O Devir da Moda e o triunfo da superfície
Renato Nunes Bittencourt
Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Professor do Curso de Administração da FACC-UFRJ
A questão da Moda é talvez um dos temas concretos abordados pela filosofia social que mais se enraíze nos paradigmas clássicos do discurso filosófico, ao adentrar, diretamente ou não, no problema da temporalidade, do efêmero, da mudança e da percepção. Uma análise filosófica sobre os fundamentos da Moda, portanto, é um exercício completo de resgate ontológico do devir e da aparência para além de todas as desqualificações metafísicas atribuídas ao que é impermanente, sensível e contingente, consideradas substantivamente superficiais. Mais do que analisar a pluralidade estética e semiótica dos signos da Moda, cabe analisarmos suas bases cambiantes. O debate sobre o sexo dos anjos é tão legítimo quanto o estudo das espirais da moda e seus impactos estéticos e normativos naconduta prática das pessoas e dos grupos sociais. Por conseguinte, a atividade filosófica que direciona o seu enfoque hermenêutico e axiológico para as multidimensionais condições materiais da vida social não pode descurar desse empreendimento, ainda que aborde tal tema sob uma perspectiva refratária.
A sabedoria prática de vida adquirida pela longa experimentação intelectual, no entanto, concede-nos prudência argumentativa e uma substantiva barreira para que não odiemos nem depreciemos de antemão o objeto de nosso discurso. Neutralidade e impessoalidade certamente são disposições demasiado distantes em uma argumentação filosófica que aborde corajosamente as dificuldades apresentadas pelas temáticas da dimensão cotidiana da existência e precisamos sempre lembrar que são pessoas encarnadas que conduzem as mais diversas investigações intelectuais.
A Moda está intrinsecamente atrelada ao processo de devir, pois as tendências, estilos, gostos e padrões historicamente estabelecidos e constituídos socialmente estão em constante mudança, em um jogo fluido que confunde as relações de autonomia e de heteronomia dos sujeitos. Segue-se a dinâmica da Moda comose fosse um ato espontâneo do sujeito, e este usualmente acredita que é livre em suas escolhas. No entanto, até que ponto podemos estabelecer com precisão que nossas escolhas são efetivamente livres? Será que alguém escolhe por nós ou influencia nossas tomadas de decisão acerca das mercadorias que consumimos? Escolha pura certamente não há, pois todos os artifícios publicitários e propagandísticos atrelados maciçamente na profissionalíssima divulgação das mercadorias visam justamente orientar nosso senso de querer para as coisas enaltecidas pela campanha, construída através de substantivas análises psicológicas, sociológicas, antropológicas e outras mais. O saber ao serviço do querer. Duvidamos até mesmo que haja um sujeito transcendental que nos constitua interiormente e que seja assim condição de possibilidade para nossa postulada liberdade moral. Ora, se colocamos em questão a liberdade de escolha individual em favor de uma perspectiva determinista, tudo o que fazemos decorre de estímulos externos que nos impactam e nos levam a realizar determinadas ações. Logo, mais do que um despotismo da Moda, o que temos aí é a tendência natural do ser humano ser influenciado pelas pressões estilísticas e normativas do meio e do tempo em que vive. De todo modo essa questão não pode ser resolvida sumariamente em poucas linhas. Em defesa da legitimidade dos processos da Moda e sua ausência de culpa em sua apregoada responsabilidade pela perda de nossa liberdade plena de escolha, podemos defender a tese de que mesmo que usemos as coisas que circulam correntemente nas trocas sociais, o sentido que damos para elas permitem que elas passem por uma razoável singularização. Talvez essa seja a única liberdade de escolha real.
O fato de usarmos produtos que muitos outros também consomem não nos torna personas massificadas e acríticas. Esse é um detalhe fundamental para a uma investigação sóbria acerca dos signos da Moda. O devir, transformação constante de todas as coisas, suprime a noção de permanência, e por isso a filosofia tradicional usualmente se esquivou de abordar a dignidade desse problema. A Moda, como impermanência efetiva, emula o próprio processo da vida e seus ciclos fundamentais. Nada é para sempre, tudo em algum dado momento se esgota. Georg Simmel afirma que
A mudança da moda mostra a medida do embotamento da sensibilidade; quanto mais nervosa for uma época, tanto mais depressa se alteram as suas modas, porque a necessidade de estímulos diferenciadores, um dos sustentáculos essenciais de toda a moda, caminha de braço dado com o esgotamento das energias nervosas (SIMMEL, 2008,p. 30)
Por uma questão moral nos aferramos na fixidez do ser, pois tememos a dissolução da ordem vigente e da estabilidade aparente sob a qual calcamos nosso tecido civilizacional e assim desviamos o olhar do processo inevitável que envolve toda a pujança da vida até a sua exaustão. Tudo nasce, tudo floresce, tudo amadurece, tudo se esvai após uma determinada extensão de tempo, o qual, todavia, é geralmente experimentado intensamente pela pessoa. Assim também ocorre com a Moda e seus objetos. Kant, da grandeza de seu intrincado sistema filosófico, não deixou de contribuir para a reflexão sobre as engrenagens da Moda:
Estar na Moda é uma questão de gosto: o fora da moda que segue um costume anterior, chama-se antiquado; aquele que valoriza o estar na moda é um extravagante. É, porém, sempre melhor ser um louco na moda que um louco fora dela. Caso se queira dar essa denominação severa àquela vaidade, título que a mania de moda realmente merece quando sacrifica coisas verdadeiramente úteis, ou até deveres, àquela vaidade. – Todas as modas constituem, já por seu mero conceito, modos de vida inconstantes (KANT, 2006, p. 142).
É inegável que há pressões econômicas para as mudanças cada vez mais aceleradas da Moda, pois a lógica do mercado depende do processo autofágico de novidade contínua para despertar no público o desejo de consumir as atualidades e assim movimentar uma grande cadeia produtiva que depende dessa efervescência do gosto humano. Vemos aqui a atração pelo novo, neofilia, que tanto gerencia os afetos e as inclinações pelas coisas disponíveis. Mais uma vez Kant contribui de maneira bastante incisiva sobre a questão:
A atenção é vivificada por aquilo que é novo, de que também faz parte o raro e o que estava oculto. Pois o novo é uma aquisição; logo, a representação sensível ganha com ele mais intensidade, o costumeiro ou o habitual a apaga [...] O engenho é inventivo na moda, isto é, regras de comportamento adotadas que só agradam pela novidade, e antes de se tornar costume, terão de ser trocadas por outras formas igualmente passageiras (KANT, 2006, p. 62; p. 119).
Conforme dizemos na vida prosaica, nem sempre o que é novo é bom, e muitas vezes as mercadorias que adentram a cada dia para nosso eventual consumo nem sempre são coisas de qualidade e assim rechaçadas por nosso senso crítico. Nem todo consumidor é um gado passivo que recebe as diretrizes verticais de líderes míticos e de formadores de opinião. Daí a importância de descartamos interpretações negativas acerca da capacidade reflexiva das pessoas, como se todas elas vivessem iludidas por um discurso dominante que lhes vela as contradições da realidade. Obviamente que existem estruturas ideológicas que mascaram nossa interpretação fidedigna do mundo, mas não é a Moda a fonte original desse mecanismo sub-reptício. Para Lipovetsky,
A moda é um sistema original de regulação e de pressão sociais: suas mudanças apresentam um caráter constrangedor, são acompanhadas do “dever” de adoção e de assimilação, impõem-se mais ou menos obrigatoriamente a um meio social determinado – tal é o “despotismo” da moda tão frequentemente denunciado ao longo dos séculos. Despotismo muito particular já que sem sanção maior, a não ser o riso, a zombaria e a reprovação dos contemporâneos (LIPOVETSKY, 2006, p.39-40).
A Moda pode até mesmo apresentar uma disposição cíclica, pois determinados hábitos, gostos e estilos que outrora foram superados retornam com vigor no gerenciamento atualizado da vida concreta. O que foi superado no passado por novas tendências volta com vigor, reinventado, ressignificado e rememorando alguma era anterior que nos faz relembrar vivências alegres. Sentimos saudade dos velhos consoles de videogame, sentimos saudade das impactantes capas dos discos, dentre outras tantas coisas passadas que constituíram nossa formação cultural e nosso imaginário social. Mesmo uma máquina datilográfica (isto é, a celebérrima máquina de escrever), ultrapassada pela tecnocracia do teclado do computador e pela poderosa funcionalidade dos programas informáticos, mantém ainda o seu charme tradicional. As relações comunicacionais submetidas aos dispositivos virtualizados se aceleram em um ritmo imediatista que usualmente impede nossa capacidade de plena apreensão. Mensagens importantes são transmitidas não mais apenas por e-mails, mas também via aplicativos que nos deixam em estado contínuo de mobilização cognitiva e suprimem as fronteiras entre o público e o privado. Escrever cartas na conjuntura de nossa cibercultura é um processo lento, que exige boa caligrafia, respeito pelo tempo, inspiração narrativa, paciência e confiança na eficácia dos correios contra toda sorte de extravios, o que nos insere imediatamente na dimensão da contingência. Com efeito, quantas cartas de amor foram perdidas ao longo das eras e modificaram assim singularíssimas histórias pessoais? Decisões urgentes não são mais transmitidas por cartas, talvez ainda por telegramas para que possamos manter as aparências da formalidade burocrática. Aquilo que chamamos de Vintage é um exemplo dessa disposição de reafirmarmos a dignidade das coisas usualmente ultrapassadas que impactaram positivamente nosso modo de ser de outrora, estilo retrô que de modo algum é kitsch. O Vintage se configura como algo que concilia valor sentimental e valor de uso mesmo que esteja obsoleto do ponto de vista técnico. O kitsch, sempre de gosto duvidoso, tenta emular um passado mítico inexistente e desenraizado da dinâmica social onde está alocado (podemos perceber diversas manifestações do kitsch nas arquiteturas de prédios comerciais que almejam com esse visual transmitir grandeza e imponência ao espectador, quando na verdade apenas evidenciam uma caricatura decadente do que a instituição pretende ser). As coisas são constituídas em uma determinada linha de temporalidade histórica e são superadas por outras mais modernas e geralmente mais sofisticadas qualitativamente. Todavia, aquilo que no passado nos proporcionou vivências salutares é digno de ser resgatado e voltar ao nosso convívio, ainda que estejamos em um nível de organização societária que exija apetrechos e equipamentos muito mais funcionais do ponto de vista tecnológico.
A Moda ratifica o triunfo da aparência, não pelo fato de que haveria uma oposição entre aparência transitória e essência perene, mas pelo fato de que, sob uma perspectiva imanente, só há a “aparência”, que envolve não apenas a nossa imagem vista publicamente, como também todo o estofo estrutural de uma coisa e sua presença constitutiva no mundo circundante: “É a moda que exibe, por meio de signos mutantes, a corporificação, a exteriorização performática de subjetividades fragmentadas, sem contornos fixos, movediças, escorregadias, mutáveis, flutuantes, voláteis” (SANTAELLA, 2007, p. 99)
Temos assim uma orientação axiológica monista, pois a realidade é compreendida como uma grande unidade, ainda que em tal unidade tenhamos fenômenos múltiplos que se manifestam de modo ubíquo. Tudo o mais é fabulação metafísica decorrente de uma arraigada tradição metafísico-moral que dividiu a realidade em duas instâncias antagônicas. A Moda se constitui sob os parâmetros da superfície e não da dita superficialidade tão criticada por aqueles que somente amam as apregoadas profundezas das coisas e muitas vezes mergulham em um abismo obscuro sem volta (afinal, muitos pretendem se aventurar para além das fronteiras da percepção e se perdem nesse trajeto turbulento, pois faltou-lhes moderação e senso tático de ação). Pensar sobre algo sem que tenhamos a vitalidade criativa como instância pode embotar nossas funções cerebrais, retirando toda ideia de finesse e de sutileza. A atmosfera fica cada vez mais asfixiante e nos convertemos em intelectuais de um gabinete sombrio sem portas nem janelas.
Precisamos sempre saber transitar em todas as esferas, sejam as camadas inflamadas da superfície, sejam os mistérios recônditos de nosso âmago subterrâneo. O grande erro técnico consiste em se depreciar um em nome de outro. A superfície é o impacto imediato, a experimentação estética, a concretude da pele, da carne e da imagem. Os sentidos não são a fonte do erro, o erro nasce da interpretação equivocada que fazemos acerca do testemunho dos sentidos. Vejamos que em toda análise sobre os processos plásticos da Moda lidamos sempre se depara com a crítica acerca da aludida banalidade que se lhe atribui para desmerecê-la em favor de temas considerados mais sérios e mais importantes na história do pensamento humano.
Ora, a longa trajetória filosófica moral, política e religiosa que hegemoniza o debate acerca da condição humana e sua luta por conservação, poder e bem-estar jamais conseguiu estabelecer na nossa estrutura civilizacional o progresso pleno de nossa forma de vida, continuamos discordantes, violentos, agressivos, misóginos, reativos, depredadores, dentre muitas outras características disruptivas. Logo, os temas imputados como filosoficamente “sérios” muitas vezes permanecem em impasse (a aporia não é ruim, obviamente, mas não pode ser considerada como um fim em si mesmo, é necessário que haja um esforço para se avançar em uma agenda de debate para que não fiquemos na verborragia que tanto agrada o espírito que se delicia com a beleza retórica das palavras de impacto, mas que pouco faz para transformar a ordem real do mundo). Por conseguinte, versar sobre a Moda e sua gloriosa celebração da aparência é uma forma de se proclamar o seu lugar em um multiverso de sentidos, valores e organizações. Todos os assuntos são dignos de debate, sejam pragmáticos ou especulativos, sejam temporais ou abstratos, e recusar qualquer espaço de reflexão sobre os temas que constituem nossa noosfera é, sem dúvida, um posicionamento filisteu. É nesse sentido que devemos ver a ciência com os olhos da arte, justamente para que não permaneçamos enclausurados em pensamentos autocentrados sem qualquer interlocução com a realidade circundante. A Filosofia não pode se envergonhar em abordar a dimensão cotidiana da existência, pois é o terreno multifacetado e ambivalente em que inexoravelmente estamos. Afirmar a legitimidade intelectual do cotidiano é uma forma de adesão incondicional ao existir.
Referências
KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Trad. de Clélia Aparecido Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.
LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: a Moda e seu destino nas sociedades modernas. Trad. de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.
SIMMEL, Georg. “Filosofia da Moda” In: Filosofia da Moda e outros escritos. Trad. de Artur Morão. Lisboa: Texto & Grafia, 2008, p. 21-57.