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ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A BARBÁRIE

Gledinélio Silva Santos

Doutorando em Educação - UFSCAR

Há pouco tempo escrevi uma dedicatória numa das folhas de um livro presenteado a um amigo que até hoje permanece latente em minha mente. Entre outras palavras, disse-lhe que a linguagem é a nossa primeira e maior conquista. Que por intermédio dela chegamos até aqui e no meio do caminho inventamos a Arte. Por fim, desejei-lhe uma ótima experiência literária e que toda violência e horror que não couber nessa vida tenha seu lugar reservado tão somente nas representações artísticas.

A pergunta que fiz a mim mesmo naquela ocasião e até hoje refaço, tenta compreender: por que tais palavras me inquietaram tanto?

Sabemos que as obras de artes imitam a vida em seus mais variados aspectos. Assim como, às vezes, a própria vida imita a Arte, por mais absurdo que nos pareça. Haverá limite nessa relação? Quais lições uma tem a nos ensinar sobre a outra? A resposta à primeira questão pode ser negativa se olharmos atentamente e sem ressalvas para tudo aquilo que a humanidade fez ao longo da sua trajetória. E ao que tudo indica, não aprendemos o suficiente para refrear o perpetuum mobile de inúmeras atrocidades, menos ainda para impedir que a catástrofe anunciada no horizonte do futuro que nos espera realmente aconteça.

É espantoso perceber, assim como o filósofo Theodor Adorno observou em seu tempo, que mesmo “estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização” (ADORNO, 2022, p. 169). Não importa a região do país, o gênero das pessoas, a raça, a classe social, a fé que elas expressam, a escolaridade ou até mesmo a faixa etária, para onde quer que olhemos, o ódio tornou-se a tônica dos discursos e das ações humanas. Como se todos estivessem tomados “por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir” (ADORNO, 2022, p. 169).

Ao menos para o mero observador que assina este texto, um dos casos mais sintomáticos dessa anticivilização ocorreu durante as eleições presidenciais deste ano, quando alguns alunos de uma escola de alto padrão no Rio Grande do Sul proferiram discurso de ódio contra pobres, pretos e nordestinos numa live em uma rede social. Os críticos mais apressados não pensaram duas vezes em apontar a luta de classes como o fator determinante neste caso. Enquanto outros preferiram alegar que a questão é muito mais profunda e complexa. Trata-se, em última instância, do resultado de uma crise que nos afeta naquilo que há de essencial na condição humana, ou seja: nossa capacidade de nos reconhecermos no outro e de nos relacionarmos com ele. Mesmo agora, enquanto escrevo esse texto, essa crise aprofunda-se ainda mais ante as notícias de mais uma tragédia dentro de um colégio no Espírito Santo, que, infelizmente, tende a continuar se repetindo em nossa sociedade e em várias outras espalhadas pelo mundo em decorrência do estado de barbárie que vivemos.

Não há como utilizar outro tom e mensurar as palavras diante de casos estarrecedores como estes. Muito menos se abster da crítica e de encarar o problema. Principalmente quando eles acontecem dentro de uma escola, independentemente do seu padrão e do seu endereço. Pois esperamos que o ambiente escolar seja contrário a todo tipo de barbárie — subtendendo-a como a condição daquilo que é selvagem, cruel, grosseiro e desumano. Decerto que, em termos formais, a violência discursiva anteriormente mencionada acorrera e manteve-se restrita a um espaço virtual (uma terra sem lei?) onde, infelizmente, aprendemos a não esperar outra coisa senão atitudes como essa. Mas outro agravante ao qual nos falta escapatória diz respeito àquela velha linha tênue entre o real e o seu oposto, que, como bem sabemos, já não existe ou deixou de ser uma barreira há tempos.

Como qualquer outra ferramenta, não há nenhum mal nas tecnologias, essencialmente falando. Pelo contrário. Tudo depende do modo como as utilizamos e quais as nossas intenções.

Não resta dúvidas que a ciência está na vanguarda de muitas inovações que melhoram a vida, que os algoritmos são uma parte integral e cada vez mais abrangente de nossa existência no mundo moderno. A telemedicina, a educação à distância, as operações financeiras, o controle do tráfego aéreo e do trânsito nas zonas urbanas, a preservação das florestas e do meio ambiente como um todo, o combate aos crimes cibernéticos, a segurança pública e os demais variados serviços prestados à população tornam impensável a ausência dos recursos tecnológicos no ordenamento da vida contemporânea. A própria Antropologia Filosófica nos ensina que todo homem é o artífice (artista/arquiteto) de seu destino. E que foi graças à capacidade humana de desenvolver técnicas, ferramentas, o raciocínio lógico e os jogos, que nossos parentes neandertais se sobressaíram perante as demais espécies e as adversidades que encontraram em sua jornada.

Mais do que facilitar as nossas atividades diárias — como ferramentas de trabalho, entretenimento ou informação —, a internet também deu vozes a muitos que, antes dela, jamais encontrariam espaço para serem ouvidas. Tornando-se ainda numa extensão da vida social por meio das redes, como outro espaço de convívio e, porque não dizer, como espaço de existência. Há que se reconhecer nesse processo uma espécie de reparação social ou de inserção dos sujeitos invisibilizados em diversas pautas anteriormente dominadas por uma sociedade excludente. Todavia, é igualmente salutar reconhecer que, se de um lado isso tornou a proliferação dos discursos e a liberdade de expressão mais democráticas, por outro, permitiu a saída do esgoto daquilo que há de mais abjeto e opressor na sociedade.

Evidentemente que a base dos discursos no seio da sociedade se encontra fundamentada na desinformação, nas inverdades que circulam pelas redes sociais; gerando divergências que, no limite, resultam em agressões verbais e físicas. É inegável a naturalidade da divergência de ideias no jogo político, desde que se respeite as leis e a integridade do outro. Entretanto, tais divergências ultrapassaram o limite da civilidade, colocando-nos diante de verdadeiras barbáries noticiadas diariamente pela imprensa nacional e internacional. Vidas ceifadas por um maniqueísmo que não se restringe à questão política, uma vez que revela a xenofobia, a homofobia, a violência contra mulheres e o racismo outrora veladas.

Agora, em decorrência da velocidade sempre mais acelerada como tudo acontece, é cada vez mais urgente a reconfiguração dos espaços virtuais se quisermos que, assim como o físico, ele seja um lugar de respeito ao próximo, onde a troca de afetos seja aprazível para todos e que o diálogo e o entendimento se sobressaiam perante as divergências. Nesse processo de reconfiguração, um projeto contra hegemônico requer não apenas o acesso livre ao conhecimento que possibilite a exploração das tecnologias de modo mais amplo e coletivo, requer também e acima de tudo uma reconfiguração dos nossos sentimentos, dos nossos pensamentos e das nossas ações. Em síntese, é imprescindível reconfigurarmos a nossa própria humanidade. O que implica pensar numa educação que habilite os sujeitos a saírem da condição de meros receptores e reprodutores, para a condição de agentes ativos e transformadores. Pois:

Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isso. Mas se a barbárie, a terrível sombra sobre a nossa existência, é justamente o contrário da formação cultural, então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito importante. A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência (ADORNO, 2022, p. 126).

Ora, se nós nem somos “meros espectadores da história do mundo transitando mais ou menos imunes em seu âmbito, e nem a própria história do mundo, cujo ritmo frequentemente assemelha-se ao catastrófico, parece possibilitar aos seus sujeitos o tempo necessário para que tudo melhore por si mesmo” (ADORNO, 2022, p. 48), cabe então unicamente a nós mesmos, como agentes ativos e transformadores, buscarmos o quanto antes alternativas que ponham em prática a desbarbarização e se contraponham ao colapso definitivo da civilização. Pois “se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, excetuando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito” (ADORNO, 2022, p. 145).

Esse apelo para que Auschwitz, um dos episódios mais brutais e desumanos da nossa recente história, jamais se repita é também um apelo a reconfiguração humana anteriormente mencionada. Neste sentido, a curiosidade epistemológica apontada pelo educador Paulo Freire é uma ferramenta mais que necessária para nos tornarmos seres capazes de indagar sobre o nosso cotidiano, nossas atividades, sobre nós mesmos e sobre o futuro. É por meio dessa curiosidade que realizamos uma reflexão crítica sobre a nossa existência e passamos a distinguir as coisas, conforme salientou Heidegger, e assim saímos do estado de possessão daquilo que nos oprime, e nos tornarmos existentes em sentido verdadeiro. Ou seja, passamos a existir, em vez de meramente viver, onde a realidade é apenas o refúgio para uma fuga em relação ao que verdadeiramente somos.

Mas a reflexão não é uma mera atividade do cérebro, como bem nos lembra Theodor Adorno:

Aquilo que caracteriza propriamente a consciência é o pensar em relação à realidade, ao conteúdo – a relação entre as formas e estruturas de pensamento do sujeito e aquilo que este não é. Este sentido mais profundo de consciência ou faculdade de pensar não é apenas o desenvolvimento lógico formal, mas ele corresponde literalmente à capacidade de fazer experiências (ADORNO, 2022, p. 164).

Aqui, talvez, seja oportuno explorarmos quais tipos de experiências deveríamos ter para enfrentarmos as questões expostas no presente texto. Ou ainda, buscarmos entender de que forma podemos exercer a liberdade de expressão, quer seja nas redes sociais ou nas demais atividades praticadas fora dela (em nossa vida offline!), sem incorrermos ao risco de fomentar a opressão ou mesmo de praticá-la. Para tanto, é preciso termos em mente que “a experiência é um processo autorreflexivo”, como sublinha o filósofo Wolfgang Leo Maar, “em que a relação com o objeto forma a mediação pela qual se forma o sujeito em sua ‘objetividade’” (2022, p. 25). Em outras palavras, a experiência é o processo pelo qual nos relacionamos não apenas com tudo aquilo que está ao nosso redor (sejam as obras de artes, os objetos domésticos, os mares, as montanhas, as árvores ou demais elementos da natureza), como também se estende a uma relação mais íntima do nosso eu consigo mesmo de forma prática e objetiva.

Vale ainda dizer que “o sujeito nunca existe antes como ‘sujeito’, para então, caso subsistam objetos, também transcender; mas ser-sujeito quer dizer: ser um ente na e com transcendência” (HEIDEGGER, 2008, p. 149), longe de se restringir numa condição conceitual em oposição à sua efetiva constituição em constante movimento. Nessa relação posta sobre a experiência, a autorreflexão, a constituição do sujeito, a transcendência e a existência, “a reflexão pode servir tanto à dominação cega como ao seu oposto”, conforme observa Adorno, por isso as reflexões precisam “ser transparentes em sua finalidade humana” (2022, p. 175). É com essa finalidade em mente, como primeiro e último objetivo a ser alcançado, que todo o nosso saber, sentir, pensar e agir devem ser direcionados.

Se todas as ciências que foram conduzidas pela poesia até a sua perfeição, voltarão a desaguar no oceano feito as águas de um rio, e quando isso acontecer, não haverá mais separação entre poesia, ciências e filosofia, conforme Márcio Suzuki parafraseia Schelling (SUZUKI, M. 2001, p. 12), em um comentário da Filosofia da Arte, acredito que essas áreas de conhecimento podem assumir um papel de suma importância nas experiências tanto nas salas de aula e nos demais ambientes escolares quanto fora dos muros das escolas. Pois, se quisermos uma transformação na sociedade como um todo, é preciso incluir os inúmeros sujeitos que a compõem. E digo isso mesmo ciente de que essas áreas não estão inseridas em toda sua plenitude no cotidiano das pessoas, sobretudo a Filosofia. Afinal, o que pensa a maioria sobre Filosofia, Arte, Tecnologia e Ciência?

Certamente muitos dirão que a saúde é o nosso bem mais precioso, que o trabalho e o lazer dependem tanto dos equipamentos eletrônicos que é impensável sair de casa sem o celular/smartphone, e que as pessoas nunca consumiram tanta música, filmes e séries quanto consomem hodierno graças à Internet e os serviços de streaming.

Contudo, a relação estabelecida por esses bens imateriais deve ir além do que imaginamos ser capaz. Ela também não deve se restringir a uma forma fugir do aborrecimento e da reflexão, como exortaria Schopenhauer, e nos livramos “do lastro da existência, torná-la não sensível, ‘matar o tempo’, isto é, escapar ao tédio” (2005, p. 403). Mais do que um papel anestésico da vida ou fonte de prazer, as obras de artes e a experiência estética têm a potencialidade de nos provocar, tirar da zona de conforto, estimular inquietações e nos fazer questionar de forma crítica sobre tudo aquilo que nos cerca. Não nos esquecendo, é claro, na possibilidade de promover o encontro do sujeito consigo mesmo e por meio daquela união entre poesia, ciências e filosofia, desaguar na interioridade humana.

 

Referências

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2022.

HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.

LEO MAAR, Wolfgang. A guisa de introdução: Adorno e a experiência formativa. In: ADORNO, T. W. Educação e emancipação. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2022, 11-29.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação – Tomo I. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.

SUZUKI, Márcio. Filosofia da arte ou arte da filosofia? In: SCHELLING, E. W. J. Filosofia da arte. São Paulo: Edusp, 2001, 9-15.