Henri Bergson: uma crítica espiritualista ao positivismo
Luiz Meirelles[1]
Henri-Louis Bergson nasceu em 18 de outubro de 1859, em Paris, França, e se dedicou, inicialmente, à matemática e à mecânica. Somente num segundo momento, a partir de 1878, direcionou-se para a Filosofia, tendo publicado sua tese de doutorado pela Universidade de Sorbonne, em 1889, com o título “Essai sur les données immédiates de la conscience”. Em 1896, publicou “Matéria e Memória”.
De 1900 a 1924 foi catedrático de Filosofia no Collège de France, quando escreveu sua principal obra, em 1907, “A Evolução Criadora”. Antes, em 1900, escrevera “O riso – ensaio sobre o significado do cômico” e, em 1903, “Introdução à Metafísica”.
Em 1928, ganhou o prêmio Nobel de Literatura e, em 1932, publicou seu último livro de grande relevância e de textos inéditos: “As duas fontes da moral e da Religião”. Depois, em 1934, lançou “O pensamento e o movente”, onde reuniu, também, alguns textos anteriores.
Suas aulas foram muito concorridas, inclusive pela alta sociedade, que chegava a “guardar” lugar na sala utilizando-se de seus vassalos. Graças às críticas veementes ao positivismo e à sua grande eloqüência, tornou-se moda no meio cultural francês.
De origem judaica, Bergson foi, aos poucos, sobretudo na última fase de sua vida, aproximando-se do catolicismo, mas, com a ascensão de Hitler, recusou-se deliberadamente à conversão para que pudesse deixar registrado seu protesto contra o nazismo. No mesmo sentido, apesar de ter sido dispensado de apresentação, em razão da idade avançada e estado doentio, quando da invasão de Paris, fez questão de ir pessoalmente preencher e assinar sua ficha, como todos os demais judeus. Faleceu em 04 de janeiro de 1941.
O ponto central de toda a Filosofia de Bergson é sua resistência ao reducionismo positivista, fundamentando sua Filosofia na “duração real”.
Que é a duração fora de nós? Uma multiplicidade qualitativa, sem semelhança com o número; um desenvolvimento orgânico que, apesar de tudo, não é uma quantidade crescente; uma heterogeneidade pura no interior da qual não há qualidades distintas.1[2]
Ao perceber a realidade, o homem está envolto em contingências da experiência de vida que teve e tem. É preciso, portanto, livrar-se desses contornos para que possa, então, atingir os “dados imediatos”. Há, entretanto, indubitavelmente, muitos obstáculos nesse procedimento, entre os quais, sobretudo, os obstáculos morais.
O ponto de partida da Filosofia bergsoniana é a mecânica, isto é, o pensamento evolucionista de Spencer, o qual pode ser descrito como finalista, fundado num plano predeterminado pelas causas finais; bem como o de Darwin, mecanicista, cuja teoria funda-se na seleção natural com base na causa eficiente e, portanto, ateleológica. A partir desses estudos, Bergson concluiu que o tempo, na mecânica, é espacializado, reversível, e há uma sucessão homogênea, enquanto o tempo da consciência é precisamente duração.
No tempo da consciência, prevalece a qualidade e não a quantidade:
Certamente há um presente ideal, puramente concebido, limite indivisível que separaria o passado do futuro. Mas o presente real, concreto, vivido, aquele a que me refiro quando falo de minha percepção presente, este ocupa necessariamente uma duração. Onde portanto se situa essa duração? Estará aquém, estará além do ponto matemático que determino idealmente quando penso no instante presente? Evidentemente está aquém e além ao mesmo tempo, e o que chamo "meu presente" estende-se ao mesmo tempo sobre meu passado e sobre meu futuro.2[3]
Essa é a diferença que o positivismo não detecta. E, por isso, não pode abranger todos os aspectos do humano. É preciso, pois, método próprio para cada aspecto diferente:
“Quando sigo com os olhos, sob o mostrador de um relógio, o movimento do ponteiro que corresponde às oscilações do pêndulo, não meço uma duração, como se parece crer: limito-me a contar simultaneidades, o que é algo bem diferente. Fora de mim, no espaço, há apenas uma única posição do ponteiro e do pêndulo, já que não resta nada das posições passadas. Dentro de mim, se desenvolve um processo de organização e de mútua penetração, que constituiu a duração real”.3[4]
Podemos notar, nessa passagem, que a sua concepção assume parcialmente o pensamento de Zenão de Eléia, que formulou o problema da flecha e do alvo, na tentativa de provar a inexistência do movimento. Bergson explica que tal problema existe porque, de fato, o mundo exterior não acumula fatos, eles ocorrem individualmente, sucessivamente, e é o homem que, percebendo uma série de movimentos, relaciona-os, com sua inteligência, e então determina a relação entre eles. Se fosse julgar apenas pela inteligência, o homem seria obrigado a concluir pela inexistência do movimento, vez que capta a realidade em instantes, consoante será explicado adiante.
Assim, conclui que o critério de causas e efeitos positivos somente vale para as coisas. Para a consciência humana e para os fatos humanos, por conseqüência, esse critério não é válido, posto que nunca existirão dois fatos idênticos, de modo que o resultado do primeiro possa valer para o segundo. Na consciência está o devir, nem predeterminado, como para os positivistas, nem ditado pelo livre-arbítrio, como é tradicionalmente conhecido, vez que a consciência é “unidade de ato”, unidade entre passado, presente e futuro. “Somos livres quando os nossos atos emanam de toda a nossa personalidade, quando a expressam”.4[5] A liberdade está nesta congruência entre ser e agir.
Por isso, a liberdade do homem está na profundidade da consciência, na profundidade do seu comportamento. O eu constitui-se desses atos livres.
Explica-se, desta forma, porque a liberdade está fundada na duração real, isto é, na duração da consciência. É preciso esclarecer, aqui, que a consciência possui três aspectos: a memória, que se confunde com a própria consciência; a recordação, que se refere às coisas úteis ao homem, isto é, que podem ser transformadas em movimento; e a percepção, que diz respeito à atuação do nosso corpo sobre os demais corpos. Ao cérebro, pois, cabe apenas a parte operacional com os recursos da consciência. Também é importante ressaltar que na época de Bergson, o tempo era espacializado, vale dizer, medido nos mesmos moldes do espaço, considerando o tempo divisível em partes individuais. Com essa visão, aliás, Zenão, na Grécia Antiga, já concluíra que passasse o tempo que passasse a flecha jamais atingiria o alvo, pois sempre faltaria a metade do espaço – e do tempo– a ser percorrido entre o ponto que estava no arco e o alvo. Ocorre que Bergson traz a inovação do tempo psicológico, o tempo que contém o passado, o presente e o futuro. O tempo que é medido pela qualidade e não pela quantidade. Desta forma, o tempo espacial está pra a consciência da mesma forma que a realidade exterior está para a realidade interior. Vale dizer, para o homem, um instante pode ser eterno e a eternidade pode ser uma efemeridade. A consciência é livre, não se submete aos critérios positivos para a medida do tempo. Está, pois, fundada a liberdade do homem.
O impulso vital.
Bergson também nos apresenta uma elaborada concepção de mundo, em oposição a René Descartes, com uma distinção radical em relação ao seu dualismo. No pensamento cartesiano, primeira grande marca filosófica da modernidade, o mundo se divide em res cogitan e res extensa. Para Bergson, não há essa divisão, senão aspectos de uma mesma realidade.
“Se a evolução é uma criação incessantemente renovada, ela criou, paulatinamente, não só as formas de vida, mas também as idéias que permitiriam a uma inteligência compreendê-la, e os termos que serviriam para exprimi-la. Isto equivale a dizer que seu futuro transborda seu presente e não pode esboçar-se numa idéia”.5[6]
Esta concepção é encontrada na obra “Evolução Criadora”. Neste livro, propõe o evolucionismo cosmológico, divergindo tanto do mecanicista, de Darwin, como do finalista, de Spencer, que ele considera como uma variação da teoria evolucionista.
A grande questão posta, neste momento, é sobre o que é a realidade, o que é a sua essência.
Uma vez constatado que na consciência não há lugar para repetições, Bergson aplica esse princípio também para toda a vida biológica, afirmando que não há, na vida, repetição, mas, sim, uma constante inovação, criação, que se faz na soma dos passado e do presente, já cheio de futuro.
O ponto de partida é a realidade repleta de energia. Essa energia se manifesta nas mais variadas formas, criando a vida animal e vegetativa, naquela que, para Bergson, é a principal distinção inicial. O universo evolui, não em uma única direção, mas como numa explosão, em vários sentidos e formas.
A vida é o impulso vital que move todo o universo. Por isso ela é, propriamente, o objeto da Filosofia. É este devir contínuo que constitui o ser da realidade. Ocorre, entretanto, como vimos, que o homem apreende a realidade pelos seus momentos estanques, como numa produção cinematográfica.
Considerando, pois, que o movimento vital dá-se em dois sentidos: da matéria para o espírito e do espírito para a matéria, Bergson afirma que o instinto e a inteligência são meios de se obter soluções, o primeiro privilegiando o orgânico e o segundo o inorgânico: “Instinto e inteligência representam, portanto, duas soluções divergentes, mas igualmente elegantes, do mesmo problema”.[7]6
No entanto, o instinto é repetitivo e a inteligência só conhece as relações entre as coisas. Nem um nem outro são capazes de nos mostrar a realidade exatamente como ela é. Faz-se necessário que o instinto volte-se conscientemente ao mundo para o homem poder apreender, então, a realidade. Esse movimento é a intuição. Este, pois, é o método na Filosofia. “...A intuição de que falamos, então, versa antes de tudo sobre a duração interior.”[8]7 E o modo como se dá essa interiorização, segundo Bergson, é a simpatia “pela qual penetramos no interior de um objeto para coincidir com o que ele tem de único e, portanto, inexprimível”.[9]8 Assim é que a Filosofia atinge a própria realidade, e não apenas se debruça sobre ela. No tocante ao papel da inteligência e do instinto, cabe citar, enfim: “Há coisas que só a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si mesma, jamais encontrará. Essas coisas, só o instinto as encontraria, mas ele jamais irá procurá-las.”9[10]
[1] Luiz Meirelles é Mestre em Filosofia – PUCSP, Bel. Em Direito (Unisantos), Lic. Em Filosofia e Letras (Unisantos).
[2] Bergson, Henri. Ensaios sobre os dados imediatos da consciência, p.156.
[3] Bergson, Henri. Matéria e Memória. Martins Fontes: 1999, p. 161.
[4] Bergson, Henri. Ensaios sobre os dados imediatos da consciência. Edições 70: 1988. p.77.
[5] idem, p. 120.
[6] Bergson, Henri. A Evolução criadora. Martins Fontes: 2005, p.112.
[7] Idem, p. 155.
[8] Bergson, Henri. La pensée et le mouvent. Paris :Les Presses universitaires de France, 1969, p. 19.
[9] Idem, p. 100.
[10] Bergson, Henri. A Evolução criadora. Martins Fontes: 2005, p.164.