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A Ética da Libertação: Compromisso com a dignidade da pessoa humana

Renato Nunes Bittencourt
Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ Professor do Curso de Administração da FACC-UFRJ

Ao longo de 2023 a Filosofia-Teologia da Libertação perdeu dois de seus estimados expoentes, Franz Hinkelammert e Enrique Dussel. Nossa modesta proposta no presente texto consiste em celebrar as suas obras e demonstrar a coerência com esse projeto filosófico enraizado em uma perspectiva de profunda necessidade de mudança do tecido econômico, social e político de nosso mundo colapsado, cheio de progresso técnico, parco de bem-viver devidamente distribuído entre os seres humanos de todas as partes do globo. A partir das obras desses dois pensadores trabalharemos diversos aspectos dessa práxis filosófica que faz da consciência religiosa um mecanismo de transformação social.


Colocamos aqui Filosofia e Teologia conectadas por um hífen pois se trata de uma conexão indissociável entre a reflexão filosófica comprometida com a prática concreta de transformação da realidade histórica e a textualidade das narrativas bíblicas como um impulsionamento pela luta por justiça fraternal no nosso mundo. Dessa maneira, não existe nenhuma submissão do discurso filosófico em relação ao conteúdo teológico imputado como a absoluta e inquestionável verdade revelada absoluta, tal como a hierática estrutura eclesiástica medieval estabeleceria.
A Filosofia-Teologia da Libertação é um passo revolucionário na interpretação das narrativas bíblicas veterotestamentárias e neotestamentárias acerca do clamor sagrado por justiça social. Se a Doutrina Social da Igreja já apresentava, a nível teórico, uma profunda inquietação por mudança no mundo moderno acerca da devida participação do Estado na economia em nome do equilíbrio social, mediante uma perspectiva conciliatória de classes que se pretende fixar para além do liberalismo e do comunismo, a Filosofia-Teologia da Libertação é deveras radical, pois vai na raiz dos problemas e toma o partido dos pobres, dos condenados do mundo. Para Franz Hinkelammert,

O direito do pobre hoje é um direito que precisa ser defendido em termos do Estado de Direito, da democracia. E deve ser assim precisamente porque não se pode conviver de modo sustentável, humano, sem respeitar uma opção preferencial pelos pobres. É preciso pôr o Estado de Direito a serviço da justiça social (HINKELAMMERT, 2014, p. 144).

Talvez o que que tanto incomoda na Filosofia-Teologia da Libertação é o fato de ela se constituir como uma práxis que se coloca axiologicamente distanciada do que podemos chamar de cristianismo eurocêntrico e seus inerentes preconceitos colonialistas-patriarcais. Por conseguinte, a Filosofia-Teologia da Libertação expressa o anseio dos povos imputados como periféricos não apenas por reconhecimento, mas sobretudo por afirmação das suas potencialidades humanas e, para tanto, é imprescindível a ruptura com o projeto capitalista, essencialmente excludente e supressor da dignidade da pessoa humana. Conforme dito linhas acima, a Doutrina Social da Igreja enaltece o papel fundamental do Estado como poder providencial na justa ordenação social. Já a Filosofia-Teologia da Libertação, mais do que preconizar a atuação do poder público como a força organizadora da sociedade, incentiva o florescimento de estruturas colaborativas e cooperativas para o ajustamento da vida cotidiana. Sindicatos, comunidades eclesiais de base, partidos progressistas, todas as organizações comprometidas com a realização do bem-viver, da democracia social e da justiça comunitária são considerados atores imprescindíveis nas necessárias transformações civilizacionais para o desenvolvimento de um mundo efetivamente melhor, mais solidário, mais acolhedor.
Cabe ressaltar que a evolução teórica da Doutrina Social da Igreja enaltece a importância dos atores civis na colaboração com o Estado para o estabelecimento do bem comum entre os povos de nosso mundo. Contudo, enquanto a Doutrina Social da Igreja não aceita a hipótese da luta de classes, a Filosofia-Teologia da Libertação, como voz emancipatória da justa causa dos oprimidos, ousa afirmar esse primado em suas bases práticas. Conforme argumenta Enrique Dussel,

Negar aos dominados o direito justo de defesa da vida, defesa do inocente, do povo, e chamar esta defesa de pecado, “luta de classes” como ódio, como desejo de destruição, como o próprio pecado (sendo que é a resposta certa contra o pecado), é teologia da dominação. Do mesmo modo, considerar pecado a revolução dos pobres e, pelo contrário, considerar como a natureza das coisas a violência institucional da coação ou da repressão dos dominadores, é construir uma moral demoníaca e pretender que se trata do próprio Evangelho (DUSSEL, 1986, p. 198).

 

Cabe aqui analisarmos: quem é o “oprimido”? O oprimido é a pessoa perene cujo rosto se modifica no decorrer das circunstâncias históricas que se caracteriza por sofrer da violência física e da violência moral de um agressor-opressor dotado de maior força estrutural em relações sociais verticalizadas. O oprimido é a mulher em uma sociedade machista, é o judeu perante o nazista, é o palestino perante o sionista, é o negro perante o racista-escravocrata, é o trabalhador perante o patrão explorador da mais-valia, é o funcionário perante o burguês, é o favelado, perante a truculência policial, é o órfão sem qualquer acolhimento familiar, é o refugiado desenraizado, é o sem-teto em permanente risco de morte, é o sem-terra aterrorizado pelo latifundiário, é o indígena ameaçado pela avidez dos grileiros, é o pobre de direitos em um mundo movido pelo poder da riqueza que estabelece relações fetichistas entre as pessoas. Muitas são as configurações do oprimido e todas elas fazem um mosaico do quão injusto e ameaçador é o mundo que apenas promove prosperidade para poucos enquanto bilhões vivem em condições precárias e invisíveis perante o olhar idiotizado do “cidadão de bem”, moralista dos costumes e sepulcro caiado de hipocrisias. Enrique Dussel afirma ainda que

Situar o pobre, descrever sua gênese e os modos concretos de sua manifestação em nossa época é a condição de possibilidade radical para se começar um discurso teórico-teológico de libertação, crítico, profético: teologia fundamental, portanto (DUSSEL, 1986, p. 250).

 

A Filosofia-Teologia da Libertação postula que a adequação da religiosidade cristã ao status quo retirou-lhe a sua capacidade de contestação da miséria do mundo, tomando assim partido dos opressores e da inerente manutenção das injustiças sociais. O pobre é excluído estruturalmente de qualquer consideração política e hipostasiado enquanto categoria simbólica para que as estruturas autoritárias do poder estabelecido sejam preservadas sem maiores inquietações sociais. Quando muito se faz uma superficial assistência social ao pobre, sem que as condições materiais de sua penúria sejam questionadas, situação que mantém o pobre subjugado pela necessidade de intervenção benfeitora dos mais abastados e suas esmolas espetaculosas. A mensagem crística originária é libertária e emancipadora e não se adequa ao crivo do mundo estabelecido, mas o comodismo institucional estabeleceu um rígido distanciamento em relação aos males do mundo concreto, sempre em nome de uma salvação espiritual pós-morte que realizaria finalmente o ajuste de contas entre oprimidos e opressores:

Afirmar que a pobreza do pobre (sua morte) é natural ou vontade de Deus, ou pretender a reconciliação antes de odiar o mundo e fazer justiça, são propostas de uma teologia da dominação (DUSSEL, 1986, p. 47)

A dita teologia da dominação destacada por Enrique Dussel expressa precisamente a instrumentalização das Sagradas Escrituras em nome da perpetuação dos privilégios das elites plutocráticas reconfiguradas ao longo dos séculos em patrícios, senhores feudais, aristocratas, burgueses, rentistas, todos eles inimigos do gênero humano e alheios assim aos fundamentos do bem-comum. A teologia da dominação, propositalmente grafada em letras minúsculas, prega ao oprimido a submissão silenciosa, a paciência passiva e o respeito temeroso às autoridades instituídas, sob o risco de se violar os mandamentos divinos, propondo assim uma espécie de não-violência apática que não possibilita qualquer alteração significativa nos rumos do mundo. A teologia da dominação estigmatiza toda forma de pensar e de agir que proponha a modificação radical da sociedade de classes, por isso o pensamento marxista é anatematizado sistematicamente pelos ideólogos conservadores dos segmentos tradicionalistas do establishment cristão, não importa se católicos, protestantes ou ortodoxos. Mais do que enfrentar as mazelas do Capital-Moloch, esses grupos poderosos optam pela demonização do “comunismo”, mesmo que por comunismo tenhamos movimentos políticos reformistas que mantém sem maiores problemas as bases econômicas de exploração do homem pelo homem. Trata-se assim de uma teologia prática da ignorância e da covardia que mantém o fiel em estado de menoridade existencial, daí toda desconfiança em relação ao conhecimento e ao letramento, potencialidades que despertam o oprimido para a transformação interior, base para a transformação social, pois toda mudança na ordem material da realidade nasce primeiramente na mudança íntima da consciência do sujeito que se reconhece como oprimido e luta para solapar as condições concretas de dominação estrutural. Não existe revolução social que não parta primordialmente de uma revolução interior, então só modifica o mundo quem já modificou a si mesmo.
Aceitar docilmente a vitória da brutalidade e da opressão é não apenas coadunar com o sistema degradante e desumanizador que vigora em relações injustas de poder, mas também contribuir para a perdição moral do opressor que, em uma perspectiva dialética, deve ser retirado de sua capacidade de oprimir para que possa ser humanizado novamente, de maneira que a luta política contra a opressão é uma luta guiada pelo amor, amor concreto que deseja mudar a ordem violenta das relações humanas desumanizadas pela violência estrutural. Nesse ponto a contribuição de Paulo Freire é extraordinária para o teor de nossa argumentação:

Na verdade, porém, por paradoxal que possa parecer, na resposta dos oprimidos à violência dos opressores é que vamos encontrar o gesto de amor. Consciente ou inconscientemente, o ato de rebelião dos oprimidos, que é sempre tão ou quase tão violento quanto a violência que os cria, este ato dos oprimidos, sim, pode inaugurar o amor. Enquanto a violência dos opressores faz dos oprimidos homens proibidos de ser, a resposta destes à violência daqueles se encontra infundida do anseio de busca do direito de ser. Os opressores, violentando e proibindo que os outros sejam, não podem igualmente ser; os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão (FREIRE, 2005, p. 48).

Com efeito, a práxis revolucionária da Filosofia-Teologia da Libertação demonstra que a justiça divina, justiça real para os pobres, deve se realizar aqui mesmo nesse mundo, e assim cabe a cada pessoa se engajar contra toda forma de opressão, seja militar, seja econômica, seja institucional. Os poderes estabelecidos antidemocráticos, representantes dos interesses econômicos de elites parasitárias, naturalizam a tortura contra os corpos dos ávidos por justiça visando controlar suas mentes e sempre se utilizarão das técnicas mais infames para realizar os seus objetivos necrófilos. Todavia, a Filosofia-Teologia da Libertação pretende demonstrar que o corpo do torturado pelo arbítrio das forças institucionais é como o Corpo de Cristo seviciado na Cruz, não há diferença teológica entre o martírio de Cristo e o martírio de qualquer homem que lute por justiça no mundo. Da mesma maneira, a caridade genuína que se faz ao necessitado não é apenas um gesto de assistência material que visa atenuar sua indigência concreta, mas a própria Eucaristia, tal como belamente exposto por Simone Weil: “Quando um homem entrega um pedaço de pão a um outro homem, se o dom por bem dado e bem recebido, isso se assemelha a uma verdadeira comunhão” (WEIL, 2019, p. 103). Ajudar o próximo é ajudar o Cristo, mas essa experiência sagrada é constantemente esquecida pela sociedade ordinária, sempre preocupada com os seus afazeres autocentrados e assim incapaz de olhar no rosto do pobre e reconhecer sua humanidade e sua alteridade.

 A sociedade de consumo, inflada pelo individualismo narcísico do capitalismo neoliberal, estimula a satisfação imediata dos desejos sem qualquer consideração pelo bem-viver da Biosfera, ou seja, pouca importância dá para as forças vivas da natureza circundante e, por conseguinte, ao próprio ser humano, inevitavelmente inserido nessa base vital. Para enfrentar crises econômicas que ameaçam sua hegemonia política, as governanças capitalistas eventualmente realizam modificações sutis nas suas configurações estruturais de modo a se manter as coisas como elas são, ou seja, preservar a sacrossanta propriedade privada dos meios de produção, mesmo quando esta não exerce a sua função social conforme exigido pela carta constitucional. O intervencionismo estatal na economia garantia um equilíbrio tácito entre as classes sociais de modo a se proporcionar um capitalismo regulado, no entanto, com o avanço da ofensiva neoliberal o mercado passa a ser considerado a única potestade capaz de promover a prosperidade social, e assim diversas desregulações na estrutura pública foram implementadas, sempre em nome do sucesso financeiro das grandes corporações e dos seus acionistas. Nada pode afetar a rentabilidade das forças ocultas do mercado. Direitos trabalhistas são subtraídos, organizações sociais e sindicatos são desprestigiados, condições de existência cada vez mais precarizadas, investimentos estatais diminuídos consideravelmente para maior satisfação dos especuladores financeiros. As castas plutocráticas manipulam as peças do jogo político para que os seus interesses sejam sempre realizados sem maiores entraves institucionais. A vida humana, sob o economicismo neoliberal, é convertida em mercadoria cujo valor de uso é cambiante conforme a sua capacidade operacional. Assim a sacralidade da pessoa é descaracterizada para que se torne uma mera coisa que pode ser consumida e eliminada sempre que convir para as forças agressivas do regime capitalista, que somente aprova quem se coloca sempre ao dispor dos mandamentos empresariais de dedicação contínua aos seus mecanismos invasivos por crescimento econômico, mesmo que isso afete a qualidade de vida do trabalhador, ludibriado pela retórica fantasiosa de ser um “colaborador” e não apenas um funcionário. O “empreendedor de si” da sociedade de desempenho precisa sempre performar para demonstrar que é competitivo e capaz de deixar de lado seu próprio bem-estar pessoal para que o lucro empresarial seja idolatrado como um bezerro de ouro. Conforme argumenta Franz Hinkelammert,

O ser humano é inútil e até “descartável”, a não ser que seja transformado em capital humano a ser explorado em função de sua utilidade, seja a utilidade a partir do interesse próprio calculada por ele mesmo, que considera a si mesmo capital humano, ou por outros, que querem explorá-lo em virtude de suas respectivas utilidades próprias (HINKELAMMERT, 2014, p. 201).

O economicismo neoliberal apresenta uma postura política reacionária em relação aos processos de resistência social que atentem contra a concentração de poder entre as elites plutocráticas, consideradas meritosas em sua situação de superioridade social, pois supostamente se engajaram mais do que o restante da população em seus projetos empreendedores, quando em verdade o lucro empresarial decorre da exploração sempre mais avançada sobre a massa laboral flexível e polivalente que vive em contínua situação de instabilidade psicofísica. O Estado Mínimo neoliberal requer um cidadão mínimo que se construa socialmente apenas como consumidor de mercadorias e de serviços, com menos direitos e mais empregos, empregos subalternos e insalubres, diga-se de passagem, pois assim a taxa de lucro empresarial aumenta em cima das vidas devastadas dos trabalhadores. A verdadeira democratização do poder estatal depende da remoção dos elementos parasitários alocados em suas estruturas que constantemente orientam as políticas públicas para a otimização dos interesses plutocráticos. Daí a importância de se politizar as massas para que elas pressionem os agentes governamentais a optarem pela emancipação social dos oprimidos e, mais ainda, se promover uma educação crítica que retire da pessoa liberta das condições estruturais opressivas o ensejo de se tornar agora ela também uma opressora, situação corriqueira de se acontecer quando alguém prospera na escala social sem se comprometer com lutas democráticas de afirmação dos direitos humanos.
A tarefa crucial de qualquer religião comprometida com a realização do bem-estar humano é denunciar a barbárie da lógica de mercado, que abraça servilmente qualquer liderança autoritária, fascista, obscurantista, ignorante, irracionalista, reacionária, preconceituosa. A Filosofia-Teologia da Libertação é assim uma ética multidimensional, que compreende a vida humana na sua imanência concreta e suas inerentes contradições materiais que impedem sua genuína realização criadora, ao mesmo tempo em que resgata o clamor profético de necessária mudança da forma de agir e de pensar no mundo da vida para que o clamor religioso por comunhão entre as pessoas se realize, dissolvendo-se todas as máscaras e todas as prefigurações que afastam o homem do próprio homem. Eis assim a construção de uma base política sedimentada em uma esperançosa celebração fraternal da existência, que realiza a ideia crística de que o Reino de Deus está entre nós e não é necessariamente um instância transcendente ao nosso plano material. A felicidade mais autêntica está na vida solidária, para além de todo egoísmo e toda sanha por lucro indébito e exploração dos que se encontram em condições assimétricas de sociabilidade.

Referências bibliográficas

DUSSEL, Enrique. Ética Comunitária. Trad. de Jaime Clasen. Rio de Janeiro: Petrópolis: 1986.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
HINKELAMMERT, Franz. Mercado versus direitos humanos. Trad. de Euclides Luiz Calloni. São Paulo: Paulus, 2014.
WEIL, Simone. Espera de Deus. Trad. de Karin Andrea de Guise. Petrópolis: Vozes, 2019.