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Agostinho de Hipona e algumas
considerações sobre o tempo

Luiz Cláudio Gonçalves
Doutor em Letras(PUC-MG)
Professor adjunto do curso de Filosofia (DFCH/UESB)

O futuro nos atormenta,
o passado nos detém,
e por isso o presente nos escapa.Agostinho de Hipona e algumas
considerações sobre o tempo
(Flaubert, em carta a Louise Colet).

O tempo é algo que costuma exercer sobre a imaginação certo fascínio. Indicam-no, por exemplo, o tratamento que lhe dispensam as artes, tais como o cinema e a literatura. Não são raras as obras artísticas em que são sondados os mistérios da duração e o lado trágico da efemeridade, ou em que são exploradas as extravagâncias das viagens através dos séculos. Estimulados por esses curiosos enigmas, eventualmente nos aventuramos no continente. Quando é esse o caso, estejamos certos de que não estaremos a sós com nossas hipóteses, e nem precisaremos começar do nada. De fato, o tempo pode ser considerado um problema filosófico transversal, do qual se ocupam vários dos grandes autores ocidentais, sob as mais diversas perspectivas e em diferentes idades. Entre eles, um dos primeiros a tratar do assunto de modo mais atento foi Santo Agostinho (354-430).
Aurelius Augustinus nasce em Tagaste, atualmente Souk Ahras, na Argélia. A pequena comunidade era então uma colônia romana no grande território conhecido como Numídia. Inicialmente professor de retórica, em Milão converte-se ao cristianismo (386), e é mais tarde nomeado bispo de Hipona (395). No fim de sua vida, acompanha pessoalmente os estertores do Império Romano do Ocidente. Obra monumental, Agostinhofoi canonizado em 1298.Procuremos acompanhar aqui, em seus traços mais gerais, sua visão em torno da questão do tempo.

O tempo existe?

Em sua obra Confissões, escrita entre 397 e 400, Agostinho faz uma ponderada investigação do tema, no contexto de uma meditação sobre a criação. Seu interesse não surge de uma questão teórica, de uma dificuldade lógica ou de um estímulo exterior, mas sim de uma inquietação pessoal e obstinada, que se converte em uma pergunta filosófica: “Que é o tempo, então? Se ninguém me perguntar, eu sei; mas, se quiser explicar a alguém que me pergunte, não sei.” (Confissões, XI, XIV, 17). Por um momento, façamos nossa a pergunta. O que é o tempo? É algo que nos é externo? Existe apenas em nossa mente? Qual é o seu sentido para nós?
Numa visão ordinária, o tempo nos parece algo objetivo, que nos é exterior. Nele vivemos e é nele que todas as coisas acontecem. Assim, nossos pensamentos, palavras, ações, assim como nosso corpo e tudo o que nos circunda, são vistos como síntese de um interminável espetáculo que ocorre no tempo, dentro dele. Além disso, costumamos compreender esse mesmo tempo segmentado linearmente em três fatias: passado, presente e futuro, e dizemos habitualmente que qualquer evento pertence a uma dessas três faixas temporais. Algo é, foi ou será. A experiência comum parece confirmá-lo. Notamos a poeira que lentamente se acumula sobre uma mesa; ouvimos uma música; testemunhamos o envelhecimento do nosso próprio corpo; fazemos planos que abandonamos, e nos recordamos deles; vemos que uma flor se abre, murcha e morre. A partir de um número ilimitado de fatos, somos sempre capazes de dizer se algo já se passou, se está acontecendo, ou se ainda não aconteceu. Nesse sentido, tudo parece se pautar entre três seções temporais: o que não existe mais (que chamamos de passado); o que existe atualmente (que chamamos de presente); e o que ainda não existe (que chamamos de futuro).Ora, dessas três divisões, entretanto, é interessante notar que apenas o presente parece, de fato, existir.
Só os eventos presentes parecem ser, efetivamente, atualmente, uma vez que o passado não é mais, e que o futuro ainda não é. Mas, além de me parecer atual, o presente é instantâneo, e sempre me escapa, pois caminha do futuro para o passado. Tudo ocorre como se o passado devorasse continuamente o futuro, sem que nenhum dos dois se esgotasse. O amanhã será ontem, mas não sem antes ser, de algum modo, hoje. Mas de que modo? O que é isso que chamamos de hoje? O que é o presente? Se posso a ele me referir como algo que é, ele deve, de algum modo, existir.
Ora, não é difícil notar que o presente também carece de substância, assim como o futuro e o passado. O presente é, por sua própria natureza, evanescente. De fato, que tempo chamamos de presente? Se chamarmos de presente o ano atual, por exemplo, teríamos que admitir que todos os dias deste ano são presentes, o que seria absurdo. Teríamos, portanto, que subdividir o ano em períodos menores, e o mesmo faríamos com os meses, as semanas, os dias, as horas, e assim indefinidamente, num esforço de conceber e atingir uma fração temporal final, indivisível, que poderia ser, justamente, chamada de presente. Mas acabamos notando que nossa tarefa é infrutífera, e concluímos que, assim como o futuro e o passado, o presente também não existe, e só pode ser imaginado como um ponto sem nenhuma duração, que parece caminhar, veloz e insistentemente, para o passado, ou seja, parece caminhar para o que não existe mais. No fim da linha, talvez seja mais correto afirmar que o tempo – seja passado, presente ou futuro – não existe, ou que não é.
Mas, apesar disso, medimos as durações das coisas, e podemos até mesmo perceber a passagem do tempo na ausência de qualquer movimento aparente. Somos capazes de perceber diferentes intervalos temporais e, comparando-os entre si, chamamos alguns de mais longos, e outros de mais curtos. Podemos dizer, por exemplo, que uma hora se passou, assim como podemos dizer onde pretendemos estar dentro de uma hora. Medimos modalidades de tempo que não existem. De que modo o fazemos? Quando pronunciamos em voz alta duas frases, por exemplo, somos capazes de dizer, comparando-as, qual delas dura mais; e podemos pronunciar as mesmas duas frases mais rápida ou mais lentamente, e assim alterar sua duração. De qualquer forma, no entanto, uma vez pronunciadas, nenhuma das duas existe mais, pois repousam no passado. Como podemos dizer que algo que não existe tem certa duração? Começamos a perceber que, afinal para oferecer respostas satisfatórias a tais perguntas, não basta considerar o tempo apenas em sua visão vulgar, como algo substantivo. Precisamos considerar que o tempo ocorra, de alguma maneira, em nós mesmos. O tempo parece não carregar consigo mesmo sua medida. Nesse caso, seria o tempo então uma criação pessoal de cada um de nós? Seria ele, na expressão moderna, “subjetivo”? É neste ponto, e no intuito de remediar tantas incertezas, que Agostinho apresenta a conhecida alegoria da distensão da alma.

Memória, espera e presença

Quando Agostinho tenta explicar de que modo medimos o passado e o futuro, recorre a uma metáfora, pela qual revela um expediente típico da alma humana. Diz ele: “Assim, me parece que o tempo não é senão uma distensão, mas, de quê, não sei; porém, me admiraria se não fosse da própria alma” (Confissões, XI, XXI, 33). O tempo encontra sua medida em relação a uma alma, e não em si mesmo. A distensão é o modo pelo qual a alma se projeta ao longo do tempo, “através” dele, poderíamos dizer. E assim procedendo, a alma se torna consciente do tempo como situação fundamental da sua existência. Dito de outro modo: distendendo-se, a alma se apresenta como consciência. Vejamos como isso se dá, segundo Agostinho.
Diante do espetáculo do tempo e de seu transcurso incessante, nossa alma se atualiza a cada instante: ela é sempre atual, presente: eis o que podemos chamar de “consciência”. Ela se distende, se alonga no tempo, em parte como resultado de uma contradição fundamental: a consciência se dirige a vários objetos sucessivamente. Quando digo que o tempo “passa”, quero dizer que minha atenção é fugaz, e que a variedade lhe seduz. Num instante, por exemplo, sou atento a um certo ruído; em outro, a uma imagem ou a um sentimento; no instante seguinte, já outro detalhe exige meus cuidados, e assim se sucedem as minhas experiências, ilimitadamente. Nesse sentido, a consciência pode ser compreendida como um processo, pelo qual atribuo presença aos mais diferentes objetos. Eis o que chamo de presente.
Mas a atenção não é uma atitude independente. Ao contrário, minha atenção, presente, integra-se com o passado e com o futuro. É precisamente isso a distensão da alma, pela qual se conjugam três “presentes”: o presente do passado (memória); o presente do futuro (espera); e o presente do próprio presente (atenção).Esses três tempos, diz Agostinho, “estão na alma, de alguma maneira, e não os vejo em outro lugar: a memória presente do passado, a visão presente do presente, a expectativa presente do futuro” (Confissões, XI, XX, 26).
O que faço por meio da memória? Torno presente o passado, e sou capaz de mensurar o que não existe mais, e o faço pela atenção, pela presença consciente. Quando leio um poema, por exemplo, só posso fruir a rima e o ritmo porque durante toda a leitura “revivo”, pela memória, cada verso que já li. Do mesmo modo, entristeço-me, no presente, com as más lembranças, e alegro-me com as boas. O mesmo ocorre com o futuro, que a atenção torna atual por meio da espera. São os nossos projetos, desejos e esperanças, mas também nossas ansiedades, apreensões e temores. Torno presente uma expectativa, que pode me ser prazerosa e auspiciosa, mas que pode ser também funesta. Em resumo, nossos sentimentos e ideias são, em sua maior parte, extemporâneos, atualizações de eventos passados e futuros que se presentificam pela memória e pela espera. Tudo isso só é possível porque a alma se estende pelo tempo e, de certo modo, o constitui, pois o concebe e, assim, o torna mensurável.
A distensão da alma não é um conceito alienígena, a priori, criado por Agostinho com propósitos puramente teoréticos. Sua intenção não é acomodar o comportamento da alma a um modelo explicativo. A distensão da alma é, ao contrário, a conduta própria e essencial da alma em face da duração, e que Agostinho traduz por meio de uma metáfora. O que significa então medir o tempo? Medir o tempo – atribuir-lhe medida e sentido na vida cotidiana – é ter em conta a presença da consciência, sua atualidade, no modo da atenção. Pela presença atenta, a consciência é consciente de si mesma, e consciente também do tempo ao qual ela confere sentido. A distensão da alma é, portanto, alegoria da consciência mesma.

Conclusão: tempo e eternidade
O vulto da contribuição agostiniana para a questão filosófica do tempo se atesta pelas inúmeras discussões que desperta. Pode-se dizer que Agostinho reposiciona o problema, dando-lhe novos termos e contornos, diferentes daqueles que lhe dava a Antiguidade grega pagã. E isso se dá, principalmente, porque agora a questão é abordada tendo em vista uma realidade supratemporal: a eternidade. Não é possível compreender a concepção agostiniana do tempo ordinário sem ter em mente o seguinte: toda a discussão, desde o princípio, pressupõe a eternidade como realidade transcendente que é condição da existência de qualquer modo de duração. É precisamente a metáfora da distensão da alma o que nos ajuda a compreender a situação da existência humana em face da eternidade.
Mas é claro que faremos malse compreendermos a eternidade como um tempo muito longo, ou como a fusão de todos os tempos: a eternidade não é mensurável, tal como o são coisas grandes, pequenas, curtas ou longas. Nosso desafio é imaginar a eternidade pelo recurso às características típicas do tempo, que são as únicas de que dispomos. Neste ponto, nos ajuda a definição medieval – que é, em parte, herança agostiniana –, segundo a qual não há, na eternidade, nem princípio, nem fim, nem sucessão. O tempo, efêmero e marcado pela sucessão das coisas, não é uma parte da eternidade, e nem sequer uma parte desprezível dela, mas sim um modo, um aspecto dela. Assim, não seria justo dizer que o tempo é, para Agostinho, “subjetivo”, ou que o tempo adquire existência pela consciência. Ao contrário, o tempo é o meio de conformação da consciência à própria eternidade. A existência humana é um modo, uma imagem, dir-se-ia, da própria eternidade.
O leitor diligente que nos acompanhou até aqui talvez já pressinta os desdobramentos da concepção de Agostinho, que aponta outros tantos territórios – antropológico, moral, político, histórico, e mesmo escatológico. Enfim, para lembrar expressão de Eric Voegelin que parece traduzir bem a visão agostiniana, digamos que cada consciência se configura como “existência na tensão para a eternidade”. O homem, embora seja constantemente seduzido pela miríade do mundo em sua sucessividade e variedade, tem uma profunda vocação à eternidade. A alma, espraiando-se pela multiplicidade das coisas, parece contemplar livremente o tempo, como se estivesse “fora” dele, como uma espectadora (e expectadora!) privilegiada. Mas, para além deste inevitável comércio com a transitoriedade, ela se projeta também verticalmente, no sentido da permanência, da “eternidade imutável, que é a verdadeira eternidade do criador das mentes” (Confissões, XI, XXXI, 41).

 Referências bibliográficas

AGOSTINHO, Santo. Confissões.Tradução de Lorenzo Mammì. 2 ed. São Paulo: PenguinClassics Companhia das Letras, 2017.