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A história em quadrinhos “Lar”: um libelo contra o Binarismo Anticósmico

Por Ciberpajé[1]

 

O Binarismo Anticósmico é uma poética crítica da aceleração do digital, para a sua concepção lanço mão de uma percepção inspirada por leituras de filósofos como Bauman (2004) e a cultura do consumo e volatilidade dos afetos, Baudrillard (1991) e a cultura dos simulacros, Han (2017) e a agonia de eros na cultura hipercompetitiva e narcisista da sociedade de desempenho atual, de artistas como Roy Ascott (2003) e a sua concepção de telenoia, realidades virtuais e vegetais e cultura pós-biológica e Stelarc e seu aforismo poético da obsolescência do corpo. Também de reflexões baseadas na história e tradição ocidental e oriental da magia e do ocultismo, especificamente sobre a essência formadora da vida e do universo, em cosmogonias como a da Doutrina Teosófica (BLAVATSKY, 1975), de Thelema (CROWLEY, 2017), e fundamentalmente das concepções de Ouspensky e Gerge Gurdjief (2017) ressaltando que a essência cósmica universal reflete-se na concepção de uma linguagem astral que é codificada nas linguagens humanas. A poética nasce de um ponto de vista artístico individual, de minhas observações empíricas, estudos de filosofia e magia e da minha experiência cotidiana.

Proponho então uma visão gerada por minhas vivências ao lidar diariamente com aquilo que entendo como linguagem e magia, compreendendo os meus processos criativos como rituais artísticos de autotransmutação. Portanto o que apresento aqui como Binarismo Anticósmico não é uma  tese científica, nem mesmo filosófica, trata-se de uma licença poética baseada em minhas experiências imanentes e transcendentes. Primeiro resgato da tradição ocultista milenar a concepção de que o absoluto, o todo, o uno(universo) é a mônada primal, e como já está dito na palavra, ele é unitário, e sua unidade contém toda a complexidade (GURDJIEF, 2017). Por ser unitária e consolidada não contém paradoxos. Gurdjief (2017, p.79) destaca o que ele chama de “Raio Cósmico” como uma força baseada na “Lei de Três”, segundo ele:

 

Com relação à Lei de Três, podemos dizer agora que no Absoluto e em tudo mais há três forças em ação – a ativa, a passiva e a neutralizante. Como por definição, o Absoluto representa um todo unificado, as três forças existentes nele também devem ser unidas em um único todo(...). O conceito da unidade das três forças no Absoluto forma a base de muitos ensinamentos antigos, inclusive a Trindade consubstancial e indivisível do cristianismo e o Trimurti de Brahma, Vishnu e Shiva no hinduísmo.

 

Esse absoluto se desdobra em seu conteúdo de múltiplas facetas e instâncias. Simplificadamente podemos pensar nesses desdobramentos dividindo-os cosmologicamente em: Cosmos, Galáxias, Sistemas Solares, Planetas, Satélites. O Cosmos é unitário e a partir dele temos desdobramentos de princípios trinários que regem cada instância, metaforicamente podemos chamar esses princípios de “trindade cósmica regente”, sendo eles: passivo, ativo e neutro. O uno Cósmico se desdobra na trindade cósmica na Galáxia, que tem novo desdobramento em 6 no Sistema Solar, em 12 no Planeta Terra, em 24 na vida regida pelo Planeta, em 48 no satélite Lua. Alguns sistemas ocultistas complexizam ainda mais esses desdobramentos dividindo-os em Cosmos/Absoluto, todas as galáxias, Via Láctea, Sol, todos os planetas, Terra, Lua, sendo que, nesse caso, a Terra seria regida por 48 princípios e a Lua por 96 (GURDJIEF, 2017, p.88). Na verdade encaro esses conhecimentos e modelos cosmológicos de forma metafórica e simbólica, e assim eles me auxiliam na condução de minhas reflexões sobre as linguagens. O mais importante é o 3, a trindade, como a base de todas as linguagens cósmicas, assim ao negá-la com o binarismo estruturador da linguagem digital estamos em um caminho anticósmico.

 

Por que lanço mão desses exemplos? Para reforçar, segundo minhas percepções empíricas em experiências de ENOC – estados não ordinários de consciência (MIKOSZ, 2014), que existe na essência do cosmos uma linguagem que rege toda a fluidez universal. A vida humana é um desdobramento dessa complexa linguagem que essencialmente provém da unidade, mas que desdobra-se em princípios que nascem nessa tríade galáctica. Ou seja, a galáxia tem sua linguagem interna que é, por exemplo, reproduzida em muitos sistemas transcendentes: o triângulo astral, a santíssima trindade, o trimurti hinduísta, etc. E essa visão milenar arcaica comprova-se em certa instância até pela física moderna que desdobra o átomo em uma trindade composta por: elétrons, prótons e nêutrons, e também por teorias que tentam abarcar toda a complexidade das linguagens, como no caso da Tríade Peirceana da Semiótica. O 3 é a base, e o 3 pode gerar um fluxo de outras complexidades, como a quartenária linguagem do DNA, mas não pode ser reduzido a 2, pois a unidade cósmica salta do uno (1) para o 3 na complexidade galáctica. Assim o binarismo existe como simplificação de uma percepção aparentemente dualista da realidade por parcelas da humanidade, mas não como essência.

 

Concluo então que todo binarismo é essencialmente anticósmico, pois estrutura-se só nos polos opostos SIM e NÃO, e ignora a terceira via, o NEUTRO. Percebe-se  que a linguagem binária do digital, que compõe hoje a estrutura dominante da comunicação humana, traz em seu íntimo um reducionismo anticósmico, antinatural, o apagamento das zonas cinzas, o extremismo, a hiperpolarização. Isso está diretamente conectado à essência dessa linguagem antinatural.

 

Veja que todas as línguas baseadas no alfabeto grego provêm de uma base de 24 símbolos, e segundo o desdobramento cósmico que eu expliquei, a vida na Terra é regida por 24 princípios que se desdobraram do uno cósmico e da tríade galáctica, ou seja, trata-se de um complexo sistema que em sua estrutura  dialoga diretamente com a linguagem natural-cósmica. E quase todas as demais línguas humanas partem de bases tão ou mais complexas. Não existe língua binária, nem entre a comunicação animal. Não é por acaso que a astronomia e a matemática ainda utilizam em grande escala o alfabeto grego em seus sistemas de signos. Ao criarmos uma linguagem que – em sua estrutura lógica interna - reduz tudo a SIM ou NÃO, 0 ou 1, e tentarmos formatar todas as linguagens preexistentes nesse binarismo reducionista, nós destruímos a força da complexidade que nos é natural, e nem ao menos criamos um diálogo mínimo com a trindade galáctica.

 

A linguagem binária é hoje a base de fluxo para todas as outras linguagens previamente criadas pela espécie humana. Assim percebo empiricamente que ela é o reflexo direto de nossa completa desconexão com a natureza. Trata-se de um fruto do egocentrismo, individualismo e distanciamento dos aspectos positivos de nossa condição animal, selvagem. O binarismo só poderia ser inventado por seres apartados da natureza cósmica e natural, autocentrados, egoicos e anticósmicos. E perceba, em certa medida, esses seres dominam hoje a cultura humana, somos regidos pelo hipercapital que acredita que a natureza é uma massinha de modelar e pode ser usada ao seu bel prazer. Foram esses seres que engendraram o binarismo, pois ele dialoga diretamente com sua perspectiva equivocada da vida, toda ela construída de impressões binárias que resumem suas interações com o mundo a partir de um GOSTO/NÃO GOSTO, AMO/ODEIO, BOM/MAU, AMIGO/INIMIGO. Não existe nem ao menos uma terceira possibilidade, e o que eles amam costuma ser apenas a eles mesmos. Assim o resto da humanidade e da biosfera torna-se o inimigo a ser destruído ou adquirido para trabalhar para eles, mas sempre inimigo. Nada de realmente integrativo, cooperativo, empático e belo pode nascer de tal linguagem extremista.

 

Portanto, em minha percepção o cosmos é regido por linguagens, e a humanidade hoje é regida por uma linguagem hedionda baseada no egoísmo e extremismo. É impossível inclusive fugir completamente do poder incomensurável dessa linguagem destrutiva. Eu, por exemplo, sou um artista que ganho a vida como professor, tenho obrigatoriamente que utilizar essas ferramentas binárias. O que tenho tentado fazer, com alguns sucessos e inúmeros fracassos, é subverter essa linguagem em uma perspectiva ciberpunk, utilizá-la para refletir poeticamente sobre a sua podre essência, ou subvertendo suas finalidades basais para gerar arte que usa o binário para questioná-lo, desestruturá-lo.

 

Na história em quadrinhos de duas páginas, “Lar”, lanço mão de uma linguagem visual e narrativa chamada de poético-filosófica e crio uma breve obra que se insurge contra o Binarismo Anticósmico. Na primeira página apresento uma das fases de uma experiência de ENOC (estado não ordinário de consciência) que tive durante uma sessão de Respiração Holotrópica (GROF, 2016), uma experiência inicialmente angustiante, na qual me via a princípio como uma figura angelical e depois com cascos bipartidos e chifres saindo de minhas bochechas e orelhas, atrelado à dualidade reducionista dos múltiplos aspectos do self, aqui remetendo-nos ao binarismo. Já na segunda página eu apresento a continuidade da experiência em que me vi multiplicado em inúmeros humanos, e depois em insetos diversos como gafanhotos, borboletas e mariposas, posteriormente animais aquáticos, para finalmente ser uma espécie de cisne em um lago plácido e fluido. Nessa parte da experiência abracei minha profunda complexidade e amei todos os meus inúmeros aspectos formadores, reconciliando-me com o todo cósmico e por isso abraçando a serenidade de nada ser. O texto e os desenhos dialogam entre si criando uma conexão poética que revela essa chama da complexidade cósmica do self que implode o Binarismo Anticósmico. O título da narrativa “Lar” trata desse resgate da complexidade como o nosso real lugar, o nosso lar.

 

Referências

ASCOTT, Roy. “Quando a Onça se Deita com a Ovelha: a Arte com Mídias Úmidas e a Cultura Pós-biológica”. In: Arte e Vida no Século XXI – Tecnologia, Ciência e Criatividade (Diana Domingues org.), São Paulo: Editora Unesp, 2003, pp.273-284.

BAUDRILLARD, Jean. Simularcos e Simulações. Lisboa: Relógio D'Água, 1991.

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

BLAVATSKY, H.P. A Doutrina Teosófica: Recensão de seus Textos Fundamentais. São Paulo: Hemus, 1975.

CROWLEY, Aleister. Liber Al Vel Legis: O Livro da Lei. São Paulo: Editora Campos, 2017.

GROF, Stanislav e GRAF, Christina. Respiração Holotrópica. Rio de Janeiro: Capivara, 2011.

GURDJIEF, G.I. Em busca do ser: o quarto caminho para uma nova consciência. São Paulo: Pensamento, 2017.

 

[1]    Edgar Franco é o Ciberpajé, premiado artista transmídia, pós-doutor em arte e tecnociência (UnB), pós-doutor em artes – quadrinhos e performance (UNESP), doutor em artes (USP), mestre em multimeios (UNICAMP), arquiteto e urbanista (UnB) e professor permanente do Programa de Pós-Graduação (mestrado e doutorado) em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás, onde também coordena o Grupo de Pesquisa CRIA_CIBER. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.