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O realismo exemplarista:Uma breve análise da questão 46 do livro sobre oitenta e três questões diversas de Sto. Agostinho

Adriano Soler
Mestrando em Filosofia - PUCSP


O aristotelismo tenta definir a essência de uma coisa e assim, demonstrar quais características que determinada coisa deve ter de acordo com a sua natureza. Assim, surgem os aristotélicos com uma questão por demais complexa, que seria: O que é uma natureza, se ela é uma realidade superior e acima das coisas cuja natureza ela é? Ou ainda, se ela é uma construção mental que existe apenas em nosso entendimento das coisas e se assim for, em qual base ela é construída? Desta forma, se inicia o problema dos universais na filosofia medieval.

De acordo com JOSÉ FERRATER MORA, os universais, também chamados “noções genéricas”, ideias e entidades abstratas, contrapõem-se aos particulares ou entidades concretas. Ele afirma que o problema capital que se refere aos universais, e que já foi tratado por Platão e Aristóteles, mas que recebeu minuciosa dilucidação na idade média, refere-se à sua forma peculiar de existência. Trata-se de determinar que espécie de identidades são os universais e, embora pareça uma questão ontológica, teve e tem ramificações na lógica, na teoria do conhecimento e até na teologia.
No Comentário à Isagoge de Porfírio, Boécio apresenta a distinção  que há nos pensamentos de   Platão  e  Aristóteles,  nas  suas interpretações  ontológicas desta questão.
Contudo, Platão pensa que não somente os gêneros e as espécies e os restantes [termos] se inteligem como universais, senão também existem e subsistem mais além e como causa dos corpos. Aristóteles, por sua vez, pensa que são inteligidos como incorpóreos universais,  mas  que  subsistem  no sensível.
No texto mencionado acima, Boécio, não quer entrar na discussão de qual posição seria a mais apropriada, apenas pelo motivo de que estava tratando de filosofia aristotélica na obra. Podemos perceber, no entanto, a radical diferença que há entre esses dois pensamentos. Enquanto Platão entende que os universais subsistem  fora dos corpos o que dá  a  noção  de transcendência, Aristóteles  entende que eles subsistiriam nos entes sensíveis, em  uma  posição   de imanência. O pensamento de Platão acerca deste assunto passou
a ser denominado como
realismo transcendente
 enquanto o de Aristóteles como realismo imanente.
Por volta de um século antes de Boécio, Agostinho apresentou uma solução que segundo Klyma, poderia ter sido sustentada por ele como uma reconciliação de Platão e Aristóteles. Seu pensamento consistia na ideia que a universalidade residiria em um entendimento, o entendimento divino. E é exatamente este, o intuito do presente trabalho, fazer a análise desse pensamento de Agostinho expresso na questão 46 do “De Oitenta e Três Diferentes Questões” que retrata a posição denominada como Realismo Exemplarista, que compreende os universais como razões divinas.
Diferentemente de Platão que concebia as Formas como entidades que subsistiam a parte da mente, Agostinho considera as naturezas universais como existentes na mente divina. Assim, tais naturezas, que seriam exemplares universais da criação, serviriam como modelos para os singulares a que se referiam.
No texto, Agostinho inicia tratando da origem do nome ideias, expondo que o termo, fora criado por Platão, observando que, ainda que não se utilizasse esse termo anteriormente, as coisas denominadas como tais existiam e que, mesmo não havendo uma terminologia para tratar delas, elas eram inteligidas por outros, possivelmente com um nome diferente daquele que fora estabelecido pelo filósofo. Ainda defende o fato de que, certamente houve outros sábios antes de Platão, e estas coisas que ele denominara como ideias, eram tão importantes que não poderia haver sábios se não as inteligissem, ainda  que  as  tratassem  por outro nome.
Em seguida, passa a buscar compreender, o que eram as “ideias”, indicando que, em latim, poderia também se usar as expressões formas ou imagens, traduzindo palavra por palavra do texto platônico. Agostinho afirma que, caso o tradutor, queira chamar “ideias” de “razões”, estaria por certo, se afastando desta literalidade, pois logoi é o original grego para “razões” e não para “ideias”, contudo, o uso de “razões” não implicará em conflito conceitual relevante a ponto de se afastar do sentido do pensamento, pois “ideias” são certas formas ou estáveis e imutáveis razões das coisas, razões que não são formadas e, portanto, são eternas, sempre se mantendo do mesmo modo, estando contidas no intelecto divino. Não nascem, nem morrem, mas afirma-se que tudo que pode nascer e morrer ou que tudo que nasce e morre, é formado segundo elas.
É certo, que a alma não pode contemplar as ideias, somente a alma racional poderia fazer tal feito e através somente, da razão, que seria como um olho interior e inteligível, porém, não se pode achar que é toda e qualquer alma racional que tem tal capacidade, mas, segundo Agostinho, somente aquela que for santa e pura e que for declaradamente preparada para essa visão, ou seja, somente alcançará tal visão, aquela que se mantiver sã, sincera, serena e semelhante  àquilo  que
 pretende ver.
Agostinho prossegue em seus argumentos levantando a questão que, nenhum homem devoto, imbuído da verdadeira religião, ousaria negar, ainda que não enxergasse que, todas as coisas que existem, ou seja, tudo que está contido em seu próprio gênero de acordo com a natureza que lhe é própria, de maneira que possa existir, foi gerada por Deus, o autor delas, e que por esse mesmo autor, tudo o que vive é vivo e que toda a preservação segura e a própria ordem das coisas, a ordem das coisas, pela qual as coisas mutáveis perfazem seus cursos temporais de acordo com uma regra fixada, são sustentadas e governadas pelas leis divinas. E partindo destas premissas, como poderia  ser  dito  por  alguém   que  Deus  criou  tudo  de
 forma irracional?
Diante disto, continua, todas as coisas que fora criado, foi por uma razão, mas não por uma mesma razão, assim, um homem não teria sido criado pela mesma razão que um cavalo; cada coisa existente, é gerada a partir de sua respectiva razão, e todas as razões estão presentes na mente do Criador. Com efeito, se as razões de todas as coisas, estão presentes na mente divina e se nela nada pode existir que não seja eterno e imutável, e se Platão chama essas razões primeiras de ideias, então, estamos diante das verdadeiras ideias, porque são eternas e imutáveis. O que quer que exista, vem a existir, como quer que exista, por participação nelas.
Agostinho passa a conclusão de seu texto, afirmando que de todas as coisas estabelecidas por Deus, a alma racional, se sobressai a todas e é a que está mais próxima Dele quando é pura, e na medida em que se adere a Deus no amor, por Ele é iluminada com uma luz inteligível, passando a discernir essas razões, cuja visão é abençoadíssima. Tais razões, como foi dito, podem ser chamadas ou de ideias, ou de formas ou de imagens, ou de razões, e à maioria é permitido chamar como quiser, porém a poucos é permitido enxergar o que é verdadeiro.
O trabalho proposto está longe de ser completo e de esgotar todas as possibilidade de interpretação do texto de Agostinho, no entanto, podemos depreender deste texto, a questão da acessibilidade e o papel das ideias divinas na cognição humana. Nele, Agostinho estabelece que o reconhecimento da verdade seja dependente da iluminação divina, um tipo de luz inteligível das ideias divinas, acessível a poucos que são santos e puros. O pensamento de que o conhecimento da verdade é somente para alguns poucos santos e puros, parece ir contra a experiência que apresenta descrentes e pagãos entre os intelectuais na história, além de que, vai contra a posição aristotélica de que é possível adquirir conhecimento a partir de experiências, por um processo natural, sobre isso, Hoffe cita que há uma prova clara a favor de uma curiosidade inata ao ser humano e de uma alegria de descoberta às percepções sensíveis.
 No entanto parece que a interpretação dos agostinianos contemporâneos, apresenta uma visão menos radical do texto de Agostinho sobre a iluminação divina como forma de conhecimento da verdade, Gilson, aponta que Agostinho fala de uma visão em Deus e que nosso intelecto vê na luz da iluminação e não através dela a verdade de Seus próprios julgamentos e não o conteúdo de Suas ideias.
Desta maneira, esse pensamento de um realismo exemplarista, parece traduzir o pensamento de Agostinho acerca das razões eternas no intelecto divino, estabelecendo assim, um ponto de partida na tentativa de conciliar os pensamentos  de  Platão  com  o de Aristóteles.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGOSTINHO DE HIPONA. Sobre as ideias. In Questão 46 do Livro sobre oitenta e três questões diversas. Publicado Caderno de Trabalho Cepame, São Paulo, 1993.
GILSON, E. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Editora Paulus, Discurso Editorial, São Paulo, 2006
HOFFE, O. Aristóteles, Introdução. Editora Artmed, Porto Alegre, 2008
JOSAPHAT, C. Paradigma Teológico de Tomás de Aquino. São Paulo. Editora Paulos, 2012.
MCGRADE A. S. Filosofia Medieval. Editora Idéias & Letras, São Paulo, 2008
MORA, J. F. Dicionário de Filosofia. Ed. Publicações Don Quixote. Lisboa, 1978
REALE, G. Aristoteles. Editora Paulus, São Paulo, 1990