Nietzsche e as flutuações do ressentimento
Renato Nunes Bittencourt[1]
O ressentimento consiste na disposição psicofísica de se sentir novamente um afeto, geralmente desagradável para nosso senso pessoal de valoração. Não se trata apenas de uma mágoa ou sentimento de raiva perante um desagravo sofrido, mas acima de tudo de um remoer psíquico que evoca as recordações turbulentas que ainda maculam violentamente a afetividade da pessoa. É importante destacar essa informação pois também usualmente relembramos no presente vivências agradáveis de outrora, como se tal rememoração não apenas fosse uma recordação alegre de algo que já passou, mas também evocasse na atualidade os mesmos afetos originais. No entanto, não consideramos como ressentimento esse tipo de lembrança positiva do bom momento vivido no passado, pois o conceito de saudade, ainda que inquantificável, absorve essas disposições felizes do tempo que não está mais presente em ato. Por isso enfatizamos o estado de ressentimento como uma experiência psicofísica desagradável para quem padece desse transtorno, inclusive com seus tons orgânicos, tal como Nietzsche esmiúça:
Os sofredores são todos horrivelmente dispostos e inventivos, em matéria de pretextos para seus afetos dolorosos; eles fruem a própria desconfiança, a cisma com baixezas e aparentes prejuízos, eles revolvem as vísceras de seu passado e seu presente, atrás de histórias escuras e questionáveis, em que possam regalar-se em uma suspeita torturante, e intoxicar-se de seu próprio veneno de maldade – eles rasgam as mais antigas feridas, eles sangram de cicatrizes há muito curadas, eles transformam em malfeitores o amigo, a mulher, o filho e quem mais lhes for próximo (NIETZSCHE, 2000, p. 117)
O ressentimento é então uma experiência que fornece ao sofredor um sentido para a sua existência degradada em todas as esferas da vida. Do metabolismo ao senso moral, toda a conjuntura vital do ressentido é atingida, mas esse estado de degenerescência psicofísica causa ao sofredor um curioso misto de dor e de prazer. Viver o ressentimento é talvez uma forma de se desviar a consciência do niilismo cotidiano: apesar dos elementos corrosivos que se manifestam na virulência ressentida, a pessoa afetada por essa disposição constrói um norteio existencial que lhe concede um sentido, ainda que miserável, para sua subjetividade empobrecida e incapacitada de florescer como uma pessoa criadora de valores. O ressentimento é um grande orgasmo de impotência para o sofredor, que se regala em seu transtorno psíquico por assim tonificar sua existência pelo mal-estar ontológico que lhe aflige. O ressentido sempre projeta para fora de si sua incapacidade em se assenhorar de sua própria existência. O ressentido sempre reage aos estímulos externos, vivendo em uma espécie de situação defensiva permanente, tal como em uma guerra de assédio na qual ele jamais pode baixar a guarda e se desmobilizar, problema que contribui ainda mais para sua extenuação psicofísica, pois não consegue processar convenientemente as suas agruras. Na experiência do ressentimento, sofremos integralmente, ou seja, não há separação entre o físico e o mental, dissociação que, aliás, Nietzsche constantemente critica no decorrer de sua filosofia da imanência, que compreende assim os processos vitais como fenômenos integrados, indissociáveis. Com efeito, “corpo” e “alma” constituem uma unidade conflitante na constituição do sujeito:
Aos desprezadores do corpo desejo falar. Eles não devem aprender e ensinar diferentemente, mas apenas dizer adeus a seu próprio corpo – e, assim, emudecer. “Corpo sou eu e alma” - assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as crianças? Mas o desperto, o sabedor, diz: corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e alma é apenas uma palavra para um algo no corpo. O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de “espírito”, meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão (NIETZSCHE, 2011, p. 34-35).
No estado de ressentimento, não aceitamos os signos da diferença, as oposições externas, centralizamos em nossa própria subjetividade o sentido da existência, perante a qual tudo deve girar. A personalidade ressentida não reconhece a importância axiológica da divergência, a contradição, a oposição, pois pressupõe a possibilidade de uma existência linear, na qual qualquer tipo de entrave é imputado como uma ação moralmente má da parte de outrem, o inimigo do momento que deve ser odiado e combatido, ainda que não existam condições empíricas para se contrapor ao pretenso inimigo, constatação que amplifica ainda mais o mal-estar psíquico do sofredor, que busca reparações imaginárias para seus desagravos. Conforme destaca Nietzsche,
Poder ser inimigo, ser inimigo – isso pressupõe talvez uma natureza forte, é em todo caso condição de toda natureza forte. Ela necessita de resistências, portanto busca resistência: o páthos agressivo está ligado tão necessariamente à força quanto os sentimentos de vingança e rancor à fraqueza. (...) – A força do agressor tem na oposição de que precisa uma espécie de medida; todo crescimento se revela na procura de um poderoso adversário – ou problema: pois um filósofo guerreiro provoca também os problemas ao duelo. A tarefa não consiste em subjugar quaisquer resistências, mas sim aquelas contra as quais há que investir toda a força, agilidade e mestria das armas – subjugar adversários iguais a nós... Igualdade frente o inimigo – primeiro pressuposto para um duelo honesto. Quando se despreza não se pode fazer a guerra; quando se comanda, quando se vê algo abaixo de si, não há que fazer a guerra (NIETZSCHE, 2001, p. 31-32).
O “inimigo” necessariamente não é “mau” e podemos até mesmo amá-lo, por mais paradoxal que isso seja para as mentalidades tacanhas em sua linearidade cognitiva. O ressentimento, por sua vez, abole qualquer espírito agonístico, caracterizado pela valorização da disputa, da competição, onde o rival jamais pode ser compreendido como inimigo, mas como uma figura oponente que estimula nosso próprio florescimento pessoal mediante o embate de forças vitais: “Da Escola de Guerra da Vida – o que não me mata me fortalece” (NIETZSCHE, 2006, p. 10).
Aquele que vivencia o ressentimento apresenta dificuldades em esquecer os momentos desagradáveis aos quais deposita a culpabilidade em alguém como o responsável pelo seu próprio sofrimento. Esse salutar processo de esquecimento não é uma mera passividade da memória, mas um exercício psicofísico de depuração das lembranças desagradáveis e seus inerentes efeitos metabólicos no organismo. A tradição filosófica sempre concedeu bastante importância para a memória, considerada uma grande força da alma, mas pouca dignidade moral para o esquecimento, compreendido assim como uma degradação mental. Não podemos deixar de evocar os fundamentos morais dessa contradição. Pelo fato de a memória ser predominante em relação ao esquecimento, todo contrato, acordo e dívidas são legitimadas por essa capacidade humana em lembrar das promessas realizadas, enquanto quando nos esquecemos dessas transações, sofremos as sanções legais. É mais fácil talvez perdoar uma ofensa do que perdoar uma dívida. A memória é tradicionalmente interpretada como uma faculdade ativa da consciência, e o esquecimento, como uma faculdade passiva ou mesmo uma má disposição de nosso ser, como se o ato de esquecimento fosse talvez proposital. Chafurdar no veneno corrosivo do ressentimento (tal imagem é inevitável) é um processo doentio de esvaimento da vitalidade pessoal:
Porque nos consumiríamos muito rapidamente se reagíssemos, não reagimos mais: esta é a lógica. E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo sentido – para os exaustos é esta certamente a forma mais nociva de reação: produz um rápido consumo de energia nervosa, um aumento doentio de secreções prejudiciais, de bílis no estômago, por exemplo. O ressentimento é o proibido em si para o doente – seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação (NIETZSCHE, 2001, p. 30-31)
Querer não apenas rememorar a dor do passado, mas também revivê-la como elemento tonificante da existência atual não é um gesto de afirmação da vida, como poder-se-ia pensar, mas sim sua negação axiológica, pois é uma vida reativa que é resgatada, incapaz de criar valores, de se reinventar diante dos fatos. O esquecimento não é, portanto, um ato de dispersão existencial diante dos acontecimentos interpretados como ruins, mas uma ação vigorosa do sujeito capaz de se colocar acima dos encontros e dos acontecimentos cotidianos que promovem essas situações de rancor, irritabilidade e desapreço, disposições favoráveis para a consolidação do ressentimento que deprime e exaure o ânimo do sofredor. Por isso Nietzsche enfatiza que
Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças a qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”. Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo dos órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento. O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue dar “conta”... (NIETZSCHE, 2000, p. 47-48).
A partir dessa consideração, alguns questionamentos na obra nietzschiana se tornam inevitáveis: como superarmos a afetação deletéria produzida pelo ressentimento? Será possível uma vida sem ressentimento? De que maneira o ressentimento afeta tenebrosamente nossas ações criadoras, nosso labor, nossa vivência cultural, nossas relações interpessoais? De que maneira o ressentimento se infiltra em nossas experiências religiosas? Ora, não existe uma panaceia para combater o ressentimento, tal como se esse fosse uma doença etiologicamente categorizada. Talvez a própria compleição existencial do sujeito lhe propicie as condições para se contrapor aos efeitos prejudiciais das afecções ressentidas em sua vida. Viver é afetar e ser afetado, de modo que é impossível um ser humano não sofrer do ressentimento em algum momento de sua existência, mesmo que ela seja qualificada da maneira mais elevada do ponto de vista psicofísico. Não se trata de vigor corporal ou saúde perfeita, mas sim de um domínio de si que necessariamente não depende das determinações morais para que se gere no sujeito a capacidade de superar as suas atribulações afetivas. A grande sabedoria prática reside em, ao ser afetado pelo ressentimento, o sujeito conseguir se desvencilhar desses traços odiosos, rancorosos e reativos sem maiores dissabores para sua constituição metabólica, tornando-se assim apto a seguir em frente na sua trajetória de vida. Esse processo de perseverar na existência mesmo com as dores sofridas é como uma espécie de dança sobre o abismo que nos circunda, mas do qual não temos medo de visualizá-lo, pois são os somatórios dessas experiências mais intensas que aprimoram nossa personalidade e calejam nosso âmago, pois não somos cordeiros apáticos.
Outra questão bastante importante para analisarmos acerca da superação do ressentimento reside na relação entre perdão e esquecimento. É usual que se enuncie a sentença “perdoar, mas não esquecer”. Não há um consenso acerca dessa questão, pois de fato podemos perdoar sinceramente quem nos ofendeu, mas nem por isso esquecermos as lembranças desagradáveis que geram a tonificação dos afetos reativos do ressentimento em nossa mente. Se criarmos uma categorização apriorística acerca dessa situação, entraremos na seara da moralidade normativa e seu enfadonho senso abstrato de dever. É possível ainda elencarmos a hipótese de que “perdoar é esquecer”, pois quando perdoamos plenamente as ofensas realizadas por alguém olvidamos as lembranças efetivas dos desagravos, suas circunstâncias concretas e efeitos psicoafetivos. O perdão expressa uma intensa carga moral, mas para que se concretize depende de uma soberania mental daquele que realiza tal ato magnânimo, pois se trata de uma pessoa capaz de se colocar acima de desagravo sofrido. Nessas condições, perdoar não é apenas um gesto soberano de boa vontade para com nosso ofensor, mas também uma vitória psicofisiológica sobre as afetações virulentas do ressentimento que sobrecarregam as pessoas mais suscetíveis ao espírito de reparação, que mesmo com a punição ao ofensor não conseguem encontrar a ansiada satisfação existencial.
Quem exige reparação a todo custo talvez venha a perceber que nunca estará plenamente realizada psiquicamente, pois sempre necessitará de novas experiencias similares para alcançar um parco nível de prazer cruento imediato. Quando exigimos justiça, sublimamos a disposição reativa da indignação por uma ofensa e a alocamos em uma esfera que, na teoria, atua sem paixão e sem preconceito, justamente para que as decisões não sejam tomadas pelo calor do momento, sem a devida análise dos acontecimentos, seus detalhes e meandros. É fundamental que haja um distanciamento em relação aos fatos; tanto melhor, usando uma conceituação nietzschiana, é imprescindível que no processo jurídico se aplique um razoável páthos da distância. Afinal, qualquer ação impulsiva, independentemente de sua justeza ou não, pode talvez não abarcar a totalidade de signos de um acontecimento, gerando prejuízos inestimáveis para as partes interessadas. O espírito de ressentimento nem sempre age de maneira imediata, usualmente pode estimular no sofredor um processo de maquinação vingativa contra o ofensor até um momento em que a ação explode, ocasionando problemas práticos irresolvíveis. Muitas vezes se configurando como uma ação silenciosa, o ressentimento passa despercebido ao olhar comum.
Justiça sempre, nunca vingança. A justiça institucional atrelada ao sistema do Direito exige a paciência do conceito, o rito processual, o respeito pelo tempo, circunstâncias muitas vezes vituperadas pelo senso comum, que exige imediatismo para melhor satisfação das suas intenções, muitas vezes vis ou desprovidas de fundamento legal. A impulsividade das massas, aliás, pode ser convenientemente manipulada por figuras demagógicas que prosperam politicamente através do ressentimento difuso de uma coletividade social desorientada axiologicamente e que encontra em insensatas palavras de ordem um apelo irracional para a ação destrutiva, colocando em risco nossas instituições republicanas e nossas próprias vidas que tanto amamos. O homem do ressentimento despreza as virtudes intelectuais, a dignidade da arte e a beleza da existência, e gostaria de viver em um silêncio sepulcral para não ser incomodado por ninguém, apenas pelos vermes que consomem sua carne apodrecida.
Referências
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
___________. Crepúsculo dos Ídolos ou como se filosofa com o martelo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
___________. Ecce Homo: como alguém se torna o que se é. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
___________. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
[1] Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Professor da FACC-UFRJ