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O governo das forças vitais:
Michel Foucault e Alejandro Amenábar

Alan dos Santos
Mestre em Filosofia Política. Doutorando em Educação, Arte e História da Cultura

«Basta: está chegando a hora em que a política terá um significado diferente", escreveu Nietzsche na seção 960 de A Vontade de Potência. Nietzsche provavelmente rejeitaria o título de profeta que de certo modo estou lhe atribuindo; entretanto, pode-se dizer que sua temeridade tornou-se realidade: a política, hoje, é muito mais extensa do que na sua época (séc. XIX), possui dispositivos de controle muito mais eficazes e faz-se obedecer mais sutilmente, mesmo para aqueles que se dizem portadores de senso crítico.


Mais do que isso: nesse começo do séc. XXI, a política tem como paradigma de governo não necessariamente a violência punitiva, mas a gestão calculista da vida, o governo da subjetividade e das forças vitais dos corpos, abarcando questões que sobrepujam a atuação política enquanto tal, adentrando ao campo biológico (vida natural). É o caso do “biopoder”, conceito elaborado por Michel Foucault (2010)paradesignar a ação política que se caracteriza pela inclusão da vida biológica em assuntos governamentais, gerando estratégias que visam não mais o disciplinamento dos corpos em espaços previamente demarcados, mas um controle populacional direcionado ao homem enquanto espécie e enquanto população.
Assistimos no Ocidente a uma profunda transformação dos mecanismos de poder. Ao antigo direito do soberano de fazer morrer ou deixar viver se substitui um poder de fazer viver ou abandonar à morte. Há nisso uma grande mudança de paradigma social. O poder passou a se organizar em torno da vida, sob duas formas principais que não são antitéticas, mas confluentes em sintonia uma com a outra numa espécie de complementariedade de controle: as disciplinas, uma anátomo-política do corpo humano, elas têm como objetivo o corpo individual, considerado como uma máquina a ser aprimorada. Por outro lado, vemos o surgimento de uma biopolítica da população, do corpo-espécie; seu objetivo é o corpo vivente, os processos de desenvolvimento biológico (nascimento, mortalidade, saúde, etc).
Para demonstrar essa nova dimensão política que gira em torno da vida individual e coletiva vale destacar o filme Mar Adentro, dirigido por Alejandro Amenábar (Fox Video Brasil, 2005), que tem como o tema principal o direito que temos de dispor da vida nas sociedades neoliberais contemporâneas.
O caso Ramon e o poder sobre a vida
Se o governo da vida pertence também às instâncias político-jurídicas; se as instituições diversas organizadas em torno do Estado moderno e do mercado capitalista são autorizadas a pronunciar discursos sobre a verdade da vida e da morte, lanço então a seguinte questão: basta apenas a vontade do sujeito para dispor da própria vida? Pode um sujeito reivindicar legalmente o seu direito de morte?
Esse é o dilema com que se depara Ramon, personagem principal de Mar Adentro. Ele vive quase trinta anos debilitado em uma cama sob cuidados de sua família; sua única janela para o mundo é a de seu quarto de vista ao mar por onde tanto viajou e aonde sofreu o acidente que interrompeu sua saúde: certo dia, ao mergulhar na maré cheia, Ramon, que era marinheiro, quebrou o pescoço e tornou-se tetraplégico, imobilizando por completo o movimento do pescoço aos pés. Desde então, o objetivo único de Ramon é dispor da própria vida e desfrutar do direito de morte. Mas, sozinho, ele não o consegue fazer. É necessária a ajuda de outra pessoa. Ilegalmente, a família e amigos não colaboram com a sua vontade; a saída, portanto, é recorrer ao Estado a legalidade para poder exercer uma morte digna.
Abaixo, uma parte do diálogo entre Ramon e a sua advogada (adaptado para texto):
- Por que quer morrer? - pergunta a advogada, sentada numa cadeira à beira da cama de Ramon.
- Quero morrer porque a vida para mim, nesse estado... a vida assim não é digna; então; bem; eu entendo que alguns tetraplégicos possam se sentir ofendidos quando eu digo que viver assim não é digno; mas eu não estou julgando ninguém; quem sou eu para julgar quem quer viver; e por isso eu peço que ninguém me julgue e ... nem mesmo a pessoa que me prestar ajuda para morrer - responde Ramon.
- E acha que alguém vai ajudar você?
- Isso vai depender dos que controlam as coisas, e de que eles superem seu medo, mas... me escute, não é para tanto, a morte sempre esteve conosco e sempre estará, pois, é o fim de todos nós, não é? Ela faz parte da vida; por que ficam escandalizados se digo que quero morrer, como se fosse uma coisa contagiosa - responde, sempre com a expressão serena.
- Se chegarmos ao tribunal, perguntarão por que não busca uma alternativa melhor para a sua incapacidade; por que recusa a cadeira de rodas, por exemplo... - insiste a advogada.
- Aceitar a cadeira de rodas seria como aceitar migalhas da liberdade que já tive. Olha, pense nisso: Você está sentada aí a menos de dois metros e o que são dois metros? Uma distância insignificante para qualquer ser humano, mas, para mim, cobrir esses dois metros necessários para chegar até você e poder ao menos tocá-la, é uma viagem impossível. É uma utopia; um sonho. Por isso eu quero morrer. - finaliza Ramon. (AMENÁBAR, 2005)
Ramon deseja morrer; não considera digna uma vida em suas condições. Não pretende tornar isso uma regra ou mesmo afrontar as normas estabelecidas, apenas deseja morrer. Mas a vida não é um direito todo seu; a vida enquanto tal pertence a uma espécie, pertence também aos poderes, aos códigos legais. É a lógica biopolítica, essa espécie de estatização e politização da vida biológica:
Parece-me que um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi, é o que se poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico. (FOUCAULT, 2010; 202)
Durante o século XIX houve uma transmutação política decisiva no Ocidente: a vida, vista como um elemento fora da política - um elemento natural - transformou-se no principal tema político e no principal objeto a ser governado e controlado pelas relações de poder. Nas palavras de Foucault, houve uma “tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo”, “uma espécie de estatização do biológico”. É o nascimento do biopoder.
Com o advento da biopolítica, o homem ocidental aprendeu pouco a pouco o que é ser uma espécie viva, ter corpo, condições de existência, saúde individual e coletiva. Aprendeu que a vida é uma propriedade (é triste escrever isso) compartilhada entre o humano e as tecnologias modernas de poder.
Voltando ao filme, tão logo as pretensões de morte de Ramon tornaram-se públicas, um agente da sociedade biopolitizada – um padre católico –tentou dissuadir Ramon da ideia de morrer. Ele pronunciou-se numa rede de TV aberta com o objetivo de alcançar a atenção de Ramon. O padre, ciente da insistência de Ramon em reivindicar o direito de morte, tratou de ir visita-lo sem ao menos comunicá-lo. O diálogo entre Ramon e o padre é intenso, repleto de intensidades poéticas, momentos filosóficos, divergências políticas, como podemos ver no trecho abaixo:
- [a fala inicia-se cortada] como nós estamos dentro da eternidade, a vida não nos pertence; então, é claro, nós levamos ao extremo ridículo a noção burguesa de propriedade privada. – diz o padre, ao tentar explanar o sentido da vida.
- A igreja sempre foi a primeira a sacramentar a propriedade privada - interfere Ramon, ironicamente. E continua: - Liberdade para escolher as minhas crenças; não as suas crenças, tampouco decidir sobre a sua vida!
O padre faz uma réplica e a fala não aparece. Ramon prossegue:
- Por que a igreja mantem com tanta paixão essa postura de terror para com a morte? Por que sabe que perderia grande parte dos seus fiéis se as pessoas aprendessem a perder o medo...
O padre o questiona: - Não lhe parece demagogia falar-se em morte com dignidade? Por que não diz, em alto e bom tom, que vai se matar e pronto!
Ramon o responde:
- Não deixa de me surpreender que demonstre tanta sensibilidade quanto à minha vida, levando em conta que a instituição que o senhor representa aceita, hoje em dia, nada menos que a pena de morte, e durante anos condenou à fogueira aqueles que não pensavam corretamente; agora quem está fazendo demagogia, aqui, é você. Mas deixando o eufemismo... eles teriam feito isso comigo, não é? Me queimariam vivo... me queimariam por defender minha liberdade.
- Uma liberdade que elimina a vida não é liberdade - retruca o padre.
- E uma vida que elimine a liberdade também não o é! - insiste Ramon, sem titubear. (AMENÁBAR, 2005)
A normatização e a pressão política exercida sobre a vida de Ramon ilustra a noção foucaultiana sobre o que é biopoder, o poder sobre a vida, a estatização do biológico. Ele sente o poder do discurso impessoal, o discurso normativo que visa controlar a realidade humana como se se tratasse de um único corpo biológico a ser administrado. O biopoder reduz o humano ao biológico. Mas Ramon não é qualquer um, ele é o outro, o diferente, uma minoria social. O outro que a biopolítica não enxerga, e por isso ele resiste ao controle político da vida.
Do poder soberano ao biopoder
Segundo Foucault (1997) um fator determinante para que a biopolítica se constituísse como tecnologia de poder foi a acumulação de indivíduos na sociedade, isto é, o surgimento da população. A expansão demográfica na Europa, em especial no século XVIII, levou a uma ampla produção teórica sobre artes de governar - a biopolítica se apresenta como uma delas.
A biopolítica surgecomo uma tecnologia de governo destinada à população. E o surgimento da população enquanto fenômeno político é algo recente, data da modernidade ocidental. O biopoder é moderno, uma tecnologia de poder criada recentemente pela cultura política ocidental e, portanto, algo a que devemos nos ater hoje. A filosofia política contemporânea, por exemplo, encontra-se às voltas e atenta para a questão do biopoder. Diversos filósofos de nosso tempo discutem a questão biopolítica: Giorgio Agamben, Antonio Negri, Michael Hardt, Paul Beatriz Preciado, Paul Rabinow, Roberto Esposito, dentre outros – cada qualseguindo seus propósitos de pesquisa.
Uma boa maneira de compreender o conceito de biopoder em Foucault é compará-lo com o poder soberano, esta modalidade de poder pré-moderno, pré-liberalismo político. De certo modo, o biopoder – o poder sobre a vida – nasce para resistir e contrapor o poder soberano – o poder sobre a morte.
Em termos históricos o poder soberano coincide com as monarquias absolutistas, com o mercantilismo, com a passagem do mundo feudal para o mundo moderno. O poder soberano é um poder sobre o território. Dentro dos limites de um território – vale lembrar que a consolidação das nacionalidades europeias aconteceu nesse período histórico - haveria a existência de um soberanoque detêm poder total sobre aquele território. Nada poderia afrontar a soberania do rei. Caso alguém ousasse transgredir uma norma ou resistir ao comando do rei, tornar-se-ia legítimo dispor da vida do súdito rebelde. Por isso que Foucault chamou o poder soberano de “poder de morte”, pois trata-se de um poder capaz de tirar a vida, de submeter o corpo à morte. O biopoder inverteu essa lógica para o fazer viver e deixar morrer. No caso de Ramon, o Estado atuou no sentido biopolítico do deixar morrer: não concedeu o direito de morte a ele, abandonou seu corpo à morte, uma morte lenta, uma morte sofrida, sob um frágil pretexto de “fazer viver”.
A morte dos súditos rebeldes pelo poder soberano dar-se-ia em praça pública para servir de exemplo para o restante da população. Havia uma ritualização da morte. O súdito teria direito a fazer um último pedido ao soberano, teria direito de ver a sua família pela última vez. Tratava-se, pois, de um rito de passagem do mundo material para o mundo espiritual, tendo em vista que o poder soberano estava atrelado a uma cosmovisão de cunho cristã oriunda do período medieval e da cristandade.
O biopoder, o poder sobre a vida, por sua vez, nasce para contrapor o poder sobre a morte, o poder soberano. Em termos históricos o biopoder coincide com o liberalismo, que traz em seu escopo antropológico a ideia de que o homem possui uma dignidade natural a ser respeitada pelo contrato social, a ideia de que o homem possui uma natureza universal, possui direitos universais que precisam ser acatados e respeitados pelo Estado. A proclamação dos Direitos do Homem na Revolução Francesa de 1789 é um documento ilustrativo dessa concepção liberal de homem. A citação abaixo de Foucault deixa claro que o biopoder nasceu e se desenvolveu dentro dos marcos históricos do liberalismo político e econômico:
Pareceu-me que não se podia dissociar esses problemas do quadro de racionalidade política no interior do qual surgiram e adquiriram sua acuidade. Ou seja, o “liberalismo”, já que é em relação a ele que se constituíram como um desafio. Num sistema preocupado com o respeito aos sujeitos de direito e à liberdade de iniciativa dos indivíduos, como será que o fenômeno “população”, com seus efeitos e seus problemas específicos, pode ser levado em conta? Em nome de que e seguindo quais regras é possível geri-lo? (FOUCAULT, 1997; 89)
O Estado e as relações de poder se depararam com esse novo fenômeno: a dignidade da vida humana. O Estado e os poderes já não podiam mais dispor da vida dos homens. Os poderes precisaram se transmutar, inserir a vida em seus cálculos estratégicos, governar a vida e não exercer a morte.
Ramon não conseguiu exercer o direito de morte porque a sua vida biologicamente considerada era um elemento importante para o funcionamento das instituições públicas, em resumo, para o Estado. O Estado, atuando sob a lógica biopolítica do liberalismo, encarregou-se da vida da população e, por conseguinte, da vida biológica de Ramon. A vida de Ramon pertence também ao Estado e aos poderes. E sem o aval político-jurídico do Estado, Ramon não pode dispor de sua vida.
Considerações finais
Pode parecer estranha uma trama que se desenvolve a partir do seguinte suposto: o desejo de morte, a vontade de morrer de um indivíduo. No entanto, se achamos estranho o desejo de morte – esse elemento tão imanente à vida – é porque estamos envolvidos de algum modo com o biopoder. Resistir ao biopoder não é fácil. Por que devemos viver a qualquer custo?
Apesar da vontade de morrer, Ramon é a pessoa mais serena, mais sóbria, mais autêntica e, curiosamente, mais autônoma de Mar Adentro. Ramon nunca se enveredou pelo ressentimento. Ramon reivindicou o seu direito de morte. Mas por viver num contexto histórico e político marcado pelo governo da vida, seu pedido foi recusado pelo Estado. Incapaz de tirar a própria vida, Ramon recorreu à família, que também não respeitou a sua vontade.
O filme Mar Adentro, dirigido por Alejandro Amenábar, nos permite discutir e problematizar a temática do biopoder. Tivemos a oportunidade de esclarecer elementos constituintes do biopoder: o contraponto ao poder soberano e a identificação com o liberalismo, dentre outras questões menos evidentes.
Este trabalho consistiu numa problematização filosófica sobre o biopoder a partir do filme de Amenábar. Esperamos, por fim, que a relação entre o pensamento filosófico e a trama cinematográfica tenha transmitido um significado e um sentido sobre a relação contemporânea entre a política, a vida e a morte.

Referências bibliográficas

FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. Tradução de Andrea Daher.
__________. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão.
NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de potência: ensaio de uma transmutação de todos os valores. Coletivo “A foice e o martelo”, s/d. Disponível em: http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/autores/Nietzsche,%20Friedrich/Friedrich%20Nietzsche%20-%20Vontade%20de%20Pot%C3%AAncia.pdf, acessado em 20 de fevereiro de 2020.
Filme:
MAR ADENTRO. Direção: Alejandro Amenábar. Produção: Fox Video Brasil. Espanha / França / Itália, 2005, 1 DVD.