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HQ Homo Sacer: post-scriptum

GAZY ANDRAUS
Doutor em Ciências da Comunicação - USP
Mestre em artes Visuais - Unesp

                                                                      

Há algumas poucas semanas, deparei-me com o conceito que a mim intrigou: “Homo Sacer”. Obviamente já conhecia o termo Homo Sapiens (e até o de duas vezes “sábio”: Homo Sapiens Sapiens, como derivativo do sapiens “original”), além dos utilizados por Edgar Morin, quais sejam, Homo Ludens e Homo Demens, bem como Homo Faber.

Fiquei com a idéia na mente, deixando-a interagir em meu ser, e na esperança de quiçá realizar algum trabalho artístico com o conceito – assim que soubesse seu significado. Desta feita, corri à internet e entendi que, do latim, significava “homem Sacro” (ou então, sagrado). Mas eis que, lendo mais, vi que o conceito foi retomado por Giorgio Agamben, filósofo italiano que versa conteúdos abrangendo desde a estética à política, dentro da complexidade reconhecidamente atinente aos filósofos.

Passados alguns dias, Luiz Meirelles envia-me um convite para ilustrar a capa da revista “Paradigmas” e depois acena que também há espaço para alguma curta HQ (histórias em quadrinhos).

Pois bem, como tenho andado ultimamente revendo minha posição-locus no mundo (e na vida) e intentando resgatar uma fase em que seguia um pouco mais minha intuição (principalmente na arte), percebi uma conjunção entre o convite e o conceito de homo-sacer que havia feito eclodir em mim uma vontade de realizar alguma expressividade artística com tal perspectiva – décadas atrás concebi um álbunzine chamado “Sacro-Conquistador” que compilava minhas HQs poéticas principais desde 1987 a 1997! Um álbunzine é o que chamo um fanzine maior cuja formatação lembra um álbum de quadrinhos. Um fanzine (ou zine) é uma publicação independente e não-oficial que pode trazer impressas (ou xerocadas) em suas páginas, quaisquer temas e quaisquer aportes artísticos, como HQs, charges, cartuns, poesias etc.

Então, após “rascunhar” a ilustração para a capa de Paradigmas, evidenciei outra arte em 2 páginas do que entendi acerca do homem-sacro dito por Agamben, embora ainda não houvesse compreendido tanto quanto talvez devesse acerca daquele conceito. Pesquisando mais, vi que o “homem-sacro” remonta à figura do direito humano, e é alguém que pode ser julgado pelo povo por algum ilícito, mas sendo não lícito que o sacrifique. Porém, caso alguém o mate não estaria acusado de homicida, pois o homo sacer é também tido como maldito, ainda que igualmente sagrado.

Como se percebe aqui, o que me valeu mais, como intuição direta a meu processo de criação, foi o parco conhecimento do conceito, via rápidas e mínimas leituras para que eu, como quase sempre o faço em processamento criativo, “despejasse” o que me vinha por intuição nas duas páginas.

É melhor lerem a HQ antes da continuidade de meu relato aqui, a seguir:

Na primeira página surge uma figura que, ao se aproximar, poderia ser qualquer um, mas também essencialmente Jesus Cristo, representando o tal homo sacer.  Assim, depara-se ele com um soldado romano que o interpela mostrando sua espada.

Ao que, na segunda página, este mesmo soldado aparece em primeiro plano, de costas, ajoelhado, mas dando o veredito a que apenas um ser julgue aquele que está crucificadamente morto. E este único ser que poderia julgar, seria o próprio pai do homo sacer da história: Deus!

Algumas curiosidades: quando esbocei a HQ, o fiz durante um evento que participava no dia 11/06/22, o Steampunk Santos, e o fiz frente e verso numa mesma folha de papel um pouco mais grossa que o sulfite comum. Além disso, eu tinha parco conhecimento do conceito que havia me intrigado – o de um ‘homem sacro’, mas que ao mesmo tempo seria ‘impuro’ (!). Portanto, com estes “dados” em mente (aliados à minha intuição), para a finalização da narrativa visual, fui esboçando alguns complementos, como as molduras espinhosas que fecham cada uma das duas páginas, assemelhando-se à coroa de espinhos que foi inserida na cabeça de Cristo no dia de sua crucificação.

Ademais, ao trabalhar as páginas no Photoshop, inseri um recurso gráfico pontilhado em algumas áreas – e a “intuição” novamente me fez manter a escolha inadvertida da cor avermelhada para o grafismo, o que emblemou mais ainda a mensagem do homem sagrado tendo seu sangue derramado como epitáfio da saga crística.

É assim que finalizo este post-scriptum, relativo à HQ poética “Homo Sacer”, advertindo que a intuição, desta vez, me guiou mais do que tenho-a seguido, trazendo-me coincidências  que remetem ao sincronismo de Carl G. Jung – como o conceito homo sacer ter-me vindo dias antes do convite de Luiz, que está dentro de um âmbito filosófico da questão ao convite à revista “Paradigmas”. E isto tudo, para mim, é bom, pois me faz retomar um percurso que desde meu doutoramento, fui minimizando para dar lugar à racionalidade imperiosa reducionista cartesiana!

E creio que esta, sem o auxílio da intuição criativa, a mim, seria manca, pois eu não estaria trazendo tais artes e nem tentando refletir acerca delas. E menos ainda, seria convidado por Luiz a participar desta edição da revista Paradigmas, e vocês não poderiam experienciar a leitura da HQ (de certa maneira explanada por com este texto).

Se isto seria ou não relevante (e a que e/ou a quem), só a consciência do homo sapiens sapiens poderia dizer!

 

Referências bibliográficas:

 

EQUIPE ÂMBITO JURÍDICO. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua.

Âmbito Jurídico. 01mar2010. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-74/homo-sacer-o-poder-soberano-e-a-vida-nua/ >. Acesso em 17/06/2022.

 

Direito e Literatura – Homo Sacer (Bloco 1). Youtube: TV e Rádio Unisinos. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EAHEuhwb0e8>. Acesso em 19/06/2022.

 

HOMO SACER. Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Homo_sacer> Acesso em 19/06/2022.

 

MAGALHÃES, Laura. Homo sapiens sapiens. Toda matéria. Disponível em: < https://www.todamateria.com.br/homo-sapiens-sapiens/#:~:text=O%20Homo%20sapiens%20sapiens%20%C3%A9,s%C3%A1bio%2C%20homem%20que%20sabe%22.>. Acesso em 19/06/2022.

 

MARTINS, Aline Souza. Homo sacer, sujeitos abandonados ao crime. Giorgio Agamben e a Psicanálise. Correio APPOA. Nov. 2014. Disponível em: <https://appoa.org.br/correio/edicao/240/homo_sacer_sujeitos_abandonados_ao_crime/158 >. Acesso em 19/06/2022.

 

MARTINS, Thiago Penzin Alves. A precarização da vida e o homo sacer brasileiro: o alastramento da vida nua na sociedade brasileira e a biopolítica. Argumenta Journal Law. N. 19. 2013. Disponível em: < http://seer.uenp.edu.br/index.php/argumenta/article/view/381 >. Acesso em 19/06/2022.

 

Gazy Andraus[1] (19/jun/2022)

 [1]Gazy Andraus é pós-doutorando pelo PPGACV da UFG (Bolsista PNPD-CAPES), Doutor pela ECA-USP, Mestre em Artes Visuais pela UNESP, Pesquisador e membro do Observatório de HQ da USP, Criação e Ciberarte (UFG) e Poéticas Artísticas e Processos de Criação. Também publica artigos e textos no meio acadêmico e em livros acerca das Histórias em Quadrinhos (HQs) e Fanzines, bem como também é autor de HQs e Fanzines na temática fantástico-filosófica.

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GAZY ANDRAUS
Gazy Andraus (Ituiutaba, 11 de janeiro de 1967) é professor universitário, quadrinhista e pesquisador brasileiro de histórias em quadrinhos. Como autor, produz diversos fanzines e HQs, especialmente no que se convencionou chamar de "quadrinhos poético-filosóficos", inspirado por autores de quadrinhos franco-belga como Philippe Druillet e Philippe Caza, publicados na década de 1970 na páginas da revista Métal hurlant.

Possui doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e mestrado em Artes Visuais pela Universidade Estadual Paulista. Atualmente é pós-doutorando pelo PPGACV na FAV da UFG.

Como quadrinhista, publicou em fanzines e revistas internacionais como o zine francês "La Bouche du Monde nº. 7 e nº. 8 e publicações brasileiras tais como QI, Barata, Matrix, Ideário, Mandala, Fêmea Feroz, Metal Pesado e Brasilian Heavy Metal .

Na área de pesquisa, escreve diversos livros e capítulos sobre quadrinhos e fanzines, tendo colaborado com os sites Omelete, Impulso HQ e Bigorna.net. Em 1999, apresentou a dissertação de mestrado Existe o quadrinho no vazio entre dois quadrinhos? (ou: O Koan nas Histórias em Quadrinhos Autorais Adultas), em 2007, ganhou o 19º Troféu HQ Mix na categoria de "melhor tese de doutorado" por sua pesquisa As histórias em quadrinhos como informação imagética integrada ao ensino universitário, defendida na Universidade de São Paulo.

Atualmente criou seu canal "GaZine" no Youtube, para explorar histórico, conceitos e atualidades acerca do universo dos fanzines, zines, biograficzines e artezines.

É membro do Observatório de Histórias em Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, tendo colaborado com a revista Quadreca, da ECA-USP, membro também da ASPAS (Associação dos Pesquisadores em Arte Sequencial), INTERESPE (Interdisciplinaridade e Espiritualidade na Educação (PUC-SP) e Criação e Ciberarte da Universidade Federal de Goiás.