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Breves considerações sobre os primórdios da Igreja Católica a partir de Hans Küng

Luiz Meirelles

Mestre em Filosofia - PUCSP

Hans Küng, na introdução ao livro A Igreja Católica, apresenta cronologicamente a história da Igreja Católica desde o ano 30, com a crucificação de Jesus de Nazaré, até a Igreja Católica – Presente e futuro de Leão XIV a João Paulo II.

Segundo Hans Küng, apesar de suas experiências de quão implacável pode ser o sistema romano, a Igreja Católica continua sendo o seu lar espiritual. Posicionamento este que tem conseqüências para o livro “Igreja Católica”. Ele ressalta também o fato de uma posição “neutra” sobre a história de a igreja poder ser escrita  por especialistas em religião ou historiadores sem envolvimento pessoal nela, ou até mesmo por um filósofo ou teólogo “hermenêutico”, preocupado com a compreensão, para quem entender tudo é também perdoar tudo. Mas, entretanto, Hans deixa claro que sua intenção ao escrever o livro é de alguém que toma partido daqueles que se tornaram vítimas, ou já em seu tempo reconheciam e censuravam determinadas práticas da Igreja Católica.

Hans afirma o papado da Igreja católica, e, ao mesmo tempo, preconiza uma reforma radical dessa instituição de acordo com o critério do evangelho.

Enquanto escreve, está plenamente consciente de que as opiniões sobre esta Igreja Católica e esta história divergem muito, tanto dentro como fora da Igreja. Indiscutivelmente a história da igreja Católica é uma história de sucesso: a Igreja Católica é a mais velha, a mais forte numericamente, e provavelmente também a mais poderosa representante do cristianismo. 

Porém, mesmo os católicos tradicionais continuam perguntando: supondo que tenha havido um crescimento orgânico, na história da Igreja Católica, não teriam havido também episódios bastante inorgânicos, anormais, completamente absurdos e falsos, pelos quais os próprios representantes oficiais da igreja foram responsáveis? 

Na época do Concílio do Vaticano II (1962-1965) a Igreja Católica, de modo geral, gozava de um grande prestígio público. Em vista da aparente inabilidade da Igreja Católica para se corrigir e se modificar, não é compreensível que no início do terceiro milênio cristão a indiferença mais ou menos benevolente que se demonstrava  pela igreja há cerca de 50 anos tenha se transformado em ódio, na verdade em hostilidade pública? 

Então, enquanto alguns teólogos católicos estão ocupados escrevendo a história da igreja em um estilo triunfal, “criminologistas” anticatólicos, ansiosos por escândalo, estão explorando o escândalo para criticar a Igreja Católica de todas as maneiras possíveis. Nem uma história idealizada e romantizada da igreja nem uma cheia de ódio e denúncia podem ser levadas a sério. No entanto, apesar de tudo, estas categorias não fazem totalmente jus à vida desta igreja como ela é vivida, ao seu espírito. A Igreja Católica continua sendo um poder espiritual, de fato um poder, no mundo inteiro.

Se quisermos diferenciar o bem do mal na história ambígua da igreja e nas atuais circunstâncias ambíguas, precisamos de um critério fundamental de julgamento.

Segundo Hans Küng, qualquer teologia e qualquer concílio – por mais que devam ser entendidos em termos do tempo que os precedeu – precisam, na medida em que afirmam ser cristãos, essencialmente, ser julgados pelos critérios do que é ser cristão. Uma marca distintiva de sua história será a maneira pela qual tacitamente e, na verdade, explicitamente e sem concessões e harmonizações, em momentos cruciais, ela enfrentará a mensagem original cristã, o evangelho ou, na verdade, o próprio Jesus Cristo. 

Em nossa era da informação, a mídia nos expõe a uma enxurrada crescente de informações sobre a história do cristianismo, e a Internet cada vez mais nos oferece não só informações valiosas, mas também inúteis. Embora em A Igreja Católica Küng procure transmitir fatos, acima de tudo, pretende fornecer orientações em três aspectos: 

Primeiro, a história propriamente dita, de um ponto de vista católico, mas não sem mostrar os problemas dessa trajetória;

Segundo, uma reflexão crítica, a partir da qual expõe algumas teses acerca das razões que levaram a Igreja à sua situação atual;

Terceiro, uma indicação de correções de rota que entende serem necessárias para que a Igreja continue sendo, cada vez mais, o caminho religioso adequado para as diversas sociedades, ou o que ele mesmo denomina, o seu “lar espiritual”.

Seu texto não tem a pretensão de analisar todos os detalhes dessa história, mas apenas relatar e discutir os fatos que considera fundamentais. Por isso, o encaminhamento da problemática pressupõe um leitor conhecedor prévio da história da Igreja Católica e da própria bíblia, pois, ao contrário, alguns pontos ficarão um tanto obscuros.

No primeiro capítulo, o autor trata dos primeiros passos da igreja, sob o título de “Os primórdios da Igreja” – título este que já merece uma indagação: “Que Igreja?”

Assim, diante dessa primeira questão, encontramos no próprio Hans Küng o significado etimológico da palavra, ou mais propriamente, de seus significados, posto que há uma derivação do grego a partir de duas palavras e outra do próprio hebraico.

A raiz grega está presente nas línguas germânicas com a palavra Kirche,  derivada do grego kyriake, isto é, “pertencente ao kyrios, o Senhor” (KÜNG, 2002, p. 30) e tem o significado de casa ou comunidade do Senhor.

As línguas românicas, contudo, utilizam uma outra raiz, a palavra ekklesia, também grega, ou qahal, do hebraico, ambas com significado de assembléia, que resultam em ecclesia, iglesia, chiesa, église,  entre outras. Aqui, o autor ressalta que assembléia significa não apenas o agrupamento, a comunidade, mas o próprio ato de reunir.

Daí, conclui-se que não se deve jamais atribuir à palavra igreja o sentido de Instituição hierarquicamente organizada, mas, sim, de comunidade concreta, reunião. Nesse sentido, segue-se o Novo Testamento, segundo o qual a igreja inteira se faz presente em cada igreja local, formando “povo de Deus, corpo de Deus e edifico de Deus.’’ (KÜNG, 2002, p. 30)

Assim, o dever da Igreja é atender à causa de Jesus Cristo, e se esse fim não é colocado como principal, então não ocorre a realização da causa de Jesus Cristo, mas, sim, uma distorção em que a Igreja peca contra si mesma e se perde da razão de sua existencia.

Neste ponto, esclarecido o significado de igreja, cumpre-nos indagar, acompanhando os passos de Hans Küng: quem fundou a igreja?

A esta pergunta, inadvertidamente muitos se remeterão a Jesus Cristo. Entretanto, aqui o autor também faz algumas observações importantes para aclarar a questão. “Não há falas de Jesus em público que programaticamente chamem a atenção para a necessidade de uma comunidade de eleitos e da fundação de uma igreja”. (KÜNG, 2002, p. 27)

Os estudiosos da bíblia podem fazer muitos apelos, mas, decididamente, Jesus não fundou nenhuma igreja, muito ao contrário, é cediço que ele não discriminava ninguém e chamava a todos para com ele seguirem em busca da salvação.

Jesus pregou, lembra Küng, o amor ao próximo como prática fundamental. Para Jesus, portanto, os doze apóstolos significavam a refundação das doze tribos de Israel.

A benevolência suma de Jesus provocou uma ebulição em toda a estrutura vigente, tendo atingido desde beatos até os ortodoxos, desde comerciantes até os governantes. Tanto que cerca de três anos de atividades bastaram para que ele fosse crucificado. Seus seguidores viram nele o Messias tão esperado. E a crença foi tal que se firmou a idéia de que ele não morreu, mas “foi elevado por Deus à vida eterna e foi exaltado na glória de Deus”. (KÜNG, 2002, p. 29)

Com isso, estabeleceu-se o elo entre Jesus e a fundação da Igreja, cujos integrantes continuaram pregando os seus ensinamentos. Porém, dois pontos estão  aclarados: a igreja não pode ser tida como instituição hierárquica, e Jesus não foi o seu fundador.

Contudo, se não fundou a igreja, Jesus está fortemente ligado àquele momento, e mais, os católicos logo o proclamaram católico e, para eles, em geral, há, podemos dizer,  “identidade” entre Igreja Católica e Jesus Cristo. Este é outro problema apontado por Küng. Aliás, nesse sentido nos é muito claro, ao menos para aqueles que procuram pensar com um pouco mais de liberdade, tal como Küng, que não haveria Jesus de concordar com todos os caminhos percorridos pela Igreja Católica. Ou Jesus  vangloriaria uma edificação como a de São Pedro, em Roma? E as perseguições? As fogueiras? Isto basta, parece-nos, para distinguir Jesus da Igreja Católica. O amor, a solidariedade, para Jesus, ressaltamos novamente, esteve sempre acima de todas as leis.

Numa Igreja de “panelinhas religiosas dominantes”, palavras de Küng, ainda hoje, certamente, Jesus encontraria muitos obstáculos perigosos à sua mensagem...

Hans Küng, entretanto, nunca se calou, apesar dos riscos, e critica veemente a Igreja, apresentando mais diferenças entre a vida e mensagem de Jesus e a Igreja Católica, lembrando que Jesus nunca ordenou o celibato, e nem seus discípulos o praticaram.

Enfim, nessa direção, o Küng aponta Jesus como um democrata e afirma: “Isso foi a “liberdade, igualdade e fraternidade” cristã original. “ Todavia, destaca: “Mas a comunidade original já não tinha claramente uma estrutura hierárquica, com apóstolos como pilares e Pedro como  uma pedra?” (KÜNG, 2002, p. 32)

Pedro tem um papel fundamental na história da Igreja. Mas também aqui há de se fazerem algumas observações críticas. Qual o papel de Pedro na primeira comunidade? Esta é a questão.

Küng aborda três aspectos acerca do assunto, os quais se mantêm praticamente pacíficos entre os estudiosos.

Desde o início, o pescador Simão foi o porta-voz dos discípulos, inclusive apelidado pelo próprio Jesus de A Pedra. Contudo, “sua deficiência em compreender, sua covardia e sua fuga” são bem relatados e apenas “os evangelhos de Lucas e os Atos dos Apóstolos idealizam-no”. (KÜNG, 2002, p. 35)

A frase famosa de que Pedro seria a pedra sobre a qual Jesus construiria sua igreja não pode ser atribuída a Jesus, mas, sim, deve ser considerada “composta após a Páscoa pela comunidade palestina, ou mais tarde pela comunidade de Mateus”. (KÜNG, 2002, p. 35)

Pedro foi líder, mas ao lado dos Doze apóstolos, e depois fez parte do que são chamados de três pilares: Tiago, Pedro e João.

Se por um lado há evidências de que Pedro foi líder, por outro não há nenhum sinal de que tenha sido líder central, sozinho. A questão ganha importância, conforme explica Küng, em razão de que a Igreja de Roma chamou para si o papel de superioridade hierárquica sobre o mundo justamente sob a alegação de que ali esteve Pedro, líder e pedra fundamental da Igreja.

Há uma concordância, segundo Küng, entre os estudiosos, no seguinte:

O Novo testamento não atesta que Pedro esteve em Roma.

Não há sinais, no Novo Testamento, de que tenha havido um sucessor de Pedro em Roma.

Há, sim, uma “carta de Clemente”, de 90 d.C., aproximadamente e a afirmação do bispo Inácio de Antioquia, aproximadamente de 110, que relatam a estada de Pedro em Roma como mártir durante a perseguição por Nero.

A legitimidade do poder de Roma deveria ficar, pois, ainda, sob o crivo de uma análise mais minuciosa e consubstancial.

A primeira igreja surgiu, de fato, com os doze apóstolos, mas não apenas com eles, pois havia outros, inclusive mulheres, que levavam a mensagem de Jesus. No entanto, não podemos falar, nesse período, da existência de misteres,  porque esse termo implica uma relação de dominação. Aliás, ele esclarece que a frase “Que o que governa seja como o servo”, usada mesmo por Jesus, encerra um sentido totalmente diferente, isto é, um sentido de igualdade, irmandade. Era comum, vale dizer, o uso da palavra diakonia, que indica uma relação de subalternação. A autoridade, como admite o autor, existia, podemos afirmar, não no sentido de ordenação, superioridade, mas de prestação de serviço em vista do bem comum .

Na Igreja moderna, a palavra mister  ganhou força, principalmente envolvendo o significado de “regra sagrada”. Mas, alerta Küng, “este é o último termo que as pessoas usariam para denotar serviço na igreja”.

 

E assim a hierarquia estabeleceu-se na igreja, 500 anos depois de Jesus, por um “teólogo desconhecido que se escondia atrás da máscara de discípulo de Paulo, Dionísio”. (KÜNG, 2002, p. 33)

E mais, a própria palavra padre tem um significado original distinto do adotado pela Igreja. No Novo Testamento, esse termo jamais foi usado para os que serviam nas comunidades cristãs, mas, ao contrário, para os sacerdotes de outras religiões, dentre os quais, aqueles que ofereciam sacrifícios (hiereus, sacerdos).

Naquele período, o termo era presbítero ou ancião. Ancião, quadra restaurar, era existente em todas as comunidades judaicas já desde os primórdios, mas não há segurança para se afirmar sobre a existência de uma hierarquia entre esses anciãos.

Assim, em contrapartida aos direitos de Roma, o autor expõe o fato de que se Roma tem os túmulos dos dois principais apóstolos, Jerusalém foi, sem dúvida, a primeira comunidade cristã. E este é o marco que permeia constantemente toda a história da Igreja, diante dos legados judeus ao cristianismo, como “a língua, as idéias e a teologia judaica”.

Aquelas comunidades eram formadas, sobretudo, por pessoas sem poder econômico, político ou social. Como diz Küng, “Seguindo o exemplo de Jesus, havia particular abertura aos pobres, oprimidos, miseráveis, desesperados, discriminados e proscritos”. (KÜNG, 2002, p. 38)

Contudo, não se pregava a renúncia aos bens materiais, mas, sim, a utilização em prol da comunidade. Os bens, em geram, não eram divididos, mas apenas colocados à disposição daqueles necessitados. Existia, pois, a solidariedade e não o comunismo, com adverte Küng.

Os primeiros cristãos foram, portanto, judeus. Porém, houve a separação motivada inicialmente pelas perseguições e execuções, desde Estevão (judeu-cristão helênico) até Paulo, preso em Jerusalém e morto em Roma. Esses fatores foram fundamentais para a ruptura, ocorrida definitivamente com a destruição do segundo templo dos romanos, em 70 d.C. a partir daí, os cristãos foram excomungados pelos fariseus, excluídos da sinagoga, onde se repetia no início de CAD culto,  maldição aos cristãos, fomentando-se  a divisão e a ira entre as duas comunidades, cujas marcas estão fincadas para sempre, desde os evangelhos de Mateus e João. 

Surgiu, então, daí, o cristianismo gentio (de língua grega e depois, latina), que também está na raiz da Igreja Católica.

Referências bibliográficas:

KUNG, Hans. A Igreja católica. Editora Objetiva. Rio de Janeiro, 2002.