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ENTREVISTA COM DONNY CORREIA

Por  Wellington Lima Amorim

1. Segundo sua tese, Derek Jarman procurou se fundir a figura do pintor italiano Caravaggio (Obra-autor). Filosoficamente, pode-se definir o erótico como o jogo de luz e sombras, onde o ser das coisas se retrai diante da luz. Por sua vez, a técnica, seja na pintura, fotografia ou no cinema, busca desvelar, desocultar, colocar a nú a verdade de algo, expor o ser das coisas. Logo, podem ser consideradas como pornográficas, uma vez que, o conceito de transparência e luz são os nortes da pornografia, ou melhor, quando a luz exerce o papel de explicitar, retirar a pregas de algo, explicare. Qual a relação do erótico e pornográfico na obra de Derek Jarman?

Acima de tudo, Jarman era escatológico, na medida em que antecipou, como num Apocalipse, a devastação da praga social manifesta no preconceito e na intolerância, fosse ideológica, fosse estética. Ele antecipou o estado de coisas em que forças polarizadas arruinariam as relações. Mas, para responder sua questão, digo que Jarman era predominantemente erótico, embora acusado de pornográfico porque o termo era pejorativamente aplicado a homossexuais, em resposta ao alinhamento sexual de cada um. O erotismo na obra de Derek Jarman é um elemento crucial, pois é por meio dele que o diretor se coloca para o mundo. É como se ele reiterasse a máxima de que “A beleza salvará o mundo”, quer dizer, o corpo erótico – e não só o corpo físico, mas a relação deste com o mundo percebido – é a cristalização de uma investigação muito própria, aquela que mira o engajamento, o desvelo da ternura na carne, muito mais do que o mero deleite do fetiche.

Embora eu não tenha me detido sobre Sebastiane (1976), primeiro longa de Derek Jarman, posso citá-lo porque o erotismo do qual se utiliza é uma resposta incisiva aos ditames do catolocismo. Em Caravaggio (1986), o erótico é didático e quase nunca se apresenta como via de excitação ou exposição. No filme, os corpos nus e torneados catalisam a insânia do pintor italiano e sua errática trajetória.

2.  A técnica desmitifica e profana a realidade, segundo Walter Benjamin. Qual o papel do método cinematográfico de Jarman no processo de desmistificação e profanação da Arte cinematográfica em si mesma?

Você se refere ao ensaio seminal de Benjamin sobre a reprodutibilidade técnica que, na modernidade, rouba a aura de uma obra artística. Permita-se evocar uma belíssima metáfora que o autor nos apresenta no mesmo texto. Para ele, o pintor estaria para um curandeiro assim como um cineasta estaria para um médico. Enquanto o curandeiro trata o enfermo com o poder de seu toque, na superfície da carne, o médico opera seu paciente nas entranhas, abrindo-lhe o corpo e examinando, tocando e escrutinando as vísceras. O pintor, segundo esta analogia, apenas observa o mundo e sua representação é um toque tímido, impressionista – na má acepção do termo – superficial. Já o cineasta, este sim manipula a película, corta, cola, rearranja o material diante de si e, com as facilidades da tecnologia, reconfigura o real que a lente da câmera testemunha. Digo que Derek Jarman foi um exímio médico cirurgião para o cinema, pois em seus filmes mais experimentais, ele operava fisicamente na película para desfigurar a imagem em seu limite em prol de uma obra final que seja quase metacinematográfica. Glitterbug, sua obra póstuma, de 1994, é uma coletânea de pequenos registros caseiros que passaram por experimentos físicos, apagando o sentido narrativo e expelindo a materialidade do cinema, aquilo que está antes de qualquer empreitada lógica, linear, num filme.

3. Em Kant, o sublime tem o objetivo de apequenar a experiência humana diante do incomensurável. Por outro lado você nos trás o conceito de pitoresco em Jarman. Ele considera que o pitoresco tem proeminência diante do sublime? Porquê?

Não vejo desta forma. No segmento “Journey to Avebury”, em Glitterbug, o cineasta nos confronta com a inquietação de uma natureza vasta e implacável. Os descampados do interior inglês sobressaltam-se ante o espectador, fazendo-o se curvar diante da impotência crônica face ao insólito, ao monstro natural. No entanto, este arrebatamento é encapsulado pela lente de Jarman e, posso ousar, domesticado. Fenomenologicamente, podemos enxergar isto como uma corporeidade explicitada do quiasma que existe nas relações do ser com seu meio. Sendo assim, não há mais uma natureza avassaladora a nos ameaçar. É como se o filme negasse a fragilidade do corpo em favor da superioridade da percepção uma vez que o indivíduo se coloca de forma implicada ao seu meio. Sem dúvida, Merleau-Ponty se deleitaria com essas imagens produzidas por Derek Jarman.

Donny Correia é mestre e doutor em Estética e História da Arte pela USP. É crítico de cinema e pesquisa as relações dele como a evolução das vanguardas históricas na arte. Também é escritor e poeta, tendo publicado, entre outros, Corpocárcere (2013) e Zero nas veias (2015). Em 2013, tornou-se o primeiro brasileiro a ter um poema selecionado pela NASA para ser enviado a Marte à bordo da sonda MAVEN. Publica ensaios e resenhas em periódicos como O Estado de S. PauloFolha de S.Paulo Psicologia em foco (PUC-PR). Também atua como professor de História e Linguagem do Cinema em instituições diversas como FMU, Academia Internacional de Cinema e Sesc. Sua obra mais recente é uma compilação das críticas cinematográficas do poeta modernista Guilherme de Almeida, publicado em 2016 pela editora Unesp: Cinematographos de Guilherme de Almeida - antologia da crítica cinematográfica.