi apelidado de Anhanguera – Diabo Velho – pelo povos originários brasileiros que ficaram assustados quando ele colocou fogo em um rio após jogar aguardente sobre ele.

 

Tive um insight simples para a criação de Ciberpatuá Quântico, mostrar o deslumbramento temeroso de uma criatura pós-humana diante de uma tecnologia desconhecida, um deslumbramento que evolui para temor e desemboca no culto. Surgindo então ali uma nova religião, um novo dogma baseado no culto de tal objeto tecnológico desconhecido e tido como mágico e/ou místico. Situo a narrativa há mil anos no futuro, após a espécie humana ter abandonado a Terra devido a um colapso biotecnológico, contextualizando-a no meu universo ficcional da Aurora Pós-Humana.

 

No primeiro quadro vemos que um cosmonauta retornou em uma nave para a Terra, após mil anos do colapso, mas  ele morre em um acidente com sua nave antes de conseguir contato pedindo ajuda aos seus com um aparelho celular futurista em mãos e que tem acoplada a ele uma pequena antena parabólica. Em um único quadro apresento os 3 momentos, ele ainda vivo com o aparelho em mãos e a nave destruída ao fundo, depois ele agonizante e finalmente morto.

 

No segundo quadro o tempo passou e apresento o que resta do cosmonauta morto já quase completamente coberto pela areia da paisagem desértica, só como um esqueleto dentro da roupa, e o objeto também quase todo soterrado. Depois mostro uma criatura quimérica, pós-humana, um sobrevivente do planeta encontrando o corpo do astronauta e mostrando incompreensão diante dele, também encontrando o aparelho. Já no terceiro quadro vemos que a criatura eleva o aparelho em uma das mãos e fica assustado ao ouvir uma voz saindo dele, isso acaba gerando um deslumbramento no ser pós-humano que evolui para o tecnofetiche por aquele objeto.

 

No quarto quadro apresento o nome da história, e deixo claro através da arte e do texto que aquele ser cria uma narrativa fictícia em sua mente para a origem do objeto, dando-lhe características divinas. No quinto quadro observamos o objeto posto numa espécie de altar feito de pedras e uma aura luminosa parece vir dele – pois assim imagina o ser. A narrativa conclui-se nesse quinto quadro quando observamos a criatura prostrada em posição de completa devoção e medo diante do objeto, cultuando-o como um deus. O texto que acompanha a imagem final enfatiza a minha ojeriza diante dos dogmas religiosos, classificando-os como doenças fatais: “E a mais ancestral e fatal doença cósmica ressurge na desolação!”

 

O título da história em quadrinhos, Ciberpatuá Quântico, é uma brincadeira irônica que une palavras de conotação dúbia, usadas pela ciência, mas também por místicos da nova era, o prefixo “ciber” e o termo “quântico”, conectados a um termo utilizado por certas tradições místicas afrobrasileiras, o “patuá”, amuleto feito de tecido e voltado para a proteção do indivíduo.

 

Referências:

 

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

FRANCO, Edgar Silveira. “Panorama dos Quadrinhos subterrâneos no Brasil.” In. CALAZANS, F. M. A. (Org.) As histórias em Quadrinhos no Brasil: Teoria e Prática. São Paulo: Intercom/Unesp/ Proex, 1997, p. 51-65.

SANTOS NETO, Elydio dos Santos. “O que são histórias em quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.” In Visualidades – Revista do Programa de Mestrado em Arte e Cultura Visual da FAV/ UFG, Vol. 7 n. 1, Jan/Jun 2009. Goiânia, GO: UFG, FAV, 2009, p.68-95.

 

 

1                 Edgar Franco é o Ciberpajé, um ser mutante como o Cosmos, em constante transmutação. Livre de dogmas e verdades, psiconauta pronto a experimentar a novidade, focado em viver o único momento que existe: o agora. Artista transmídia criador do universo ficcional da Aurora Pós-humana com premiações nas áreas de quadrinhos e arte e tecnologia. É um dos pioneiros brasileiros do gênero poético-filosófico de quadrinhos, e mentor da banda performática Posthuman Tantra. Pesquisador criador do termo HQtrônicas, autor de 4 livros acadêmicos e inúmeros artigos, pós-doutor em performance e HQ pela Unesp, pós- doutor em arte e tecnociência pela UnB, doutor em artes pela USP, mestre em multimeios pela Unicamp, e professor permanente do Programa de Doutorado em Arte e Cultura Visual da UFG, em Goiânia. Blog "A Arte do Ciberpajé Edgar
Franco": http://ciberpaje.blogspot.com.br/