Poesia, linguagem e habitar em Heidegger
Siloe Cristina do Nascimento Erculino
Mestranda em Filosofia - UFES
Heidegger (1889-1976), filósofo alemão, desenvolveu em seus trabalhos “a questão do sentido do ser” , segundo ele, foi esquecido pela metafísica.
Ele compreende o homem como ser-aí, isto é, a existência do “dasein” como um ser-no-mundo que é possível, apenas inserido no tempo. Esta compreensão é a pedra fundamental que sustenta o pensamento heideggeriano, e está presente também na sua conferência “poeticamente o homem habita”. Nesta tarefa precisaremos desenvolver o “habitar” a partir de seu vigor essencial, que implicará o entendimento da “quadratura” e o resguardo de suas quatro faces. Veremos brevemente o que é isto à linguagem, e esta nos permitirá compreender como a poesia realiza o des-velamento das significações originárias do mundo para assim podermos atingir o escopo principal deste estudo, ou seja, como a poesia e o habitar estão entrelaçados.
Habitar
O fenômeno de habitar revela a essência do existir do homem, pois habitar é o modo como os homens são e estão sobre a terra. É acolhendo o céu, salvando a terra, aguardando os deuses e reconhecendo a morte que o homem habita como parte constitutiva da existência humana. O traço fundamental do habitar é estar submetido às estas condições, pois o homem só pode existir como ser-no-mundo, isto é, na quadratura. A unidade originaria terra, céu, mortais e deuses traduz o que é o habitar, os quatro elementos só se dão em relação e não podem ser pensados separadamente. É na co-pertinência que o mundo se torna mundo e homem se torna homem, dessa maneira são reveladas as possibilidades de ser do homem e ser das coisas. É pela diferença dos elementos da quadratura que há o ajuste na unidade originaria. Se o homem é ser-no-mundo, e o habitar é o modo pelo qual os mortais são e estão no mundo, o habitar se relaciona não apenas com o residir em um lar, porém também com o construir, ou com as possibilidades de ser-no-mundo. Construir é habitar em seu sentido originário. Construir pode ser edificar uma construção bem como cultivar, ambos são modos do homem existir no mundo em relação com as coisas: todas as construções humanas, as modificações que ele faz a sua volta, constituem o habitar. O homem não é senhor da terra independente e soberano. Ele só pode cultivar se resguardar a quadratura, que mostra o lugar fértil na terra e as condições de clima e estações do céu. A quadratura mostra como o homem não constrói o mundo, muito menos o contrario, os dois se dão na unidade originaria, em relação. O cultivo ilustra o modo de ser do homem na quadratura, ele planta na terra fértil, escolhe a estação, desenvolve agrotóxicos, hormônios, estufas, mas ao plantar a semente na terra é preciso respeitar o tempo das coisas. O homem, “cheio de méritos”, habita, cultiva, colhe, constrói... Porém, mesmo com os méritos, a exploração e a degradação das coisas existe, e é resultado de não saber resguardar a quadratura em sua essência. A tentativa de dominação do homem, de ser senhor da terra e ser senhor da linguagem, mesmo sendo apenas um servo, parte integrante da quadratura que só pode ser vista ou entendida em sua conjuntura, não vê nas coisas o seu vigor. Daí a destruição e o desequilíbrio, enquanto que uma relação de espera resguardaria as quatro faces da quadratura.
[...] os méritos dessas múltiplas construções nunca conseguem preencher a essência do habitar. Ao contrário: elas chegam mesmo a vedar para o habitar a sua essência, tão logo sejam perseguidas e conquistadas somente com vistas a elas mesmas. (HEIDEGGER, 1997, p. 169).
Resguardar a essência é resguardar o sentido do ser, demorar-se junto às coisas, permanecer junto a elas. Homem e coisa são resguardados quando entregues ao seu vigor, liberdade é deixar o ente ser aquilo que é, tornar-se o que se é.
Linguagem
A linguagem surge na relação da quadratura, em que o ser-ai, se relaciona e compreende o ser na ação. É na linguagem que as coisas nascem e verdadeiramente se realiza o des-velamento das significações do mundo: hermenêutica da experiência do acontecimento do Ser que se revela ao homem e determina o modo como ele se interpreta e aos outros entes. A linguagem é o acontecimento em que o ente se abre[1]. (Rosete, 2007). O “dasein”, a existência humana compreende e se relaciona com o Ser, é ele que articula os significados que são descobertos para o Ser dos entes. Ao pensar a linguagem devemos nos remeter à compreensão e à interpretação. No discurso há uma compreensão prévia, pois o remete para suas próprias possibilidades de Ser e estar no mundo; e a interpretação é a apropriação dessa compreensão de Ser, a descoberta do significado do Ser na ação. Assim a fala rotineira é apenas falatório, pois, se a interpretação é a descoberta do significado do Ser e do “dasein” na ação, compreensão e interpretação são mais que discursos sintáticos e gramáticos que o homem pronuncia, são os fundamentos ontológicos-existênciais da linguagem. O falatório é o modo cotidiano com que o homem se relaciona com as coisas, modo inautêntico do “dasein” se relacionar com o ser: permanece na superfície, na pré-compreensão do que as coisas sejam. Ele fala sem pertença de maneira informativa e não promove a experiência de pensar o que se está ouvindo, é o discurso vazio que perdeu a sua “significação ontológica verdadeira” ou o elemento do ser. Mas há um modo autentico ou poético que busca o sentido do ser, deixa em aberto a relação entre homens e coisas, não as esgota em um único sentido, mas pensa o sentido do Ser em cada uma das relações. A poesia permite o significado originário da palavra:
“Quanto mais poético um poeta, mais livre, ou seja, mais aberto e preparado para acolher o inesperado é o seu dizer; com maior pureza ele entrega o que diz ao parecer daquele que o escuta com dedicação, e maior que separa o seu dizer da simples proposição”. (HEIDEGGER, 1997, p.168)
Poesia
Mostramos anteriormente o que é habitar para Heidegger e sua relação com a quadratura, desenvolvemos que a linguagem é o fundamento ontológico das coisas, pois é nela que ocorre o acontecimento do Ser que o “dasein” está lançado. Ora, é na linguagem que se dá a abertura para o mundo e a poesia é a obra suprema da linguagem, uma vez que permite perscrutar as dimensões ontológicas autênticas do que foi nomeado. Aprofundaremos aqui a relação entre a essência do habitar e a essência da poesia: “[...] cabe pensar a essência da poesia, no sentido de um deixar habitar, como o construir por excelência”. (HEIDEGGER, 1997, p.167). A poesia é o acontecimento do medir, medindo-se com o divino o homem revela o desconhecido e preserva-o em seu velamento. A dimensão é a fissura onde as coisas se dão, ou seja, é a medida aberta entre céu e terra. A poesia é a tomada dessa medida que consiste em desocultar e deixar ver o que se encobria, resguardando o que se encobre em seu encobrir. Por isso a medida para a poesia é o divino e não a terra, pois o modo poético da linguagem busca o sentido do ser e deixa em aberto o campo das relações entre homem e mundo. “(...) a medida, que o poeta toma, tem como destino o estranho em que o invisível resguarda a sua essência, na fisionomia familiar do céu”. (HEIDEGGER, 1997, p.178). Os homens desejam nomear e definir, de maneira que coisas e utensílios ganhem um sentido só, o que não é possível. Heidegger nos exorta a ouvir o “apelo da linguagem”, isto seria desobstruir as pré-compreensões para sair do modo inadequado da linguagem, abandonar o falatório. Para isso o homem precisa deixar a tentativa fracassada de ser senhor da linguagem, e retornar ao seu sentido poético, uma percepção do real para além da superfície de pré-compreensões cotidianas, aberto ao campo de relações para acolher o inesperado na quadratura. “(...) o poético extrai a sua capacidade reveladora inesgotável do ser que solicita o pensamento, apelando para o dizer da linguagem.” (NUNES, 1992, p. 262). No modo poético a linguagem fala, a palavra é mais que um vocábulo, é o que leva uma coisa a ser coisa, posto que palavras e coisas nascem juntas, e nomeando, a poesia se funda. Porém o poeta não funda um vocábulo ou conceito fixo e definido, do contrario se funda no des-velamento e deixando a quadratura vigorar em sua essência, isto é, deixa o “dasein” como ser-no-mundo entregue à relação. A poesia funda o “dasein”, pois mostra como está ligado à totalidade, toda nomeação poética invoca a unidade originaria da quadratura e o campo de relações entre seus componentes. Ao pensar o mortal tem-se como relação o imortal, ao dizer céu tem-se a terra, cada elemento reflete a maneira de ser do outro, em outras palavras, poeticamente se funda na quadratura de tudo o que é, e ao fundar os entes, a poesia funda o homem como habitante da terra. A poesia dá a medida entre homens e deuses, revela a essência do homem como mortal e como ser-no-mundo, habitante da terra. Assim pode-se dizer que “cheio de méritos” com construções, tecnologias, meio de transportes... porém “poeticamente o homem habita”, uma vez que o movimento da linguagem no acontecer desencobre e compreende as possibilidades de se relacionar com o Ser, e habitar é, justamente, o modo como os homens são e estão no mundo, assim, ditar poeticamente é habitar em seu sentido inaugural.
Referências brbliográficas
NUNES, Benedito. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. 2ª Ed. - São Paulo: Ática, 1992.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
Rosete, Isabel. A arte como poesia essencial em que um povo diz o ser. 2007. Disponível em: http://www.consciencia.org/heideggerisabelrosete4.shtml. Acesso em: 01. Ago, 2013
Saramago, Ligia. A Topologia do Ser: Lugar, Espaço e Linguagem no Pensamento de Martin Heidegger. Rio de Janeiro: PUC-rio, 2008.
Werle, Marco Aurélio. Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger. São Paulo: UNESP, 2005.
[1] Vale acrescentar que se é na linguagem que se dá o ser das coisas, e a poesia é a obra suprema da linguagem, a poesia é arte, enquanto a arte for entendida como o que transparece com mais vigor a verdade do ente.