Surgimento e objetivo do cogito agostiniano
Daniel Gomes Cunha
Graduado em Filosofia (UESB)
Aurélio Agostinho, posteriormente conhecido como Santo Agostinho, bispo de Hipona, em uma obra de juventude, intitulada Contra os acadêmicos, formulou pela primeira vez uma concepção de cogito, muito antes de Descartes. Se esta ideia é anterior à filosofia moderna, ela guarda alguma semelhança? Com que objetivo Agostinho desenvolveu essa ideia? Responder estas perguntas é o nosso objetivo no que segue.
O cogito,em si, é uma expressão que indica a constatação do ato do pensamento. Ele pode ser descrito como um ato judicativo, que prova no próprio ato que o sujeito pensa, sabe e tem consciência disso. Descartes formula o seu cogito em vista da fundamentação do eu como instância segura e inegável, ante todo o relativismo cognitivo da filosofia. Agostinho formula o seu cogito para afirmar a certeza da própria auto existência, em detrimento das propostas do ceticismo reinante em seu tempo.
Na obra Contra os acadêmicos, Agostinho pretende chegar a uma certeza, apesar dos erros dos sentidos, que fosse demonstrada através da sua confrontação contra o ceticismo acadêmico. Posteriormente, utilizará o cogito para estabelecer o caráter transcendente da verdade, da imortalidade da alma e para provar a existência do eu (criatura) e Deus (Criador). Diferentemente da clássica concepção cartesiana, o cogito na obra agostiniana aparece de modo difuso, ao longo de diversas obras e em diversos contextos.
O que está posto em questão, para Agostinho, é que a dúvida cética não pode resistir à evidência do pensamento puro. O cogito seria uma porta de entrada para diversos temas de sua filosofia, desde a transcendência da verdade à prova da existência de Deus. Para explicitar melhor este conceito vamos contextualizar a discussão e apresentar alguns aspectos que fazem surgir a primeira formulação do cogito.
A superação do ceticismo da Nova academia
A obra Contra os acadêmicos aborda diversos temas caros à filosofia antiga, como o tema da felicidade, da sabedoria e da verdade. Esta obra foi escrita após Agostinho deixar o cargo de professor de retórica, enquanto estava num retiro na vila de Cassicíaco e aguardava ser batizado. Sua discussão é com o ceticismo da Nova Academia. Este movimento começou dentro da própria Academia de Platão, fundado inicialmente por Arcesilau e seguido porCarnéades, que foram sucessores de Platão. A tese principal dos adversários de Agostinho é que podemos ter certeza absoluta acerca de nada e jamais podemos chegar ao conhecimento da verdade. Por isso mesmo nada devemos assentir, para não cairmos temerariamente no âmbito das opiniões que nos conduzem ao erro.
Para o estoico Zenão, somente podemos conhecer: “aquilo que de tal modo é verdadeiro que se distingue do falso por marcas de dessemelhança, e que o sábio não devia opinar” (AGOSTINHO, 2008, I, IV, 14, p. 49). Deste modo, uma coisa se apresenta a nós de tal modo, que não pode ser o contrário daquilo que se apresenta. E podemos claramente perceber e distinguir cada objeto, pois, o compreendemos em sua realidade total. Os Novos acadêmicos não aceitam essa tese que indica a falibilidade dos sentidos. Se os sentidos nos enganam, não podemos ter uma representação correta de algo. Resultado, o sábio estaria submetido ao “naufrágio da opinião”:
Os desacordos entre os filósofos, as ilusões dos sentidos, os sonhos e os delírios, os sofismas e os sorites, tudo isso foi usado em defesa da sua tese. E como tinham aprendido do mesmo Zenão que não há nada mais desprezível que a opinião, deduziram com muita habilidade que se nada podia ser percebido e opinar era totalmente desprezível, o sábio nunca devia aprovar nada (AGOSTINHO, 2008, I, V, 11, p. 48).
Mas essa adesão ao ceticismo, em que o sábio deveria rejeitar dar seu assentimento é inviável para Agostinho. Afinal, se a nada podemos assentir, se tudo é enganoso e a certeza é impossível, como agir e viver no mundo? Para solucionar o problema da ação humana, sem a qual não se poderia demonstrar uma vida virtuosa e feliz, os céticos da Nova Academia, elaboraram o conceito de verossimilhança. A verossimilhança é definida ora como razoável (Arcesilau), ora como provável (Carnéades). Eles entendiam que dessa forma as nossas ações seriam guiadas por estes critérios, muito embora tais critérios não pudessem ser considerados verdadeiros.
Ora, não havendo nenhum critério de verdade, com o qual poderíamos nos conduzir no mundo, conforme apontava o Estoicismo, estava rejeitada toda possibilidade de encontrarmos alguma certeza. Na ausência de um critério, o cético adota a epoché(suspensão do assentimento), concepção oriunda do Pirronismo, como única postura adequada ao sábio diante de dúvida que ele não poderia dar seu assentimento. Mas se devemos agir no mundo, esta ação ocorrerá com base naquilo que for razoável (BROCHARD, 2009, p.124). A suspensão do juízo funciona muito bem em situações práticas. Seu ponto negativo é que nunca representa uma verdade absoluta, ou seja, funciona de acordo com a ocasião.
É impossível uma completa renúncia ao pronunciamento, dada a nossa condição de desejar sempre a própria felicidade. Se não sabemos de nada com certeza, as nossas ações se baseiam então, no que for provável. Mas como as ações prováveis estão sujeitas aos erros dos sentidos (BROCHARD, 2009, p.147), portanto, também seriam duvidosas. E por isso, não podem ser consideradas correspondentes à verdade, apenas parecem com a verdade, embora de modo algum possamos conhecê-la.
Se o Ceticismo se mostrava um obstáculo no campo filosófico para Agostinho, era preciso eliminá-lo, para que se pudesse seguir com seu maior desejo, a saber, conhecer a Deus e a Alma (AGOSTINHO, 1998, II, 7, p. 21). E que caminho seguir para chegar a Deus? Se não, pela própria alma que é capaz de encontrar a verdade. Não somente isto, como também, Agostinho não poderia considerar que as propostas céticas da Nova Academia, eram de fato uma continuidade coerente com a tradição platônica. Para Agostinho, a certeza poderia ser encontrada independente dos sentidos, pois se ela é do âmbito da alma. O problema do ceticismo, com ele, abandona o campo do agir e do imediato é tornar-se uma questão intelectual.
É em busca de uma fundamentação última da certeza que Agostinho critica o apelo do Ceticismo a respeito dos sentidos. Para os Novos acadêmicos, como os sentidos enganam, necessariamente não se pode considerar que as representações que temos como certas e verdadeiras. Os céticos o fazem, como forma de justificar que o sábio não deve assentir a nenhuma opinião. Não dar o seu assentimento, o sábio deve suspender o juízo e colocar em dúvida todas as opiniões. O problema, como notou Agostinho, é a universalização dessa prática. Em última instância, o sábio passaria a duvidar até do próprio saber e até que ele mesmo duvida. Agostinho então os desafia:
Eu, todavia, que ainda estou longe até da proximidade do sábio, sei alguma coisa dessas questões físicas. Efetivamente tenho por certo que o mundo é uno ou não é uno. Se não é uno, é de número finito ou infinito. Venha Carnéades dizer que esta proposição é semelhante a uma proposição falsa! Sei igualmente que este nosso mundo está assim disposto ou pela natureza dos corpos ou por alguma providência, e que sempre existiu e sempre existirá, ou que, tendo começado, nunca terminará, ou, não tendo começado, terá um fim, ou que começou a existir e não permanecerá para sempre. Tenho ainda inúmeros outros conhecimentos físicos deste gênero referentes ao mundo. Estas proposições disjuntivas são verdadeiras e ninguém pode confundi-las com alguma semelhança com o falso (AGOSTINHO, 2008, III, X, 23, p. 72).
O terreno para se estabelecer a argumentação do cogito começa então a se apresentar, justamente pela inconsistência das críticas de Arcesilau e mais especificamente a de Carnéades. Pois, se Zenão está correto ou não, de todo modo, a conclusão é que a verdade se distingue da falsidade e consequentemente obtém-se uma certeza. Basicamente o cogito começa a surgir na resposta de Agostinho às proposições de Carnéades.
Os elementos discutidos neste momento, revelam os elementos a partir dos quais surge o cogito agostiniano, centrada nas experiência do próprio eu, concebido como algo consciente não apenas de sua ação (e seus limites cognitivos), mas consciente que é um ser pensante, amante, que erra e tem consciência disso.
[...] mas sem qualquer imagem enganosa da fantasia ou da imaginação, é coisa absolutamente certa que sou, que conheço e que amo. Nestas verdades nenhum receito tenho dos argumentos dos académicos que dizem: Que será se te enganares? – Pois se me enganar, existo. Realmente, quem não existe de modo nenhum se pode enganar. Por isso, se me engano é porque existo. Porque, portanto, existo, se me engano, como poderei enganar-me quando me engano? Por conseguinte, como seria eu quem se enganaria, mesmo que eu me engane não há dúvida de que não me engano nisto: – que conheço que existo (AGOSTINHO, 2000, XI, XXVI, p 1051-52).
Se o fato de não ser possível dar o assentimento a algo verdadeiro era um problema para os céticos; para Agostinho, ter consciência do erro é um meio para provar algo fundamental e distintivo do ser humano: sua existência. Ao responder as críticas dos céticos em relação a ausência de um critério para estabelecer a verdade e não se contentando com a mera suspensão do juízo, Agostinho elabora uma reflexão que supera o ceticismo e instaurar as bases a partir do qual seria possível não duvidar da existência do eu, condição para afirmar, a existência de algo externo ao eu.
O objetivo do cogito agostiniano
De modo geral, o argumento do cogito na obra Contra os acadêmicos aparece situado dentro de uma finalidade clara: combater o ceticismo acadêmico e seu pressuposto fundamental, ou seja, a impossibilidade de conhecer a verdade. Contra a postura dos céticos acadêmicos que se contentavam em seguir o provável, o argumento agostiniano, representa a evidência da auto existência e um modelo que será seguido em outras obras. A certeza do eu abre espaço para o estabelecimento de outras certezas, a saber, a certeza do ser acerca do próprio saber, a impossibilidade de duvidar que se duvida e a certeza a partir da dúvida. Estas formulações aparecem em diversas obras de Agostinho.
Como dissemos antes, os céticos da Nova Academia se esforçaram para persuadir que “uma coisa pode ser diferente do que parece”; se esforçavam para desacreditar a “força do testemunho dos sentidos” como sendo enganosos, assim “nada nos aparece” (AGOSTINHO, 2008, III, XI, 24, p. 72). Para Agostinho, todo esse empenho engenhoso, não chega nem perto de convencer, nem pode se dizer com isso que os acadêmicos pretendem enfraquecer o testemunho dos sentidos, dada a fraqueza da sua argumentação. Se a questão colocada é como se pode saber que o mundo existe, uma vez que os sentidos enganam, Agostinho responde que chama de mundo, tudo que aparece aos seus olhos e é por ele percebido (AGOSTINHO, 2008, III, XI, 24, p. 72).
Se os sentidos nos enganam, visto que uma coisa pode ser diferente do que parece, logo, para o acadêmico, nada nos aparece. A questão para Agostinho não é que o falso não pode parecer verdadeiro, mas que tanto de uma forma ou de outra, nada deixará de parecer. Visto que o acadêmico não poderá negar o fato de algo lhe parecer, isto é, da simples percepção, a discussão torna-se inútil. Há, de fato, uma percepção que é íntima, cuja ocorrência é inegável. Se não se pode conhecer, não se pode problematizar o conhecimento.
Nunca os vossos raciocínios puderam enfraquecer a força do testemunho dos sentidos a ponto de convencer-nos que nada nos aparece e jamais ousastes tentar fazê-lo. Mas empenhastes-vos em persuadir-nos que uma coisa pode ser diferente do que parece. Eu, porém, chamo mundo a tudo isso, o que quer que seja, que nos contém e sustenta, a tudo isso, digo, que aparece a meus olhos e é por mim percebido como comportando terra e céu, ou o que parece terra e céu. Se disseres que o que me aparece não é nada, nunca poderei errar. Pois erra quem temerariamente aprova o que lhe parece. Dizeis, efetivamente, que o falso pode parecer aos sentidos como verdadeiro, mas não negais o fato de parecer. Não restaria absolutamente nenhuma razão para toda essa discussão em que vos aprazeis em triunfar, se não só nada sabemos como também nada nos aparece. Mas se negas que o que me parece é o mundo, trata-se de uma questão de palavras, pois eu disse que chamo mundo o que me parece (AGOSTINHO, 2008, III, XI, 24, p. 72).
O propósito de Agostinho é mostrar que é possível saber, que é possível haver conhecimento humano irrefutável. Se alguém estiver dormindo e se enganar, e em decorrência disso afirmar estar certo de sua experiência, seria impossível negar que se pensava estar certo. Logo, é impossível negar que ou se estava certo ou errado. Mesmo dormindo, temos certa impressão deste mundo e das coisas que o compõem, sejam elas verdadeiras ou não. Essa questão não depende do estado de sono ou vigília. É impossível, segundo Agostinho, rejeitar a validade da questão dado o estado de sono.
Mas é impossível que isso seja falso [isto é, que falei ou não falei durante o sono]. E não digo que percebi isso por estar desperto, pois poderias objetar que isso poderia parecer-me também no sono e consequentemente pode ser muito semelhante ao falso. Mas se há um mundo e seis mundos, é evidente que há sete mundos, qualquer que seja o meu estado, e eu afirmo sem temeridade saber isso. Demonstra-me que o sono ou a loucura ou as ilusões dos sentidos podem tornar falsa esta conclusão ou as suposições disjuntivas (AGOSTINHO, 2008, III, XI, 25, p. 73).
Nossa mente é capaz de perceber certas coisas como verdadeiras, independente se estamos despertos ou não, a exemplo disso, Agostinho passa a elencar as verdades matemáticas, para ilustrar o seu argumento de que o nosso conhecimento acerca de coisas verdadeiras é independente dos sentidos. Por este motivo, ainda que estejamos dormentes, em pleno sono, existem certos conhecimentos que não podem ser invalidados. As falsas aparências são domínios dos sentidos corporais, apesar disso, os sentidos, errados ou não, informam algo à mente, que de fato, percebe e tem a certeza da sua própria percepção. Ainda assim, existem certezas independentes dos sentidos, se certos ou errados; se em estado de sono ou de embriaguez. Novamente, a dúvida, não é o motivo para suspender o juízo e sim a base a partir da qual o eu pode afirmar a sua identificação de ser consciente e capaz de saber.
Quem, porém, pode duvidar que a alma vive, recorda, entende, quer, pensa, sabe e julga? Pois, mesmo se duvida, vive; se duvida lembra-se do motivo de sua dúvida; se duvida, entende que duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que não deve consentir temerariamente. Ainda que duvida de outras coisas não deve duvidar de sua dúvida. Visto que se não existisse, seria impossível duvidar de alguma coisa (AGOSTINHO, 1994, X, X, 14, p. 328).
É por isso que Agostinho considera injusta a exigência, atribuída pelos céticos, aos sentidos. Afinal, se o que percebemos através dos sentidos externos, o percebemos com alguma deformidade ou com variações de perspectivas, o importante é avaliar estas percepções a partir da certeza do cogito, presente em cada um. Longe de apenas nos restringir em não assentir a nenhuma perspectiva, por se tratar de uma ilusão. É, antes de tudo, auto evidente que a nossa própria intuição, constata no intelecto, que obteve uma percepção (Cf. AGOSTINHO, 2008, III, XI,26, p. 73).
Seguindo a argumentação de Agostinho, podemos considerar que um remo imerso na água, produz imagem distorcida. Sabendo da causa que faz produzir tal distorção não se pode alegar falsidade sobre a percepção, pois já se considera a causa, pelo qual se vê com deformidade. Logo, mesmo com distorção e numa perspectiva incorreta, não é incorreto que a perspectiva é percebida com distorção. Assim sendo, uma coisa é a distorção, outra é estar errado (Cf. AGOSTINHO, 2008, III, XI, 26, p. 73). A função da razão é corrigir as distinções dos sentidos externos.
É assim, na discussão com os céticos, que Agostinho demonstra como é injusto exigir demais dos sentidos, bem como ele falham ao estabelecer a validade do seu argumento, apelando para os erros dos sentidos. Falta aos céticos o reconhecimento da autopercepção. Está claro que para Agostinho, os sentidos podem fornecer certo conhecimento, mesmo que não seja um conhecimento certo. No entanto, isso apenas reforça a argumentação do cogito no sentido em que ele se torna evidência de uma certeza, a da própria existência. Sendo assim, o cogito sabe ao menos alguma coisa, como argumento o filósofo africado:
Pois não vejo como o Acadêmico possa refutar alguém que diz: sei que isso me parece branco, sei que isso deleita meus ouvidos, sei que este odor me agrada, sei que aquilo tem gosto doce, sei que aquilo é frio para mim (AGOSTINHO, 2008, III, XI, 26, p. 73).
Para que se pudesse pôr em dúvida a própria percepção dos sentidos, seria necessário, então, pôr em dúvida a certeza mais inabalável do ser: a sua existência. De nada adiantaria ao cético da Nova Academia, se valer de uma centena de exemplos, mas se o mesmo não puder negar com isto, que alguém em si mesmo percebe algo. É essa certeza absoluta e interior que permite que alguém declare conhecer algo, com certeza, independente da semelhança ou não com o falso (Cf. AGOSTINHO, 2008, III, XI, 26, p. 74).
Fica evidente, na formulação de Agostinho, que o lugar da verdade é no inteligível, em conformidade com a noção platônica de dois mundos, um inteligível e outro sensível, “que se nos manifesta pela vista e pelo tato” (AGOSTINHO, 2008, III, XVII, 37, p. 80). De fato, no sensível e em virtude exclusiva dos sentidos, o conhecimento não pode ser encontrado. O filósofo recorre uma instância superior, à uma evidência intelectual percebida, que pode ser denominada intuição intelectual. A respeito do aspecto necessário da verdade e seu caráter transcendente, Charles Boyer, comenta em sua obra L'idée de véritédanslaphilosophie de Saint Augustin, que o nosso conhecimento do verdadeiro não está subordinado aos sentidos, muito além disso:
Há os olhos interiores, que lhe abrem o mundo inteligível; existe uma visão intelectual, uma intuição que capta objetos [aquém] do tempo e do espaço. A Sabedoria, a Justiça, o Bem Moral, as leis dos números, os preceitos da dialética. São tantos os clarões percebidos neste País de cuja inteligência os ataques dos céticos não podem violar a fronteira. Aí está o lugar da verdade e da certeza (BOYER, 1921, p. 30, tradução nossa).
Com relação ao tema do cogito e os sentidos, Agostinho está apenas evidenciando o aspecto intelectual, no qual após sofrida a paixão, a alma interpreta a sensação produzindo uma impressão. Neste momento não está em jogo a questão da origem dos sentidos e do intelecto, num sentido de complementaridade na alma, ele até concede que de fato os sentidos podem nos enganar. O objetivo do cogito agostiniano é demonstrar que percepção operada pela alma, de que há coisas às quais não se pode enganar, é algo irrefutável e ponto de partida para o conhecimento das coisas externas e também para corrigir a incompletude dos sentidos.
Conclusão
O nosso objetivo foi demonstrar que o sentido fundamental do cogito agostiniano se apresenta de maneira difusa, na crítica estabelecida por Agostinho contra o ceticismo da Nova Academia. Mas fica claro, a medida em que compreendemos, em que termos essa crítica se desenvolveu e como esse conceito foi elaborado, no panorama da confrontação agostiniana com o referido movimento. Esperamos ter deixado claro que o cogito agostiniano enquanto, a evidência da certeza mais fundamental, está ligado à nossa própria existência.
Foi essa elaboração do cogito que concedeu à filosofia de Agostinho a importância do tema da certeza e do conhecimento, contra às objeções céticas, para o estabelecimento de um critério de verdade. O cogito, como o pudemos compreender, ressalta o aspecto transcendente da verdade. Além disso, afirma que os erros dos sentidos não podem afastar a possibilidade de chegar à certeza, dada a fragilidade das alternativas propostas pelos céticos. É surpreendente compreender que o cogito agostiniano, ao longo de sua obra vai permitir apresentar, justificar e conciliar crença e filosofia.
* O presente texto é uma versão, com título diferente e acréscimos, de um capítulo do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Licenciatura em Filosofia apresentado na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), sob orientação do professor Dr. Luiz Cláudio Luciano França Gonçalves.
Referências bibliográficas
AGOSTINHO, Santo. A trindade. São Paulo: Paulus, 1994.
______. Solilóquios e A vida feliz. São Paulo: Paulus, 1998.
______. A cidade de Deus. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000 [Volume II: Livros XI a XV].
______. Contra os acadêmicos. A ordem. A grandeza da alma. O mestre. São Paulo: Paulus, 2008.
BOYER, Charles. L'idée de véritédanslaphilosophie de saint Augustin. Paris, 1921.
BROCHARD, Victor. Os céticos gregos. São Paulo: Odysseus, 2009.