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Vigiar e punir:
A relação de poder e obediência

Adriano Martins Soler. Mestre em Filosofia pela PUCSP
Monique dos Santos Nóbrega. Bacharela em Direito pela CSJT Unimonte

O filósofo Michel Foucault, na obra “Vigiar e Punir”, traz, mediante pesquisa histórica, uma reflexão sobre crime e punição, narrando o nascimento da prisão como forma de sanção substancial, e com as características que a conhecemos nos dias atuais. Para isso, o autor divide o livro em quatro partes: suplício, punição, disciplina e, finalmente, prisão.


Em suma, os capítulos são organizados de forma a explicar e expor os principais objetivos de discussão visados por Foucault, os quais seriam a função social da punição, os métodos punitivos e o poder político, a relação comum do direito penal com a própria ciência humana e o papel da alma na nova forma de julgamento. Somados, trazem a baila a dúvida da efetividade da prisão como forma adequada de punição, tendo como resultado o questionamento de diversos aspectos a ela relacionados, o seu papel na sociedade e suas consequências. De todos os pontos importantes levantados na obra, vale o destaque para a relação do poder exercido pela punição e a condição de subjugação do condenado e como isto pode ser uma peça na anatomia política e controle social.
Inicialmente,as punições possuíam como alvo o corpo dos condenados e os castigos eram violentos e públicos. A publicidade, nesses casos, não tinha a ver com justiça ou direito do supliciado. Era parte de um espetáculo de horror, humilhação e demonstração de soberania do reino. Com o passar dos anos, após reivindicações do povo sobre esse tipo de repressão penal, os governantes juntamente com os filósofos, pensaram em uma maneira alternativa de realizar as sanções, priorizando a humanidade do indivíduo – que poderia ser chamada de alma, mas diferente do que era imaginado pela filosofia antiga. A relação era muito mais psicológica, mental e biológica – e a proporção crime-sanção, pois, por muitas vezes, a morte do supliciado ultrapassava em brutalidade e sofrimento, do próprio crime que era punido.
Grande parte da população se rebelara contra os carrascos e suas formas de punir, pois os crimes de rotina eram crimes pequenos, reflexos de um povo pobre, praticados por sobrevivência e baixo teor ofensivo. A brutalidade das normas não encontrava justificativa na sua aplicabilidade e, sendo a população parte importante do “julgamento”, houve necessidade de mudança no processo de penalização: deixar de ser uma vingança para se tornar um processo punitivo, com o objetivo de ressocialização do indivíduo.
Contudo, analisando as condições prisionais e toda problemática envolvendo presos, governo, população e sistema penitenciário, até que ponto houve realmente essa alteração? A vingança “pessoal do soberano”, juntamente com o horror subjetivo das punições, agora, prisão, teriam apenas setransformado?
A primeira parte do livro, denominado, suplício, começa com trecho de uma execução, realizada nos moldes antigos, com riquezas de detalhes. Aliás, todos os suplícios são descritos desta forma, evidenciando todo horror do espetáculo, para não deixar dúvidas, para aqueles que assistem, as consequências de atos ilegais e, acima de tudo, a confirmação de quem detém o poder, de julgar e punir. De certa forma, a morte não horrorizava aquele povo. Em uma época de alta mortalidade, condições difíceis para sobrevivência, doenças, que hoje são tratadas com facilidade, eram fatais e, conviver com a morte era tão rotineiro que uma punição desse tipo não era capaz de reprimir os crimes. Era preciso mais.
Os detalhes, não estavam ali à toa. Simplesmente morrer, ou dizer que morreu, seria suficiente para satisfazer o senso de justiça de todos, era o bastante para punir alguém que cometera um assassinato,sendo vítima sua esposa ou outro familiar? Não. Assim, como a simples privação de liberdade, longe de tudo e de todos, viver uma existência sem perspectiva é sonhos sob paredes de concreto, também não parece suficiente para punir os atuais criminosos.
A questão do controle social é referente ao impacto, subjetivo, dessas punições na sociedade. Naquela época, seria o terror de ser humilhado e depois torturado, até que finalmente encontra-se o conforto da morte. Morrer já não parecia tão ruim. E, desta forma, o príncipe ratificava o seu poder sobre o povo, pois, cometer um ato que já era de conhecimento ser ilegal, bem como sua consequência legal, era visto como uma afronta ao sistema.
Sem o corpo como processo de repressão penal,a punição parte para outro viés de estudo do homem, com teor muito mais subjetivo do que físico. A humanidade como parte de direito e respeito é, também, como disciplina e reestruturação. A punição, agora, teria outra função social. Com isso, o poder de julgamento não era mais único dos magistrados. O poder de julgar, embora figurado como particular do Estado e dos juízes, a decisão passou a ter fundamentos e auxílios em outros profissionais e pareceres técnicos, estes voltados a aspectos do homem que antes não eram analisados, tais como personalidade, traços psicológicos e até biológicos, em relação à prisão e seus efeitos. O que, de certa forma, faz com que o crime, condenado e punição, percorram um caminho com interferências demais, capazes de usurpar o real significado de ressocialização e justiça do indivíduo no cumprimento de execução da pena aplicada, o que reforça a opinião de falha do sistema prisional, enquanto estudo teórico filosófico, mas sucesso, no tocante prático político. Pois, embora frustrado o objetivo de ressocialização, por diversos motivos e estrutura, a prisão mantém, por um lado, a força do estado e a centralização daquilo que é suportado; um espetáculo, nos tempos modernos, de pão e circo, enquanto o verdadeiro show é realizado sem plateia.
Apesar de os suplíciosterem sido substituídospela prisão em prol da preservação do corpo do condenado, de maneira evidente, a privativa de liberdade impõe alguns castigos físicos nos presos, não diretamente, mas em ataque pontualmente na alma, nos pontos subjetivos que, outrora, foram levantados como salvação da barbárie e preservação da humanização dos condenados. E parte desta humanidade, se diz, também, da sociedade que o cercam; de seus familiares e amigos. Embora, o criminoso seja visto, após a condenação de seu crime, como parte de um processo automático e preciso, sua existência como homem, filho, marido, irmão, não some de uma hora para outra. E o efeito dominó é, em algumas vezes, o efeito da cultura do ódio também.
Em paralelo, o escritor Philip Zimbardo, escreveu a obra “Efeito Lúcifer: como pessoas boas, se tornam más”, após um experimento realizado em Stanford, com o intuito de testar a aplicabilidade do sistema prisional.
A grosso modo, um grupo de universitários voluntários, amigos, foram divididos aleatoriamente em guardas e prisioneiros, em um ambiente o mais aproximado possivelmente de um presídio real. Rapidamente, ambos os grupos passaram a ter atitudes que não existiam no início, com base no cargo que agora exerciam na pesquisa: os guardascometiam abusos no grupo de presos, se tornaram agressivos; enquanto o grupo de presidiários mostravam traços de abalo emocional e não reclamavam das condições expostas pelos seus “superiores”. O experimento saiu tão do controle, que teve que ser interrompido. Além disso, foi percebido que a relação do poder e obediência, era também relacionado a condição social e ambiental do indivíduo.
A obra, apesar dos anos, permanece atual. E, continuará ainda através do tempo, pois, é perceptível que a grande questão não se resume apenas ao modo de punição e sua estrutura, que modifica conforme a modernização de sua época. Realizando uma interpretação de visão ampla, da forma que o assunto merece, a reação de poder da punição gera impacto dentro de casas de família, de forma social, psicológica e histórica. Estabelece quem está em condições de ditar as regras e de quem deve obedecê-las, sem o direito de reivindicar seu cumprimento ou questionar sua natureza e objetivo. Deixar cada grupo dentro de suas respectivas caixas, é mais fácil de manter o controle geral, que provém de um representante da massa, eleito, hoje, por democracia. Até porque, hoje a soberania é do povo. E, a exemplos da história, ainda que maior o soberano, não há força capaz de vencer uma população unida. Manter os níveis separados, faz manter a força diminuída também. As lutas e discussões, são entre eles, os grupos sociais, assim como os guardas e presos. Assim como é no presídio, onde cada um exerce seu papel, manipulado, acreditando ser um justiceiro. O que, explica, a menção de Foucault a respeito de todo o processo de repressão penal e o corpo do condenado, ser uma parcela da anatomia política.
O poder, muda-se de lado, de mãos e de perspectivas. Mas, no ser humano e nas relações sociais, ele por algum tempo será definido, no fim das contas, para a mesma discussão de sempre: o controle de questões pessoais camufladas de interesse público, enquanto o povo está ocupado lutando pelo que acredita no fim das minorias e direitos humanos.

 

Referências bibliográficas

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. 42ª edição. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2014.
ZIMBARDO, Philip. Efeito Lúcifer: como pessoas boas, se tornam más. 4ª edição. São Paulo: Record, 2014.