AMORES EM NOSSOS TEMPOS
CASSIANA STEPHAN
Mestre em Filosofia – UFPR
Doutora em Filosofia – UFPR
Filosofia significa amor à sabedoria.
Deveras, muito se discute acerca da sabedoria – O que é o saber? Como podemos saber? Quem pode saber? O que podemos saber? – mas pouco acerca do amor. O amor nem sempre foi encarado como um tema dignamente filosófico. Inclusive, alguns ainda insistem em afirmar que o amor é um assunto de poetas, literatos e artistas, mas não de filósofos. Os filósofos, de acordo com tal perspectiva, devem tratar de temas mais excelentes e não de assuntos do coração.
Contudo, não podemos deixar de notar que todos aqueles que reduzem a filosofia à dimensão analítica de um saber puramente racional, esquecem-se de que a sabedoria classicamente filosófica está ancorada no amor. É o amor – e não necessariamente a pureza da razão – que primeiramente nos move em direção à sabedoria. É o amor que manifesta e constitui nosso desejo incansável por conhecimento. Aquele que ama a si mesmo, busca pelo conhecimento de si; do mesmo modo, o amor que sentimos pelos outros nos estimula a conhecê-los.
Não podemos negar que o amor tem sido bem tratado por poetas, literatos e artistas. Mas, o que acontece se restituímos o amor à filosofia? Neste caso, que contornos o amor pode ganhar?
Como vislumbraremos no presente ensaio, sob o bojo da filosofia – e, mais precisamente, sob o bojo da filosofia contemporânea de Michel Foucault (1926-1984) –, o amor ganha uma configuração ético-política que constitui tanto as estruturas normativas nas quais estamos embrenhados, quanto seus focos de resistência.
Com base nisso, a partir de Foucault, perguntamo-nos filosoficamente: o que significa amar em tempos como o nosso? Como? Quem? O que? Por que amamos – se é que amamos – nesse tempo que foi, mas não passou?
Nossa reflexão percorrerá os meandros do pensamento contemporâneo de Foucault sob a luz do amor. No decorrer destes caminhos sinuosos, deparar-nos-emos com a distinção entre moral voltada ao código e moral voltada à ética, mas também com as noções de “cuidado de si”, “cuidado dos outros” e “estética da existência”. Além disso, na tentativa de delimitarmos as características do amor normativo e do amor criativo, problematizaremos respectivamente as concepções de socialização e sociabilização. Vejamos, então, que traços o amor ganha sob o escopo interpretativo que pode ser desenvolvido a partir de Michel Foucault.
Sobre um tempo que foi, mas não passou
É difícil falar de amor em tempos como o nosso, em tempos em que ainda somos assolados pelos resquícios de uma doença estranha que incitou o isolamento social e que, simultaneamente, revelou o aspecto ficcional das fronteiras que recortam o mundo. Esta doença repentinamente nos fez recordar “dos prados que circunscrevem, em pilhas, massas de ossos brancos, de cadáveres putrificados cujas peles secam” (VERNANT, 2011, p.144). É estranho, essa doença nos fez recordar da falta de perenidade de nossas vidas, ou seja, fez-nos perceber que nem a religião e nem o Estado nos tornam imunes à mortalidade que nos condiciona. No caso de nosso país, tal doença relegou alguns poucos privilegiados ao confinamento, à instância uterina da vida privada, ao conforto apático que nos remete a uma disposição prematura na qual a barriga de nossa mãe era o lugar mais seguro: assim, com medo do mundo que se apresenta no presente, deslocamo-nos do útero em direção à incubadora e saímos desta em direção à casa constituída, em geral, pelo matrimônio e pela filiação. Para que alguns pudessem se isolar dignamente, muitos outros precisaram se sacrificar, expondo-se à doença – mas isto não é novidade, dirão; esse esquema social desigual e hierárquico remonta a tempos imemoriais. O fato é que nesse tempo que foi, mas não passou, o medo da perda isolou e o medo da perda expôs. Por um lado, os isolados temiam morrer em decorrência da doença e temiam que os seus morressem em decorrência da doença. Por outro lado, os expostos temiam morrer em decorrência da fome e temiam que os seus morressem em decorrência da fome.
Neste cenário também encontrávamos o bom cidadão. O cidadão de bem se sentiu contrariado e bastante vulnerável: com efeito, ele não queria adoecer, mas ele tampouco queria renunciar à socialização à qual estava habituado, isto é, ele queria continuar a exercer sobre os outros a sua autoridade patriarcal, ele queria fazer de sua casa um reinado cuja dimensão variava entre um imóvel de três a quatro quartos e o palácio do governo que se estende a toda pátria. Ele, o cidadão de bem, queria continuar a reunir em torno de si a família devota a Deus e, portanto, aos bons costumes, ele também queria continuar a celebrar mais um ano de sua vida medíocre, de seu casamento de fachada e de seus filhos oprimidos e opressores. O cidadão de bem queria ter o direito de festejar e de contribuir com a economia de nosso país, ou melhor, ele não queria renunciar às próprias economias, as quais são acumuladas e mantidas ao custo da vida do trabalhador que, por medo da fome, continua a se submeter ao patrão. Após festejar, o cidadão de bem precisava que alguém limpasse a sua bagunça e ele também precisava recuperar o dinheiro que perdeu na comemoração. Então, expôs à doença os seus trabalhadores, aqueles que o Estado não tinha interesse em preservar. No isolamento, o cidadão de bem quis manter a fronteira que separa a tradição da sua família do resto do mundo. Dito de outro modo, para ele, a sua família era imune a tal doença, pois doenças como estas só atingem os pobres, os miseráveis e os devassos. De acordo com tal perspectiva, a doença nunca atinge aqueles que são filhos de Deus e guardiões do Estado. Para evitar que a doença se propagasse, o cidadão de bem fazia com que sua empregada e seu zelador higienizassem sua casa e seu condomínio, mas antes – e isto é fundamental – ele fazia com que suas empregadas e empregados se desinfetassem, deixassem à porta, ao iniciarem o turno motivado pela fome, a pobreza, a miséria e a devassidão que, segundo o tal cidadão, propagam as doenças.
No entanto, estes que se acham ricos e estes que de fato o são mal sabem, ou talvez não queiram saber, que as doenças são, na verdade, vetorizadas pelas próprias classes às quais pertencem. É estranho, a referida doença enfraquece a socialização, mas, ao mesmo tempo, fortalece-a através da potencialização do narcisismo por consanguinidade. Além disso, embora a doença tenha nos mostrado que as fronteiras que recortam o mundo não passam de ficções, ela também intensificou um sentimento patriótico fascista que gerou (e ainda gera) uma comoção nacionalista de preciosismo econômico-empresarial. Também não podemos deixar de notar que a doença que se alastrou como o próprio neoliberalismo – sendo, inclusive, por ele instanciada – simultaneamente manifestou a fragilidade de uma economia fundamentada na anacrônica lógica do senhor e do escravo.
Quem dera se a doença tivesse fragilizado apenas a socialização, se ela tivesse colocado em questão o narcisismo por consanguinidade perpetuado pela tradição de Deus, da Pátria e da Família! É triste saber que a doença se interpôs sobretudo à sociabilização, isto é, à manifestação pública da resistência e à construção de redes de solidariedade capazes de ampliar e de aplicar o cuidado para além do espaço egóico da casa que acolhe a família tradicional.
Como vocês podem perceber, em nome do amor, estabeleço aqui uma distinção que parece muito sutil, mas que é na verdade muito profunda. Trata-se, pois, da diferenciação entre socialização e sociabilização. Faz-se importante prestarmos atenção nessa distinção porque ela se baseia na diferença, diagnosticada por Foucault, entre a moral voltada ao código e a moral voltada à ética. Foucault nos mostra no “Prefácio” ao segundo volume da História da sexualidade: o uso dos prazeres que a moral comporta dois aspectos, ou seja, existe a moral orientada ao código e a moral orientada à ética. No primeiro caso, explica Foucault, a relação do si para consigo “se efetua, no essencial, de uma forma quase jurídica, em que o sujeito moral se refere a uma lei ou a um conjunto de leis às quais ele deve se submeter sob pena de incorrer em faltas que o expõem a um castigo”(FOUCAULT, 2012, p.38). No segundo caso, a ênfase é dada “às formas das relações consigo, aos procedimentos e às técnicas pelas quais são elaboradas, aos exercícios pelos quais o próprio sujeito se dá como objeto a conhecer, e às práticas que permitem transformar seu próprio modo de ser” (Ibidem., p.39). O famoso preceito do cuidado de si, que Foucault observa nas filosofias da Antiguidade greco-romana e sob cuja inspiração ele nos apresenta o princípio contemporâneo da estética da existência, refere-se, sobretudo, ao segundo aspecto da moral, a saber, à moral voltada à ética.
Socialização & Sociabilização
É justamente a partir desta distinção entre a moral voltada ao código e a moral voltada à ética que percebo a diferença entre a socialização e a sociabilização. A socialização está para a moral voltada ao código, ao passo que a sociabilização está para a moral voltada à ética. A ética da sociabilização não repousa sobre a quantidade de indivíduos com os quais interagimos, até porque a sociabilização se distingue da socialização, segundo a qual os amores e as amizades devem ser simplesmente acumulados sob o escopo precário do narcisismo que acriticamente reitera a normatividade. Assim, utilizo o termo “sociabilização” para me referir às relações sociais que incitam a crítica aos valores vigentes, ao passo que utilizo a noção “socialização” para significar as relações sociais desencadeadas em razão dos códigos morais e da normatividade instanciada por eles. Esta diferenciação, como explicado acima, acompanha a distinção, estabelecida por Foucault, entre a moral orientada à ética e a moral orientada ao código (Cf. FOUCAULT, 2012, pp.38-39). Nesse sentido, a sociabilização condiz à ética do cuidado de si e possui uma potência estética, ou seja, é através da sociabilização que somos capazes de estetizar a nossa própria existência; ao passo que a socialização concerne à política dos deveres, ou melhor, neste caso, socializamos porque devemos, porque temos interesse em perpetuar os jogos normativos.
Do ponto de vista moral, a sociabilização pode ser compreendida como uma postura antissocial e, muitas vezes, radical, adotada por aquelas e aqueles que buscam se apropriar do sentimento de amar como algo que lhes é próprio e não como algo que deve ser parametrizado de maneira heterônoma, isto é, por um Outro – seja ele simbólico ou real. Do ponto de vista ético, a socialização pode ser lida como uma postura hipócrita adotada por aqueles e aquelas que, insistindo na precariedade do narcisismo, isto é, na ideia segundo a qual eu só devo me relacionar com aqueles que são como eu, acabam privilegiando o amor como mandamento, obsessão e interesse – interesse pela norma. Do lado da sociabilização encontramos a criação estética da amizade que transgride e subverte as diferenças estatutárias entre o amor e a amizade. Do lado da socialização nos deparamos com a repetição das tradições conjugais e familiares que hierarquizam o amor e a amizade. No que diz respeito à constituição ética e política de nós mesmos, oscilamos entre a sociabilização e a socialização, as quais se justapõem e se confrontam no decorrer de nossas vidas. Por vezes, a sociabilização se perde em meio à violência devastadora da socialização. Por vezes, a socialização é simplesmente abandonada ou momentaneamente rompida para ser reconstituída como sociabilização. Mais precisamente, nós vacilamos entre a criação de novas culturas e, por outro lado, a repetição (muitas vezes irrefletida) da tradição, repetição de determinados padrões amorosos que se conservam, mas que também instauram conservadorismo na sociedade.
Então, como podemos perceber, a distinção entre a socialização e a sociabilização é importante porque remete à diferença entre a moral do código e a moral da ética, mas também porque permite compreender, a partir de Foucault, que hoje, em nossos tempos, o amor (assim como a moral) comporta dois aspectos. Há, pois, o amor codificado e codificador e, por outro lado, o amor que transgride os limites do código e subverte seus agenciamentos em virtude da potência ética e, portanto, crítico-criativa do próprio ato de amar. Mas, que amor alternativo é este? O que é este amor transgressivo, transgressor, subversivo? Não estamos habituados a alternativas amorosas. Insistimos constantemente no seio familiar por pior que ele seja, insistimos constantemente na ideia do casamento por pior que ela seja, na paternidade e na maternidade patriarcal, nas amizades interesseiras, no amor como posse, no amor como obsessão, na amizade como uso, no sacrifício do si em nome do outro, no sacrifício do outro em nome do si – afinal de contas, desde as chagas de Cristo, o amor mais legítimo, de acordo com os códigos que estruturam nossa sociedade, é aquele que sacrifica.
O amor alternativo não é este da tradição, ele é na verdade uma alternativa à tradição. Por isso, ele pode ser interpretado e percebido sob a clave da ética da sociabilização. O amor alternativo é aquele que nos desloca e nos faz caminhar nas bordas do dever, incitando-nos à experiência do cuidado (cuidado de si e cuidado dos outros). O cuidado não é algo que se vive constantemente, ele precisa ser rememorado, retomado e ressignificado à medida que conduzimos nossas vidas e à medida que nossas vidas se submetem, quase que inconsciente ou espontaneamente, às normas que as sufocam, torturam e matam em nome da civilização. O cuidado é um esforço crítico que, enquanto tal, depende da crise. Por que cuidar? Como, quando e de quem cuidar? Tais questionamentos, que despontam da filosofia de Foucault, são incessantemente alimentados pela história, pelas artes, pela literatura, pela filosofia e pela sociabilização.
Quando trago a vocês a discussão do amor, não estou tentando submeter o afeto ao logicismo da razão; antes, minha intenção é indicar que as normas, os códigos operam em relação aos motivos pelos quais nos atrelamos aos outros e que os nossos sentimentos não são tão puros quanto imaginávamos. Precisamos, portanto, desconfiar de nós mesmos, da imagem que acreditamos ter para nós e para os outros. A obstinação filosófica depende desta desconfiança que nos faz compreender, mesmo que de forma escassa, o modo pelo qual interagimos com o mundo e com aqueles que o constituem: por que e como amamos a nós mesmos e aos outros neste mundo? Por que vivenciamos certos amores e abandonamos outros? De fato, não podemos distinguir com plena certeza em que medida as amizades que conduzimos e os amores que desejamos dependem ou não de nós. Talvez, tudo o que podemos afirmar é que o afeto ou o desafeto, seja em relação a nós mesmos, seja em relação aos outros, é mediado pela norma – pela adequação à norma, pela transgressão de seus limites e pela subversão da realidade que a ela se atrela.
Sabemos que a amizade é historicamente entendida como o afeto não sexual entre indivíduos. Mais precisamente, como explica Freud, a amizade seria o amor inibido na meta, isto é, o amor sensual que se distingue do amor genital cujo objetivo, no que tange à civilização, é a procriação: “o amor genital conduz à formação de ‘novas famílias’, aquele inibido na meta, a ‘amizades’, que culturalmente se tornam importantes, pois escapam a várias limitações do amor genital – exclusividade, por exemplo” (FREUD, 2011, p.48). A partir das noções foucaultianas de “cuidado de si” e de “cuidado dos outros”, que confinam com a ética da sociabilização, somos capazes de subverter estas significações e, assim, de entrever um amor, ou melhor, amores que não se limitam à matriz heterossexual e que não se restringem aos humanos, à humanidade e ao humanismo.
O ato de amar, envolvendo ou não a consumação sexual, pode ser pensado como amizade, ou seja, como uma interação não hierárquica, não exclusiva e que tem como finalidade o despontar de belezas completamente estranhas aos olhos daqueles que insistem em repetir o anacronismo da norma – aos olhos daqueles que só olham com os olhos de Narciso. O ato de amar pode ser uma espécie de encontro imprevisto entre forças que são capazes de confrontar a fixa estrutura dos saberes e poderes que justificam o gosto normativo. Foucault nos explica que estes amores estão prestes a “inventar uma relação ainda sem forma, que é a amizade”, a qual “dá lugar a vínculos intensos que não se parecem com nenhum daqueles que são institucionalizados” (FOUCAULT, 2001, pp.983-984). Assim sendo, este amor alternativo vislumbrado a partir de Foucault (amor que se faz como e por meio da sociabilização), este amor nos mostra que somos capazes de amar nossos amigos e que a vida conjugal e a vida familiar podem ser subvertidas a ponto de se tornarem nichos para a experiência estética do cuidado ao invés de se manterem como nichos para a repetição acrítica da tradição. Este amor alternativo, vislumbrado a partir de Foucault, mostra que nem todo o amor é procriador e que nem toda a amizade é interesseira, ou seja, podemos romper com tais estigmas que são incapazes de responder à exigência por comunidade.
Levando em consideração a sociabilização, podemos afirmar que a ética do cuidado de si nada mais é do que uma ética dos amantes. De modo geral, a ética do cuidado de si consiste em uma ética dos amantes porque, em primeiro lugar, o processo criativo em torno da constituição de si mesmo se faz através da relação afetiva com os outros e porque, em segundo lugar, esse vínculo amoroso é crítico, ou seja, ele transforma a vida e, por conseguinte, a circunstância espaço-temporal daqueles que se envolvem em tal coexistência afetuosa. Ademais, faz-se importante ressaltar que os elos sociais criativos, na medida em que se estabelecem em virtude do amor por si e pelo outro, subvertem e transgridem a institucionalidade moral ou política, isto é, esses laços deixam de se limitar ao dever moral e aos jogos de interesse macro e micropolíticos. Logo, a prática do cuidado de si concerne ao exercício de sociabilização, ou seja, ela não está condicionada a um ideal identitário que corresponderia à utópica projeção do amor perfeito (amor de estrutura narcísica, patriarcal, falocêntrica, seminal). Pelo contrário, as diversas e incessantes experiências refletidas de amizade ou de amor permitem que o si mesmo se torne sempre outro, modificando criativamente a própria vida e a circunstância na qual se insere no mundo.
Para se viver o presente: o amor
Para Foucault, os amores alternativos são capazes de modificar o tempo presente. Com efeito, estamos habituados a associar o presente ao espaço de tempo que nos permite conduzir o cotidiano, ao espaço previamente dado que contempla a nossa trivialidade, iniciada quando acordamos e rompida no instante em que as ações do inconsciente são liberadas pelo sono. Temos a impressão de que o presente não é vulnerável, temos a sensação de que ele é implacavelmente experenciado por nós. Contudo, quando decidimos nos voltar a esta sensação e pensar a respeito daquilo que ela representa, tornamo-nos capazes de perceber que tal impressão repousa sobre a inércia, a qual tem nos desviado da presença do presente e nos mantido presos à saudade, ao arrependimento e à ansiedade travestida de esperança benevolente por uma vida e um mundo melhores.
Ao nos darmos conta destas sensações compreendemos que esquecemos de viver o presente e que esta experiência, diferentemente do que imaginávamos, é vulnerável. Foucault caracteriza a vulnerabilidade do presente quando nos mostra que ele não corresponde ao espaço de tempo sempre disponível aos sujeitos, mas que a experiência do presente depende da transformação ética do si mesmo e da sua intervenção política no mundo, a qual se faz por meio da sociabilização. Nesse sentido, conforme Foucault, o presente corresponde ao efeito que resulta do desejo de amar a peculiaridade do si e do outro no mundo que, paradoxalmente, abarca continuidades e rupturas identitárias – do mundo em que as identidades não são absolutas. Portanto, talvez seja possível afirmar que a experiência do presente é vulnerável na medida em que depende do si mesmo. Dito de outro modo, a experiência do tempo presente depende da maneira pela qual o si exerce o amor por si mesmo, pelos outros e pelo mundo.
Os amores alternativos, que se dão no âmbito da sociabilização, transgridem a estrutura narcísica que tradicionalmente fundamenta e justifica a conexão entre o si e os outros. O que quero dizer é que a configuração dos amores alternativos, tal como pensados na via da estética da existência foucaultiana, não se atrela aos reflexos do espelho de Narciso. Foucault não parece se interessar pelo espelho que ensina o si a amar somente aqueles que lhe são idênticos. O espelho instrumentalizado por Foucault não reflete nenhuma Beleza originária ou absolutamente identitária; diferentemente, ele reflete a beleza do radicalmente outro: a beleza do outro no qual o si mesmo se transforma ao experimentar o amor à diferença e a beleza do outro que o si mesmo ama porque diferente. Com base nisso, talvez possamos afirmar que para vivermos o tempo presente, tudo o que nos resta é a paixão pela diferença, paixão que é agora, em parceria com a morte, a única certeza de nossas vidas.
A paixão pela diferença parece resolver, portanto, o enigma relativo à presença do presente. Mas será que em tempos como o nosso ainda podemos aceitar esta resposta? Esta resposta ainda é suficiente à questão que pergunta “como não esquecer de viver o tempo presente?” Mais precisamente, as doenças que assolam o mundo – e que se alastram na mesma proporção em que o neoliberalismo se enraíza em nossas mentes e corações – não impedem a criação de nichos de sociabilização? Não impedem a estetização da existência e, assim, a experiência de amores alternativos, transgressivos, subversivos? Em nossos tempos, talvez a mera sobrevivência já se configure como uma grande exigência ou um grande privilégio. Devemos, pois, nos contentar com isto: com a mera sobrevivência?
Parece-me, e vocês hão de convir, que a sociabilização está em risco – na verdade, ela sempre esteve, mas talvez possamos afirmar que agora (neste agora em que os resquícios das doenças outrora vividas insistem em se prolongar) o risco se acentua. Nossa vontade de paixão pela diferença está enfraquecida e este enfraquecimento não se deve pura e simplesmente a uma única doença, mas a um complexo núcleo de doenças. Sabemos que nossas pulsões se introvertem em razão de perversos interesses macropolíticos que nos desterram, que nos queimam, que nos matam compulsoriamente. E então? E agora? Como podemos – se é que podemos – resistir à precariedade que nos assola? Não há outra solução, a resposta parece ser a mesma: resistimos à medida que amamos, à medida que amamos a nossa própria diferença e a diferença do outro que conosco constitui o mundo em sua pluralidade. Assim, é possível que hoje, sobretudo hoje, o amor deva ser reativado como motor, como motivo comunitário capaz de nos conectar ao mundo em sua complexidade. O amor pela diferença ainda é urgente, pois talvez ele (e somente ele) seja capaz de transmutar a maneira pela qual nos relacionamos com o planeta. No ensaio intitulado “Aprendiendo del vírus”, publicado em 28 de março de 2020, no El país, Paul B. Preciado nos diz o seguinte:
Curar a nós mesmos como sociedade significaria inventar uma nova comunidade, para além das políticas de identidade e de fronteira com as quais até agora temos ensejado a soberania [...]. Permanecer vivo, mantermo-nos vivos como planeta [...] significa implementar formas estruturais de cooperação planetária. Como [as doenças mutam], se queremos resistir à submissão, nós também devemos mutar (PRECIADO, §32, 2020).
Para que a mutação se torne possível, precisamos nos dispor a amar: tarefa que pode ser facilmente descrita a partir de um jogo de palavras filosófico, mas que dificilmente é colocada em prática, já que envolve um esforço pouco evidente, a saber, aquele do cuidado como responsabilização por si, pelos outros e pelo mundo. Na via de Foucault, podemos dizer que o amor pela diferença solavanca a ação no tempo presente. Finalizo, então, este ensaio com um rompante de esperança que afirma: ainda é tempo de amar, ainda é tempo de amor.
Referências
FOUCAULT, Michel. De l’amitié comme mode de vie. In:Dits et Écrits II. 1976-1978.Paris: Gallimard, 2001, pp. 982-986.
______. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. São Paulo: Graal, 2012.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2011.
PRECIADO, Paul B. Aprendiendodelvirus. El país, Madrid, 28 de março de 2020. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html. Acesso em: março de 2020.
VERNANT, Jean-Pierre. L’individu, la mort, l’amour: soi-même et l’autre en Grèce ancienne. Paris: Gallimard, 2011.