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Sobre o pessimismo de Anaximandro: A presença de Schopenhauer em A Filosofia na idade trágica dos gregos

Leonardo Araújo Oliveira
Doutorando em Filosofia - UFMG

 Ideia central da obra: pensamento e personalidade

Um ano após a publicação de O nascimento da tragédia (1872), surge o opúsculo intitulado A filosofia na idade trágica dos gregos, que completa agora 150 anos. Trata-se, no entanto, de um material revisado das lições sobre filósofos pré-platônicos, que Nietzsche começou a tomar nota em 1869, preparando aulas na Universidade de Basiléia, quando ocupava o cargo de docente de filologia clássica.

Já no primeiro prefácio ao seu ensaio, Nietzsche estabelece qual será sua abordagem. Trata-se de pensar os filósofos a partir de suas disposições pessoais. Nessa época Nietzsche já buscava ressaltar a figura do filósofo como sintomatologista da cultura, buscando nos sistemas filosóficos aquilo que sua filosofia madura pensaria como condições psicofisiológicas de emergências das ideias, isto é, de pensar a relação intrínseca entre conjunto de ideias e formas de vida: 

 

Quem, em contrapartida, se alegra com grandes homens, também tem a sua alegria em tais sistemas, pois, mesmo que sejam inteiramente erróneos, não deixam de ter um ponto completamente irrefutável, uma disposição pessoal, uma tonalidade; podem utilizar-se para construir a imagem do filósofo: assim como a partir de uma planta se podem tirar conclusões sobre o solo. Em todo o caso, trata-se de uma maneira de viver e de ver as coisas humanas que já existiu, e que, por isso, é possível: o “sistema” ou, pelo menos, uma parte deste sistema, é a planta nascida neste mesmo solo (NIETZSCHE, 1995, p.11-12).

 

No segundo prefácio permanece a tentativa de extrair um fragmento de personalidade (NIETZSCHE, 1995, p.11), sendo essa “a única realidade eternamente irrefutável”. Por isso ele afirmará, naprimeira seção da obra, que em filósofos como “Tales, Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Anáxagoras, Empédocles, Demócrito e Sócrates”, o pensamento e o caráter “estão ligados por uma necessidade estrita” (NIETZSCHE, 1995, p.20). Nietzsche chega a considerar que os gregos se autorregularam contra a busca descontrolada por saber (concebida por ele como tão prejudicial quanto a aversão ao conhecimento), “mediante a consideração pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal – porque o que aprendiam logo o queriam viver” (NIETZSCHE, 1995, p.20). Numa leitura que antecipa pontos importantes da abordagem de Pierre Hadot (2014) sobre a filosofia antiga, que ressalta no pensamento grego a centralidade da filosofia como maneira de viver, Nietzsche defende que “ao contrário dos modernos, para os quais a realidade mais pessoal se sublima em abstrações, para os gregos a máxima abstração concretizava-se sempre numa pessoa” (NIETZSCHE, 1995, p.29).

A última citação destacada é feita já na leitura de Nietzsche sobre o primeiro filósofo grego. Na seção sobre Tales, visualizamos a célebre tríade de razões para que o sábio de Mileto possa ser considerado o primeiro filósofo: a) a pesquisa pelo princípio;b) realizada sem “imagem e fabulação”; c) contendo em si, mesmo que em germe, a noção de que “tudo é um” (NIETZSCHE, 1995, p.21). A segunda razão é a que retira esse discurso do domínio mítico-religioso e a última é a que tornaria ele um filósofo. Nietzsche descreve tanto o aspecto científico quanto oontológico, mas parece dar mais relevância ao último, ao afirmar que “Tales vislumbrou a unidade do ente; e quando a quis comunicar, falou da água!” (NIETZSCHE, 1995, p.32).

Se Tales é considerado tanto como o primeiro filósofo quanto o primeiro cientista, a recepção do pensamento de Anaximandro não fica para trás: “Anaximandro abriu caminho para a física, para a geografia, para o estudo dos fenómenos meteorológicos e para a biologia” (ROVELI, 2021, p.13).Aperfeiçoador do relógio de sol (de origem babilônica), é também reconhecido como o primeiro grego a traçar um mapa geográfico e medir a distância entre as estrelas. Mas o maior interesse de Nietzsche, seguindo a metodologia indicada desde os prefácios, é no aspecto existencial do seu pensamento. Nietzsche acredita que Anaximandro caminhou dois passos além de Tales, colocando as seguintes questões:

 

Primeiro, pergunta a si mesmo: “se há, em geral, uma unidade eterna, como é que a multiplicidade é possível?”. E recebe a resposta do caráter contraditório desta multiplicidade que a si se devora e se nega. A existência desta multiplicidade torna-se para ele um fenômeno moral; não se justifica, mas expia-se incessantemente pelo declínio. Mas então ocorre-lhe a questão: “Porque é que tudo o que entrou no devir não pereceu já há muito, uma vez que já se passou uma eternidade de tempo? De onde provém a torrente sempre renovada do devir?” (NIETZSCHE, 1995, p.37).

 

Começaremos a desenvolver tal temática a partir do arkhéanaximandriano: o ápeiron.

 

Anaximandro e o Ápeiron

 

Discípulo de Tales, Anaximandro teria sido o primeiro a usar o termo arkhé (ἀρχή), pensando-o tal como seu antecessor concebeu a água, como princípio estruturante da realidade. Mas diferente do seu mestre, Anaximandro não se contentou em identificar o arkhéa um elemento da natureza, substituindo-apelo que denominou deápeiron (απειρον), traduzido como indeterminado/ilimitado/infinito.Sem determinação especial ou qualitativa, o ápeironestariadinamizado por um movimento eterno, que permite a distinção entre opostos que expiam um ao outro as injustiças realizadas, promovendo assim um equilíbrio cósmico, regulado pelo aparamento dos excessos de um elemento em relação a seu contrário.

Em sua Física (Livro III, 203b), ao trabalhar o conceito de απειρον, Aristóteles (p.190-191) reconhece que talpesquisa concerne aos físicos. Retomando, assim, o arkhé como ideia central dos investigadores da physis, ele argumenta que o ápeiron impõe um limite a ideia de que tudo que existe deriva de um elemento primordial, a não ser que o princípio seja o próprio ilimitado. Aristóteles considera que o ápeiron, sendo princípio, não pode ter sido gerado e nem pode ser destruído,definindo-o, assim, como “imortal” e “imperecível”, conforme as palavras de Anaximandro citadas por Aristóteles.

Compatíveis com as observações de Aristóteles são as palavras de Nietzsche (1995, p.34): “um ser que possui qualidades definidas nunca poderá ser a origem e o princípios das coisas; o ente verdadeiro, concluiu Anaximandro, não pode possuir qualidade definidas, de outro modo teria de nascer e de morrer, como todas as outras coisas”. Destarte, por um argumento que se assemelha, por antecipação, há uma das provas ontológicas utilizadas nas filosofias medieval e moderna, trata-se de pensar que a causa não pode ser inferior a seus efeitos. Como argumenta um historiador da filosofia antiga, se o arkhé torna-se toda a diversidade “tanto por qualidade como por quantidade, deve em si ser privado de determinações qualitativas e quantitativas, deve ser infinito espacialmente e indefinido qualitativamente” (REALE, 2005, p.17).

Nietzsche, por sua vez, tentará compreender como o ápeiron se articula com um pensamento moral, pois sua questão é entender os alicerces vitais que sustentam esse tipo de arquitetura filosófica. Destacando em Anaximandro um grande estilista, de escrita “majestosa” e “lapidar”, Nietzsche acredita que ele viveu como escreveu; e cita a passagem em que Anaximandro afirma que “de onde as coisas tiram a sua origem, aí devem também perecer, segundo a necessidade; pois elas têm de expiar e de ser julgadas pelas suas injustiças, de acordo com a ordem do tempo”. Nietzsche (1995, p.33) qualifica esse enunciado como enigmático e questiona: como é possível decifrá-lo?

Desde essa primeira caracterização, o filósofo alemãodestaca o pessimismo de Anaximandro,acenando para o que viria no parágrafo seguinte, como uma tentativa de decifração do enigma: a aproximação com Schopenhauer (1995, p.34). Ele então menciona o Parerga e poliponema, em que Schopenhauer assume como critério para juízo da condição humana o fato de que tal ser não deveria existir, e que, assim, carrega em sua vida o sofrimento e,enfim, se depara com a morte, como expiação do erro em que consiste onascimento.

 

Aproximação com Schopenhauer

 

Nietzsche realiza essa aproximação por considerar que tanto o filósofo da Vontade quanto o filósofo do ápeironinserem,na ontologia, um conteúdo moral. Eles fazem do cosmos um problema ético, ao relacionar a existência das coisas individuadas a uma condição de injustiça original, elaborando a ideia de uma tendência de retorno ao nada.

Schopenhauer abre sua obra capital afirmando que a verdade primeira de todo ser vivo, mas que somente o ser humano pode trazer “à consciência refletida e abstrata”, é a de que o mundo é sua representação (SCHOPENHAUER, 2005, p.43). Vorstellung designa a representação mental a se colocar (stellen) à frente (vor). O que reside por trás daquilo que colocamos à frente enquanto conteúdo mental, enquanto ideia (outra tradução para Vorstellung) do que vemos e conhecemos, é a Vontade (Wille). O que atua por trás da representação é a essência do mundo. Trata-se de uma força cega que move todas as coisas, inclusive o ser humano – a forma mais perfeita da Vontade, ao se configurar como o momento em que ela toma consciência de si própria. Desse modo o sofrimento é o que melhor designa a condição humana, na medida em que ela se situa no âmbito do desejo infindável.

A divisão do mundo em representação e vontade deriva da distinção kantiana entre fenômeno e coisa em si: “Toda representação, não importa o seu tipo, todo OBJETO é FENÔMENO. COISA-EM-SI, entretanto, é apenas a VONTADE” (SCHOPENHAUER, 2005, p.168, grifos do autor). Por isso Nietzsche afirma que o ápeiron pode ser tomado como “equivalente a coisa em si’ kantiana” (NIETZSCHE, 1995, p.35). Sendo assim, a concepção de vontade em Schopenhauer influencia a leitura que Nietzsche faz do arkhéanaximandriano, assim como em outros estudos do mesmo período determina a separação, no âmbito da primeira filosofia da artenietzschiana, entre apolíneo e dionisíaco. A Vontade é o noumeno schopenhaueriano:“Essa COISA-EM-SI (queremos conservar a expressão kantiana como fórmula definitiva) [...] não poderia ser outra coisa senão o mais perfeito dentre seus fenômenos, isto é, [...]: exatamente a VONTADE” (SCHOPENHAUER, 2005, p.169, grifos do autor).

A vontade é o fluxo caótico e contínuo, regente do universo, que aparece particularizada nos indivíduos no mundo tomado como representação, condenando-os a uma existência em que o desejo é perpétuo e a satisfação é provisória e efêmera, “o próprio corpo do homem é considerado como forma fenomênica, como objetivação e obra de sua vontade” (SCHOPENHAUER, 2010, p.152). A Vontade é implacável. Após uma satisfação sempre se segue uma nova necessidade, de modo que a Vontade traz consigo luta, dor e dilaceração. Nesse reino do sofrimento, potencializado nos seres humanos por sua capacidade reflexiva, a vida é guerra contínua e sem repouso, com a única certeza que o fim é a derrota. Quando o desejo não retorna imediatamente após a saciedade, segue-se tristeza e a experiência do vazio existencial. Por isso Schopenhauer concebe a existência humana como um pêndulo que oscila entre a dor e o tédio.

Para Schopenhauer e seu ateísmo, a natureza é indiferente à vida ou à morte dos seres humanos, não há uma decisão divina, uma boa vontade ou qualquer elemento de interferência transcendente, o que levou Nietzsche a afirmar: “Schopenhauer foi, como filósofo, o primeiro ateísta confesso e inabalável que nós, alemães, tivemos” (NIETZSCHE, 2001, p. 255, grifos do autor). Mas sabemos que Schopenhauer, platônico e kantiano, concebia a vontade como essência do mundo e mesmo que negasse uma vontade divina atuando no mundo, ele não concebia a vontade sem uma significação moral, se levarmos em conta a afirmação seguinte: “que o mundo possui apenas uma significação física, e nenhuma moral, constitui o maior, o mais condenável, e o mais fundamental erro, a própria perversidade da mentalidade” (SCHOPENHAUER, 1974, p. 94).

Nietzsche considera que Anaximandro antecipa Schopenhauer na busca de um sentido moral para o cosmos, ao tomar “todo o devir como uma emancipação criminosa do ser eterno, como uma iniquidade que tem que ser expiada com a ruína”(NIETZSCHE, 1995, p.34). O fato de que todas as “propriedades definidas” da natureza tendem a se esvair, permite a inferência de que “tudo que uma vez entrou no devir torna a perecer” (NIETZSCHE, 1995, p.34). Por isso Nietzsche afirma categoricamente que Anaximandro “foi o primeiro entre os gregos a captar com ousadia o núcleo do mais profundo problema moral” (NIETZSCHE, 1995, p.35).

Para Nietzsche, o ápeiron foi um esconderijo metafísico para que Anaximandro se afastasse do devir e pudesse julgá-lo como injusto. Pois a busca da justiça cósmica seria percebida precisamente no esforço do universo em trazer as coisas para um estado pré-individual. Assim se consolida a aproximação com Schopenhauer, para quem os seres humanos se constituem da forma individualizada pela Vontade, no esforço egoísta de autossatisfação que não pode escapar ao sofrimento inerente aos processos existenciais, seja pela não satisfação do desejo (frustração), seja pelo que se segue do sucesso em alcançar o objetivo (o tédio).

 

Considerações finais: apontamentos para uma continuação

 

A filosofia de Anaximandro é seminal para a visão elaborada por Nietzsche da história da ontologia. Sua teoria do ápeiron insere na história do pensamento dogmático um dualismo metafísico, que estabelece a separação entre um mundo sem descrição possível (a não ser por negação) eo mundo conhecido pelo vir-a-ser. O devir é produzido pela interação entre opostos. É o modo pelo qual Anaximandro tentou explicar a passagem do arkhé, postulado por Tales, para a multiplicidade dos fenômenos, perceptível no cosmos. Na tentativa de resolver as contradições do devir, Anaximandro introduz uma explicação moral para a totalidade da existência, na medida em que identifica o devir à injustiça.

É válido notar que em sua leitura de Anaximandro já é possível vislumbrar aspectos da crítica nietzschiana a Schopenhauer. Apesar de que o rompimento teórico declarado tenha sido realizado a partir de Humano, demasiado humano, já é perceptível nesses textos iniciais, ainda que de maneira oblíqua, a discordância com Schopenhauer em relação a apreciação da existência. Em o Nascimento da tragédia é possível detectar a apreciação positiva de Nietzsche das estratégias gregas de afirmação da vida, em fortalecer o impulso “que seduz a continuar vivendo”e inverter a sabedoria pessimista, fazendo com que a morte seja a “pior de todas as coisas” (NIETZSCHE, 1992, p.37), ou seja, busca pensar a arte como um estimulante e não como como um apaziguador (como pretendia Schopenhauer).

Em A filosofia na idade trágica dos gregos, vemos Nietzsche conceber Anaximandro como um predecessor de Schopenhauer,na exposição de uma teoria que vê a existência como erro e o cosmos como possuidor de um ordenamento moral. Por mais que as críticas ao cristianismo (e a ordem moral do mundo), bem como as ideias mais afirmativas em relação a vida (eterno retorno, vontade de potência) e a problematização em torno da ideia de julgamento da vida ganhem maior desenvolvimento em sua filosofia madura, não é possível conceber que Nietzsche concordava, mesmo em sua juventude, com a Weltschaungschopenhauriana, sobretudo no problema do sentido da existência.Além do mais, logo após expor sua leitura de Anaximandro, percebemos o entusiasmo de Nietzsche ao expor o pré-socrático a quem ele declaradamente mais se alinha: Heráclito de Éfeso – mas deixemos para outra ocasião o desenvolvimento de uma contraposição de Nietzsche a Schopenhauer por meio da contraposição entre Heráclito e Anaximandro, tal como elaborada por Nietzsche.

 

Referências

 

ARISTOTELES. Física. Madrid: Gredos, 1995.

 

HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. São Paulo: É Realizações, 2014.

 

NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Rio de Janeiro: Elfos; Lisboa: Ed.70, 1995.

 

______. A gaia ciência.São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

 

______. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 

REALE, Giovanni. História da filosofia: filosofia pagã antiga. São Paulo: Paulus, 2005.

 

ROVELLI, Carlo. Anaximandro de Mileto ou o nascimento do pensamento científico. Lisboa: Edições 70, 2021.

 

SCHOPENHAUER, Arthur. Da afirmação da vontade de vida – suplemento 45 a O mundo como vontade e como representação. Revista Voluntas: estudos sobre Schopenhauer, 2010, vol. 1, n. 2, p.150-154.

 

______. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Unesp, 2005.

 

______. Parerga e paralipomena. São Paulo: Abril Cultural, 1974.