A razão em exercício em Marco Aurélio
Jasson da Silva Martins
Professor do curso de Filosofia - UESB
Doutorando em Filosofia - UFBA
Introdução
Neste texto eu pretendo examinar e apresentar alguns aspectos da razão em exercício na obra Meditações de Marco Aurélio. Gostaria de deixar claro que esta leitura é sempre válida quando alguns pressupostos são levados em conta, ou seja, quando não se perde de vista dois traços centrais da concepção estoica e intelectualista da filosofia como forma de vida: a irredutível autonomia da razão e o exame crítico como exercício próprio do homem livre. Estes dois traços, por vezes, não são claramente expostos ou pressupostos nos estudos da obra de Marco Aurélio ou do estoicismo.
Meu objetivo é demonstrar o que disse acima, a partir de algumas das características mais evidentes do texto das Meditações, procurando mostrar de onde procede e qual é o uso particular em Marco Aurélio. Do ponto de vista estilístico, o imperador se vale de mecanismos semelhantes aos de Epicuro, por exemplo, a escrita aforística e a repetição. Não obstante, enquanto para Epicuro estes mecanismos são terapêuticos – na medida em que se distanciam das preocupações, ao substituir as falsas crenças por verdades provenientes do conhecimento atômico do mundo –, Marco Aurélio utiliza o aforismo por sua simplicidade.
A simplicidade da escrita, cujo objetivo é a clareza, pode ser considerada o objetivo central do uso de diversos recursos retóricos que estão presentes nas Meditações. O objetivo maior, claro, é a exposição não de uma teoria, mas de uma prática efetiva de um modo filosófico de viver. Se o leitor contemporâneo ultrapassar os aspectos metodológicos e chegar ao cerne filosófico da obra, vai notar uma unidade que não é externa e aparente, mas doutrinária, ou seja, uma retomada de temas estóicos tais como exercício constante e irrestrito da razão e a atenção vigilante sobre o modo de viver.
Sobre o estilo das Meditações
Uma boa parte das dificuldades para alguém compreender e, eventualmente, praticar a filosofia estóica diz respeito aos aspectos estilísticos da obra de Marco Aurélio. O título-resumo “escritos para si mesmo” parece antes de tudo apontamentos pessoais, algo como um diário de reflexões cujo fio condutor é difícil de desembaraçar. Mas nem tudo é simples ou complexo demais: há muito de premeditado em sua construção, diversos aspectos que depende da influência estilística e filosófica que o Imperador recebeu de sua formação. Apresentarei algumas destas influências, que aflorarão ao indicar, esquematicamente, algumas destas características de estilo.
Literariamente falando, Marco Aurélio escreve uma coleção de aforismos ou epigramas. Por suposto não é a mesma coisa um epigrama e um aforismo. Uma distinção básica poderia ser apresentada assim: o epigrama, como o nome indica, são fundamentalmente inscrições, frases breves, engenhosas, poéticas que originalmente funcionam como um pedido e que na época helenística se popularizaram e se constituíram um gênero poético por si mesmo. Os aforismos, por sua vez, provêm de uma tradição mais científica – especialmente ligada à tradição médica –, nas quais se encontram sínteses de experiências reflexivas mais do que resultado de conhecimentos biológicos estritos. O mais famoso aforismo de Hipócrates é um belo exemplo: “A vida é curta, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganosa, o julgamento difícil”
O leitor das Meditações encontrará um pouco de ambos – tanto de epigramas, quanto de aforismos, na referida obra. Alguns exemplos de epigramas, expresso em sentenças curtas, são poéticas e se nutrem da sensibilidade do homem, do intelectual daquela época e se refere às preocupações do Imperador-filósofo com a passagem do tempo, com a fragilidade da vida, sobre a condição humana, etc. Eis alguns exemplos contidos na obra: “Da vida humana, o tempo é um momento” (II, § 17, p. 46). “A fama póstuma, esquecimento” (II, § 17, p. 47). “Tudo é efêmero, tanto para quem lembra como para quem é lembrado” (IV, § 35, p. 66). “Recebe sem arrogância, devolve com facilidade” (VIII, § 33, p. 119).
Outras soam melhor como definições, distinções, que ainda que sendo de cunho estoico, são formuladas a partir da experiência do homem comum. Eis dois exemplos: “E bem-afortunado é o que concede uma boa Moira a si mesmo. E boa Moira são as boas transformações, as boas mudanças, os bons impulsos, as boas ações da alma” (V, § 37, p. 83). “Não te inquietes com contingências futuras. Pois, caso seja preciso, tu as presenciarás como a mesma razão que usas agora no presente” (VII, § 8, p. 100).
O leitor acostumado com a literatura estoica não percebe muito a diferença, mas o estilo literário das Meditações é algo que eu quero ressaltar. Nesse sentido os apontamentos contidos na referida obra poderiam ser considerados como um dos “tesouros” de sabedoria que tem o propósito de conservar e colecionar provérbios que, em seguida, poderão ser consultados e memorizados por seu valor intelectual ou moral. Aristóteles, filósofo que precede Marco Aurélio, em alguns séculos, já havia reconhecido o valor desse tipo de sentença. Em sua Retórica ele sustenta que as máximas são empregadas nos discursos persuasivos uma vez que elas tratam de assuntos gerais, mas sempre referidos à ação:
A máxima é uma afirmação geral que não se aplica certamente a aspectos particulares, como, por exemplo, saber que tipo de pessoa é Ifícrates, mas ao universal; não a todas as coisas, como, por exemplo, quando se diz que a linha reta é o contrário da curva, mas só às que envolvem ações e que podem ser escolhidas ou rejeitadas em função de uma determinada ação (ARISTÓTELES, 2012, II, 21, 1394a, p. 138).
Os epigramas ou máximas embora não abstratos e sempre voltados para a ação, são expressões de crenças aceitas comumente sem maiores questionamentos. O que significa e implica que os epigramas e as máximas podem ser assumidos como guias apropriados para realizar uma ação ou como expressão-síntese de uma ação realizada. Ocorre que esta não é uma atitude propriamente estoica. Bem diferente da concepção de máxima indica acima (por Aristóteles), os estoicos não consideram que as intuições correntes dos seres humanos sejam fontes de conhecimento e muito menos fonte da moralidade. O estoicismo é uma escola famosa, desde a antiguidade, por sua tendência a contradizer as crenças e os hábitos arraigados.
As expressões recolhidas pelo Imperador-filósofo são tão expressivas que sua verdade não depende nem da autoridade de quem cunhou, nem de alguma teoria que poderia justificá-la. Eis um exemplo: “Uvas verdes, uvas maduras, uvas-passas, todas são transformações, não em direção a algo que não existe, mas para algo que que agora não existe” (XI, § 35, p. 163). Sabemos a origem desta expressão. Ela encontra-se nas Diatribes de Epicteto (Cf. III, 24, 88). Na referida obra a expressão quer dizer duas coisas: 1) indica que o envelhecimento natural pertence a todos os entes físicos; 2) indica também que a imediatez e a conjuntura espaciotemporal de toda mudança revela a passagem do tempo e não pode ser avaliada fora do tempo.
A citação é escolhida, muito provavelmente, por ser explícita, direta, muito vivaz, visualmente falando. Esta afirmação não foi escolhida por Marco Aurélio por ser uma afirmação de Epicteto, apesar deste ser um dos filósofos preferidos do Imperador e de quem ele recolhe um grande número de sentenças. A diferença é que ele não faz uso da ideias de Epicteto por causa da autoridade daquele e sim por causa da verdade expressa nas sentenças recolhidas:
Todos os corpos atravessam a substância do Todo como através de uma torrente, em conexão e sinergia com o Todo, assim como nossos membros em relação uns aos outros. Quantos Crisipos, quantos Sócrates, quanto Epictetos o tempo já engoliu. Que, em especial, o mesmo pensamento te ocorra em relação a todo e qualquer humano ou objeto (VII, § 19, p. 102-103).
O que eu disse até aqui é suficiente para afirmar o seguinte: filosófica e culturalmente, Marco Aurélio se distancia do uso clássico das sentenças. Ele não se refere a estas porque provém de homens cuja experiência e reputação os tem convertido em autoridade. Bem observada, a sua postura é algo novo em relação à tradição que o precedeu e aquela em que ele está inserido. Uma primeira constatação pode ser assim descrita: dentro do exercício proposto pelo Imperador-filósofo não cabe a autoridade.
O estoicismo não se resumo a técnicas
A postura do Imperador-filósofo, no que diz respeito ao uso que faz da tradição que o precede não pode ser compreendida a partir da hipótese de Foucault, que reduz a riqueza do estilo das Meditações a simples técnicas, em um contexto genérico do estoicismo:
Nos movimentos filosóficos do estoicismo no período imperial há uma concepção diferente de verdade e memória e um outro método de exame de si. Primeiro, vemos o desaparecimento do diálogo e a importância crescente de uma nova relação pedagógica – um novo jogo pedagógico em que o mestre/professor fala e não faz perguntas e o discípulo não responde, mas ouve e fica em silêncio. [...]. O indivíduo memoriza aquilo que ouviu, convertendo as afirmações que ouve em normas de conduta. A subjetivação da verdade é o objetivo dessas técnicas (FOUCAULT, 2004, p. 339; 343).
Ler o texto das Meditações sob a perspectiva indicada por Foucault, aproxima a reflexão do Imperador-filósofo do emprego da retórica praticada pelos cínicos e não pelos estoicos. Os cínicos, levando adiante o exame socrático, são conhecidos pelo uso da linguagem como desafio aos convencionalismos, as injustiças sociais e antes de tudo um desafio a autoridade daqueles que se consideravam investidos dela com alguma legitimidade. Um exemplo famoso da postura cínica podemos ler anedota do encontro entre o cínico Diógenes e o Imperador Alexandre, recolhida por Plutarco. É sempre bom ler o texto in extenso, tal como segue:
Os gregos estavam reunidos no istmo e haviam resolvido, com um decreto, que se agregariam a Alexandre na guerra contra os persas. Alexandre foi nomeado chefe da expedição, e recebeu as visitas de uma multidão de estadistas e de filósofos, que iam felicitá-lo pela escolha dos gregos. Ele esperava que Diógenes de Sinope, que vivia em Corinto, fizesse outro tanto. Mas, como Diógenes mostrasse que absolutamente não se preocupava com ele, ficando tranquilo no Cranium [Bairro e passeio na antiga Corinto], foi ele mesmo visitá-lo. Diógenes estava deitado ao Sol; e, quando viu chegar uma multidão tão grande que o procurava, levantou-se um pouco e fixou olhar em Alexandre, o qual o cumprimentou e perguntou-lhe se precisava de alguma coisa. “Sim”, respondeu Diógenes, “afasta-te um pouco do meu Sol”. Essa resposta – dizem – impressionou vivamente Alexandre. O desprezo que lhe mostrou Diógenes inspirou-lhe uma alta ideia da grandeza de alma desse homem; e, na volta, ouvindo seus oficiais zombarem de Diógenes, disse: “Para mim, se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes” (PLUTARCO, 2016, p. 35).
Esta anedota é importante, independentemente de sua veracidade. Ela indica uma clara oposição entre a atitude do filósofo e a do político. Ela revela quais os frequentes desafios de Diógenes e a sua atitude cínica perante a autoridade. É inegável que o estilo cínico, seco e direto, está presente nas Meditações, mas não compartilha os objetivos cínicos. Por exemplo, seguindo o conselho de Sêneca – um estoico e não um cínico –, o Imperador-filósofo desmitifica as representações com o emprego de imagens cruas, diretas e sem floreios:
Caso alguma vez tenhas visto uma mão ou um pé amputados, ou uma cabeça decepada, separada e lançada para longe do resto do corpo, considera que algo semelhante faz a si mesmo quem, no quanto depende de si, não deseja o que ocorre e aparta a si mesmo do Todo, ou realiza alguma ação antissocial. Tu te lançaste para longe do que é a unidade segundo a natureza: pois és, por natureza, parte, e agora amputaste a ti mesmo (VIII, § 34, p. 119-120).
O uso desse tipo de analogia, por ser frequente, pode ser considerado uma segunda característica da escrita de Marco Aurélio. A amputação dos membros é uma imagem desagradável, dolorosa, antinatural, mas ela permite ao autor “mostrar”, com precisão, que essa é a condição dos homens que não empregam a razão para regressar à união original do cosmos. Nesse sentido, as narrações e os exemplos desempenham um papel crucial no ensino estoico na medida em que impressiona o discípulo pela vivacidade das imagens provocando-lhe uma phantasía análoga à sua própria condição.
Despir as coisas de sua representação é um meio para captá-las em seu estado puro, ou seja, vulgar e natural. Mas esta não é estritamente sua própria condição, por isso mesmo ele precisa escrever para dar-se conta de suas falsas valorações das coisas. Na conhecida imagem sobre os manjares e o sexo, além de mostrar a futilidade dos apegos humanos, o próprio Marco Aurélio esclarece o sentido de sua comparação.
Quando, por exemplo, tiveres a representação de travessas com peixes assados e coisas comestíveis desse tipo, tem em mente que “Esta é a representação de um peixe morto, de uma ave morta ou de um leitão morto”. Da mesma forma, o vinho de Falerno “não passa de suco de pequenas uvas”, a toga pretexta “nada mais é senão pelos de ovelha embebido no sangue de caramujos”, as coisas relativas à conjunção das partes íntimas “são fricção mútua e secreção de pequena quantidade de muco antecedida por espasmos”. Tais são essas representações que, ao alcançarem as coisas em si mesmas e atravessá-las, percebem a qualidade de cada uma dela. Assim é preciso agir ao longo de toda a vida: quando as coisas forem percebidas como muito valiosas, é preciso desnudá-las, observar seu caráter ordinário e despi-las das narrativas pelas quais são exaltadas. Pois a vaidade é um poderoso e imperfeito raciocínio: é sobretudo quando pensar ocupar-te do é relativo às coisas nobres que podes te enganar (VI, § 13, p. 87).
Para os estoicos todo o ensino moral deve ser concreto e direto ao indivíduo. O pressuposto de tal exigência é duplo: em primeiro lugar, porque só se transforma uma alma particular através da incidência direta nela, tocando-a em seus traços mais próprios e “sensibilizando-a” para sua específica necessidade de mudar; segundo, porque tal ensino não é um princípio geral que cada um aplica conforme uma interpretação mas antes um curso determinado de ação, através de pensamentos, valorações e emoções associadas que determinam sua bondade. Nesse sentido, o texto deve servir de guia, uma espécie de exame crítico que o próprio autor faz sobre sua vida, suas impressões, seus juízos e suas emoções.
No entanto Marco Aurélio não se vale dessas imagens impressionantes apenas para mobilizar as almas ou conduzi-las através de sua própria reflexão. Seu objetivo é desfazer um certo discurso sobre esses temas e, após isso, insistir na comunidade de natureza humana e na trivialidade dos apegos humanos. Desse modo, a sensibilidade, a simplicidade, a contundência da verdade é, em última instância, o valor que tem tanto o saber gnômico referenciado frequentemente como o emprego de imagens que põe as coisas do mundo em seu justo lugar. Marco Aurélio considera que isso se deve mais ao abandono da própria natureza do que, de fato, a uma “profundidade psicológica”. A alma humana, em sua mais pura expressão, é razão: razão seminal que se encontra em todos os organismos vivos e em suas interações. Se é assim, não há razão para concentrar-se nas diferenças. Se a minha leitura das escolas helenísticas está correta, Marco Aurélio não compartilha dos objetivos cínicos e sim faz uso das descrições realistas para reforçar a filosofia estoica.
Em virtude do que foi dito antes, deveria ficar mais evidente porquê essas imagens não são mostras de pessimismo, como alguém poderia pensar. Sem dúvida, é difícil vislumbrar o eudaimonismo da doutrina estoica. Após rechaçar todo o apego às coisas e pessoas externas, advogar por uma supressão radical dos desejos e das paixões e consagrar ao sábio o cuidado de si, não resta lugar para reconciliação, ao menos no sentido habitual. Menos ainda, se nós deixarmos obscurecer pelos casos de Clarano – relatado por Sêneca, na Carta 66 –, do próprio Sêneca e Marco Aurélio, impassíveis quando atingidos pela enfermidade.
Mas, não há dúvida, no entanto, que o sábio estoico goza de estados emocionais, sente philia por seus congêneres e, antes de tudo, possui de um estado anímico tal que sua felicidade é indestrutível. Longe de ser uma postura pessimista, o estoico confia cegamente em sua razão e suas possibilidades; está certo de sua própria capacidade para obter a vida que sua própria condição lhe proporciona. Acredito que é um grave equívoco crer que a ética estoica seja uma ética para infelizes; o fato é que a atitude estoica resulta vantajosa na medida em que oferece uma direção para a ação inclusive quando os resultados externos da ação são completamente desfavoráveis.
Por esse caráter simplista e simplificador do discurso do Imperador, por esse tipo de vulgarização linguística, alguns intérpretes tem compreendido que seu texto realiza uma parrérsia, um certo tipo de confissão. É este último aspecto que eu gostaria de ressaltar da minha leitura das Meditações. No livro XI o autor se refere, explicitamente, a parrérsia, como segue:
A antiga comédia foi introduzida posteriormente à tragédia, sendo uma pedagógica franqueza de fala [parrhesia] e sendo útil, pela sua própria clareza, para reforçar aos humanos que não sejam arrogantes. Diógenes tomou isso para si tendo em visa um fim similar. Depois da Antiga comédia, examina o que é a média comédia e, depois, para o que a nova comédia foi introduzida, a qual, em pouco tempo, pendeu para os artifícios miméticos. Com efeito, não se ignora que haja ditos úteis por parte desses escritores, mas para qual escopo se dirige a intenção como um todo de tal poesia e dramaturgia? (XI, § 6, p. 155).
É preciso entender bem o que o conceito de franco falar [parrhesia] quer dizer. Me parece que ele designa coisas muito distintas de algumas das principais concepções em voga hoje em dia. A franqueza ou liberdade de expressão pode ser, como aparece no texto das Meditações, está ligado à linguagem cotidiana, inclusive vulgar da qual se valem os comediógrafos para provocar o riso. Distinto é o caso de Diógenes, o cínico, citado acima: ali o que se quer é mostrar o insulto que resulta do orgulho pela humanidade, pela cultura, por tudo aquilo que se considera tão relevante, socialmente falando. Para os cínicos o direito ao uso público da palavra, tão caro aos atenienses, é usado para desvirtuar a dignidade das instituições, bem como das convenções humanas que as fundamentam.
Porém, como já foi indicado, a parrérsia não é apenas uma prática política para os cínicos, ela é praticada como um ato através do qual o sujeito se liberta de si mesmo. A parrérsia deixa o sujeito livre e permite ao seu pensamento mover sem os entraves dos seus instintos e das necessidades, ou seja, dá aos pensamentos rédeas soltas. Novamente, gostaria de reiterar que não é este o espírito da expressão livre, cotidiana ou sensível para Marco Aurélio. Para ele, o exame crítico visa restringir toda a valoração automática, como afirma o trecho abaixo:
Deves te habituar somente a formar conjecturas se, quando alguém subitamente indagar “O que pensas agora”, com franqueza e no mesmo instante puderes responder que isso ou aquilo. Pois seria imediatamente claro, a partir das tuas palavras, que tudo em tua alma é simples, benevolente, próprio de um animal comunitário e que não se ocupa de volúpias ou de se devotar ao desfrute das aparências, bem como de não ser, em qualquer medida, litigioso, ciumento, desconfiado, ou ainda alguma outra coisa pela qual poderias te ruborizar ao expor o que tens em mente (III, § 4, p. 51).
Esse último sentido da parrérsia como uma espécie de confissão é o mesmo que se encontra no epicurismo. Esta técnica se torna necessária na terapia epicurista uma vez que algumas das crenças mais problemáticas com vistas a felicidade não estão a mostra e são passível de serem captadas com um simples olhar. Por isso o discípulo, no interior de sua amistosa comunidade, deve colocar diante de seu mestre todas as suas ações e receber deste uma orientação de palavras e ações que lhe permita realizar a terapia. Algo do que subjaz a esta concepção é compartilhado por Marco Aurélio e o estoicismo. Pois aparentemente a recomposição dos juízos que implica a terapia necessita, em muitas ocasiões, que estes juízos ou crenças sejam acessíveis ao sujeito que é examinado ou examina a si mesmo; pelo qual é necessário torná-la explícitas, trazê-las à consciência, vigiá-las. Se esse é o primeiro passo do exame crítico, o Imperador-filósofo vai além: ele postula um exercício autônomo, individual no qual não há mais médico senão a si mesmo, não há mais mestre que não sua própria razão.
Por tudo o que foi dito antes, a franqueza no falar não é, em Meditações, uma técnica de si, como pretende Foucault, e muito menos um exercício ao estilo de Inácio de Loyola. Minha discordância se deve ao seguinte: tanto no caso de Foucault como no de Inácio, existem poderes situados acima da razão, que subordinam o seu exercício e lhe dá sentido: a crença. O crente, por exemplo, realiza, disciplinarmente, as práticas..., acolhe o ensinamento do mestre tentando descobrir o que é que se espera dele, como pode encaixar os seus planos nos planos de Deus e, a partir daí, descobrir qual é sua função dentro da criação. O exemplo máximo do crente é o asceta: este parece crer que o mundo (tudo o que lhe é exterior) se lhe opõe e que, em consequência, a única alternativa para preservar sua tranquilidade e sua felicidade é a renúncia a tudo que lhe é exterior.
Nada disso encontra-se em Marco Aurélio. Ele, assim como o estoicismo romano, considera que a razão é a parte diretriz da alma, ou seja, ela não é em nada distinta da ordem universal, segundo a qual deus é a afirmação de si e, em nenhum sentido, uma subordinação. Por isso mesmo, sua atitude não é de renúncia ao exterior como uma estratégia de autoconservação (a exemplo do asceta); e sim de desprezo, no sentido mais exato do termo, ou seja, não apreciar, não dar valorar, uma vez que a apreciação ou valoração não tem qualquer poder sobre ela.
O pressuposto de fundo que inspira a investigação foucaultiana vincula de uma maneira intrínseca ascetismo e verdade, talvez pensando que o primeiro é requisito para a aquisição da verdade. É por isso que Foucault define a técnica de si como exercício necessário para a aquisição de certos estados:
[...] tecnologias de si, que permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um certo número de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a transformá-los com o objetivo de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade (FOUCAULT, 2004, p. 323-24).
O esquema de análise proposto por Foucault não serve para analisar as Meditações, pois os tais modelos de “análise de si” pressupõem, uma askesis, um conjunto de regras preestabelecidas, ditadas pelo mestre e apenas memorizadas pelos discípulos. Eis a diferença: o exercício proposto por Marco Aurélio é da mais estrita individualidade, muito embora existem alguns mecanismos estes não são concebidos como ordem estrita ou sequencialidade. Nas Meditações é o desdobramento da própria razão que dirige o exercício. Nesse processo, a autoridade do mestre, perde todo o sentido:
A razão e a arte racional são capazes de bastar a si mesmas e às suas próprias obras. Com efeito, movem-se a partir do princípio que lhes é familiar e caminham para um fim preestabelecido, razão pela qual chamamos de ações corretas aquelas que nos indicam o caminho reto. [...]. As coisas mesmas não tocam de modo algum a alma, nem possuem via de acesso a ela, nem podem alterá-la ou movê-la. Somente a alma altera e move a si mesma. E as coisas que lhe são apresentadas serão como os juízos que ela, por seu próprio comando, conceber por si mesma (V, § 14 e § 19, p. 77 e 78).
A plena consciência da autoridade única da razão faz da prática filosófica e da vida proposta pelo estoicismo, essencialmente, igualitária. Ela respeita somente o poder do raciocínio e por isso mesmo é universalista: a razão é a mesma para qualquer homem que se diga a si mesmo que é homem. Para alguém saber e ter consciência disso basta reconhecer que a razão e o seu uso racional é algo que lhe é próprio. Nesse sentido a prática filosófica, quando comparada a outras práticas de cuidado de si, não se encaixam no pressuposto geral das técnicas de si, como pretende Foucault. A razão dessa distinção pode ser entrevista no texto das Meditações:
A maioria das coisas que a multidão admira pertence ao gênero mais amplo do que é coeso por composição física ou por natureza: pedras, figueiras, vinhas, oliveiras. As que são admiradas pelos mais comedidos pertencem ao gênero do que é animado, como rebanhos de carneiro e ovelhas. As admiradas pelos mais agraciados pertencem ao gênero do que é relativo à alma racional, não por serem racionais, mas por estarem de acordo com as artes ou algum outro tipo de habilidade – ou mesmo por possuírem muitos servos. Mas quem honra a alma racional e política não se volta mais para nada disso. Acima de tudo, mantém tua própria alma com caráter racional e comunitária, conservando-a ativa e cooperando com os que lhe são semelhantes (VI, § 14, p. 87).
Diferentemente do epicurismo onde o exercício filosófico estava condicionado à eliminação das crenças falsas e uma vez atingido este objetivo abandona-se todo o interesse na razão, a vigília racional da alma estoica é permanente. É através da vigilância da razão que ela alcança sua comunhão com a natureza. A racionalidade comum se explica, então, como o mecanismo que permeia tudo o que é e existe. Através do uso da razão, cada um pode se considerar membro de um único organismo de maneira que seus interesses coincidam completamente com os interesses do cosmos. Isso só é possível graças à razão.
Conclusão
Tanto em tanto Marco Aurélio como em quem usa corretamente a razão fica evidente que o indivíduo é uma parte do todo, ou seja, tanto o indivíduo e sua razão em exercício é uma ação conjunta que visa se conformar ao plano universal. Nesse plano universal está pressuposto um certo componente emocional: a philia, o amor pelo outro – amigos e família –; porém, este resulta da completa compreensão dessa unidade que existe, naturalmente, entre todos os seres e não dos apegos às peculiaridades de um determinado ser ou do emprego de determinadas técnicas.
Por fim, a partir do reconhecimento da identidade, derivam-se uma série de compromissos a respeito da verdade, da perfeição, do fim último das ações que são aplicáveis irrestritamente a todo o real. Ao compartilhar a razão, o indivíduo compartilha um critério para agir, uma lei comum, uma cidadania que o liga ao todo. O mundo é uma cidade em que todos os seres participam da razão e, através desta participação, alcançam a felicidade. A felicidade não é um prêmio para o asceta, como resultado de suas renúncias, mas a identificação dos traços mais puros da razão, em exercício natural e progressivo.
A simplicidade da escrita e os diversos usos de epigramas, aforismos e outros recursos retóricos estão a serviço da vida razoável e não podem ser suprimidos, em detrimento de práticas estranhas à própria razão e seu uso natural. A razão em exercício é autônoma e não pode ser resumida ou vulgarizada como técnica, pois só se realiza em seu exercício atento de suas potencialidades, a um só tempo livre e ilimitada.
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
AURÉLIO, Marco. Meditações. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2023.
FOUCAULT, Michel de. Tecnologias de si. Verve, v. 6, 2004, p. 321-360.
HIPÓCRATES. Aforismos. São Paulo: Unifesp, 2010.
PLUTARCO. Alexandre e César: as vidas paralelas dos maiores guerreiros da antiguidade. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.