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Hart e a justificação da punição:
Retribuição como distribuição

Alexandre  Ayub Dargél
Mestre em Ciências Criminais - PUCRS
Doutorando em Filosofia - UNISINOS

Dentre os problemas da punição, um dos mais discutidos é a retribuição, motivo pelo qual discutiremos especificamente este tema.
Nesse intento, tomar-se-á como base, além de Hart, Boonin, com o seu livro The Problem of Punishment, em virtude da forma contemporânea como este trata o tema.


1. De início, é preciso esclarecer alguns conceitos que conduzirão a análise, sendo primordial o estudo do conceito de punição.
Em primeiro lugar, a punição deve ser um dano, pois a punição deve representar algo ruim para a pessoa punida, resultando, pois, no requisito do dano (harmrequirement) para iniciar a formação do conceito de punição, uma vez que o autor reconhece que apenas o requisito do dano não é suficiente para caracterizar a punição (Boonin, 2008).
Surge, então, a figura da intencionalidade, já que para haver punição deve ser infligido um dano intencional ao punido, pois o Estado, ao punir, deseja infligir o mal ao cidadão que será punido, com o objetivo de prejudicá-lo (intendingharmrequirement)(Boonin, 2008).
Na mesma linha, para que seja punição, além de haver um ato intencional maléfico, esse ato é praticado contra o ofensor em razão de ele ter agido de forma errônea, ou, mais especificamente, ter praticado um ato proibido (retributiverequirement) (Boonin, 2008). Ora, não se pode admitir que a punição seja aplicada sem que o punido tenha anteriormente atentado contra a lei, o que sustenta essa característica retributiva da punição, uma vez que é aplicada contra o ofensor, de forma que ele e a sociedade entendam o motivo de o Estado ter infligido aquele mal.Importante alertar: a retribuição de que se trata é uma característica da punição e não aquela que representa uma justificação da punição, a qual será tratada adiante no retributivismo. Esse alerta é feito por Hart (2008), quando trata da retribuição nos princípios da punição:
Here I shall merely insist that it is one thing to use the word Retribution at this point in an account of the principle of punishment in order to designate the General Justifying Aim of the system, and quite another to use it to secure that to the question 'To whom may punishment be applied?' (the question of Distribution), the answer given is 'Only to an offender for anoffence'.

Ainda no sentido de esclarecer o conceito de punição, Boonin (2008) acrescenta o requisito da reprovação (reprobativerequirement), pois a punição deve representar um ato de desaprovação da conduta praticada pelo ofensor. Não se pode punir alguém sem que esteja conjugada uma consequência de reprovação, uma demonstração de que o ato praticado foi errado, contrário às regras da sociedade.
Seguindo nessa linha, o autor apresenta a última característica da punição, como sendo a autorização para aplicar a punição (authorizationrequirement), no sentido de que, para a aplicação de uma punição legal, como um mal intencionalmente praticado, com o objetivo de retribuir e reprovar a ação do ofensor, a pessoa que pune deve ter uma autorização para punir, deve ser oficialmente competente para tanto. Dessa forma, a punição deve ser um ato autorizado pelo Estado para que algumas pessoas (autoridades) possam aplicá-la aos demais cidadãos (Boonin, 2008).
A partir da compreensão do que é a punição legal, com o objetivo de situar a presente análise, é preciso identificar qual é o problema da punição.
2. O problema da punição:
O problema está contido, (i) no fato de que a punição envolve separar a população em dois grupos e tratá-los de forma diferente e isso só é admissível se houver uma diferença moralmente relevante entre esses grupos; (ii) a punição implica não somente tratar de forma diferente os dois grupos, mas causar mal aos membros de um dos grupos e, por isso, em virtude de que um ato causará dano a alguém tal fato é moralmente relevante; (iii)o mal causado pela punição é intencional. Dessa forma, o problema não é somente justificar o mal causado a um dos grupos, mas sim o fato deste dano ser intencional (Boonin, 2008).
O ponto, então, é explicar como é moralmente permissível que o Estado trate dessa forma os grupos, com tamanha diferença de tratamento (Boonin, 2008).
Nesse contexto, analisar-se-ão as duas principais explicações para o problema da punição, as quais não esgotam a discussão, mas localizam o centro do debate: o retributivismo e o consequencialismo.
A resposta retributivista se baseia na visão de que, mesmo cometido o crime no passado, justifica-se sua punição, para retribuir o mal causado com o mal da pena (Boonin, 2008). Nesse sentido, a retribuição estaria associada à uma espécie de substituição da vingança privada pela punição legal, uma vez que teria como objetivo principal infligir um mal (pena) a quem praticou uma conduta que prejudicou um terceiro (crime).
Nesse caminho, Kant (2013)explica:
A pena judicial (poenaforensis), que se diferencia da natural (poenanaturalis) porque nesta última o vício castiga a si mesmo e o legislador de modo algum a leva em consideração, nunca pode servir meramente como meio para fomentar outro bem, seja para o próprio delinquente, seja para a sociedade civil, mas sim tem de ser infligida contra ele apenas porque ele cometeu o crime. Pois o homem nunca pode ser manipulado como mero meio para os propósitos de um outro [...].
Sendo assim, se vê que nesta posição dura do retributivismo, deve-se apenas retribuir o mal causado, por meio da pena. Não há outro objetivo que possa ser atribuído à punição que não a retribuição, uma vez que o ser humano é um fim em si mesmo e não pode ser utilizado como meio para a obtenção de qualquer benefício, mesmo que seja um benefício para a sociedade. Caso a punição tivesse como objetivo produzir um bem para a sociedade, a dissuasão dos cidadãos, isso não seria moralmente aceitável. Há, ainda segundo Boonin (2008), outras formas mais brandas de retributivismo, derivadas de uma teoria geral dos direitos ou da equidade.
No que concerne ao consequencialismo, com base na teoria utilitarista, sustenta-se que a punição é moralmente aceitável, em virtude de suas boas consequências futuras. Essa visão estrita do consequencialismo - baseada no fato de que para ser moralmente aceitável, uma prática deve trazer benefícios - tem sedimento na teoria da pena criminal, em uma reação iluminista ao retributivismo, expressada na obra de Beccaria (2002) que passou a identificar o objetivo da punição não mais com o castigo pelo que foi feito, mas que a certeza da punição seria a razão pela qual se deixaria de optar pela prática delitiva.
3. A posição de Hart:
Hart (2008) argumenta que a discussão a respeito da punição se apresenta muito confusa e aponta como causa dessa confusão dois elementos que são partes fundamentais das teorias da punição que tradicionalmente se opõe. Nesse ponto, o autor critica a confiança de Bentham, a partir da teoria utilitarista, de que a ameaça da punição é um elemento dissuasor da prática de crimes, pois considera exagerado supor que o agressor calcule o custo-benefício dos seus atos. Na mesma linha, identifica que a base do retributivismo também é duvidosa, uma vez que não se pode afirmar que é certo que aquele que descumpre a lei, poderia tê-la observado.
Essa crítica está dirigida no sentido de que a discussão está posta entre juízes e legisladores, na qual apenas se busca um fundamento como válido para a punição, sem se questionar o que torna moralmente aceitável a punição. É sabido que não podemos descartar a experiência e as opiniões daqueles que participam da instituição e da aplicação da punição, contudo, não se pode fundamentar a moralidade dessa prática a partir, apenas, de conceitos fechados no âmbito da retribuição ou da dissuasão.
Nesse ponto, Hart (2008) indica que deveríamos nos preocupar em responder questões como: o que justifica a prática geral da punição? Para quem a punição deve ser aplicada? Quão severamente devemos punir?
Sendo assim, inicia-se a indagação do porquê de algumas atitudes serem proibidas e classificadas como crimes. Ora, apesar das teorias tradicionais de justificação não abordarem este tópico, Hart (2008) sustenta que essas atitudes são proibidas pela lei e classificadas como crimes para que a sociedade saiba que não deve agir daquela forma e para garantir que poucos pratiquem aqueles atos.
O autor separa como objetivo geral de justificação (consequências sociais) e distribuição-retribuição, nesse ponto se pode identificar uma posição compatibilista entre o consequencialismo e o retributivismo, contudo, não se pode confundir a separação que Hart (2008) apresenta entre justificação da punição, como a redução de futuras ações erradas sendo um benefício provisório que justifica a punição, sem olvidar que o sofrimento do punido é sempre um custo e nunca um benefício do sistema criminal de justiça. Dessa forma, a punição é instrumental, pois baseada nas boas consequências futuras que advirão dela.
Assim se identifica a visão de Hart (2008)na justificação da punição como um olhar para o futuro (forward-looking), pois não se fundamenta no crime praticado e na punição como retribuição (backward-looking), mas sim nos benefícios futuros que aquele ato poderá trazer para a sociedade.
Nesse ponto, o sofrimento infligido com a punição é como um instrumento para atingir benefícios sociais, mas sem deixar de ser um mal, diferentemente dos retributivistas que aceitam ser o sofrimento o objetivo da pena.
Não se pode deixar de registrar que o mal causado pela punição não pode ser justificado por si mesmo, uma vez que é moralmente errado praticar o mal e o objetivo do Estado é melhorar a vida das pessoas, portanto, não estaria autorizado a fazer intencionalmente o mal, motivo pelo qual só se poderia admitir o mal como um instrumento para atingir o bem de toda a sociedade.
Assim, Hart (2008) aponta para o equívoco que os antigos retribucionistas e a maioria dos céticos modernos considerando que só tem fundamento o princípio da punição aplicada a um ofensor por uma ofensa, se o objetivo geral de justificação da prática da punição seja o retributivismo.Essa confusão fica clara quando o autor separa o objetivo geral da punição, das regras de distribuição da punição, motivo pelo qual se pode aceitar que a punição só pode ser aplicada ao ofensor, por uma ofensa, sem aceitar o retributivismo como fundamento da punição, mas sim o consequencialismo.
Essa discussão serve de base, também, para responder à objeção da punição dos inocentes feita pelos retributivistas, uma vez que alegam que o fundamento da punição é um bem futuro, no sentido de que se o mal causado pela punição gerará boas consequências futuras, se admitiria a punição de um inocente, pois, da mesma forma, ao se punir alguém, culpado ou não, se atingiriam as boas consequências futuras. Nesse passo, a resposta para esta objeção está na separação entre fundamento da punição e regras de distribuição da punição, pois mesmo que o fundamento seja consequencialista, com base nas regras de distribuição da punição, somente o ofensor poderá ser punido pela ofensa praticada, não um inocente.
Com o objetivo de esclarecer o que moralmente está em jogo na distribuição da punição, Hart (2008) analisa três aspectos da punição: a justificação, a escusa e a mitigação.
A justificação se apresenta nos casos em que, apesar de praticar um ato proibido, o sistema legal aceita como justificável tal ação, como é o caso do agente que mata uma pessoa. De acordo com a legislação esse fato acarreta a responsabilização pelo delito de homicídio, contudo, caso a morte tenha sido ocasionada como único recurso para proteger a própria vida do agressor, essa ação está justificada pela legítima defesa (Hart, 2008).
No mesmo rumo, a escusa se verifica quando a ação não foi intencional, por exemplo, a coação moral irresistível.
Com relação à mitigação, aqui temos uma influência clara do utilitarismo, pois é preciso fixar a pena de forma compatível com o dano causado, bem como considerando o estado mental do agressor. Algumas formas de mitigação têm como base a redução legal de penas em determinados delitos, como o infanticídio ou o homicídio privilegiado em razão de se ter agido com base em relevante valor moral ou social. Dessa forma, deve haver a mitigação da punição levando-se em consideração o estado mental do agente (Hart, 2008).
A partir da análise dessas formas de evitar ou reduzir a punição, bem como da limitação da punição às ofensas cometidas voluntariamente, Hart (2008) chega a um ponto central da definição do papel da punição na sociedade, que é um método de controle social que maximiza a liberdade individual, pois apesar de prever ações não desejadas pela sociedade, permite ao cidadão a escolha entre cumprir a lei ou infringi-la e sofrer a penalidade prevista. Da mesma forma, esse sistema aumenta o poder dos indivíduos de identificarem os comportamentos para os quais a lei não reserva qualquer tratamento, aumentando, assim, a sua liberdade.
Por fim, Hart (2008) analisa o objetivo da punição como “reforma”, ou seja, a punição como mola propulsora da mudança da pessoa do punido. Nesse ponto, o autor refuta esse modelo, pois se o objetivo da lei for o de melhorar o assassino, ao invés de evitar a prática do homicídio, tendo como primeira objeção o fato da punição causar um mal e a reforma do criminoso não e, mais ainda, porque a reforma só será possível quando o objetivo geral da punição não for alcançado, com a prevenção do crime.
Ainda assim, esse tipo de iniciativa para justificar a punição tem lugar em sociedades nas quais não mais se acredita no valor da punição como dissuasão e como garantia da diminuição do número de delitos.

Referências bibliográficas
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Marcílio Teixeira. Rio de Janeiro:Editora Rio, 2002.
BOONIN, David. 2008.The Problem of Punishment.New York, Cambridge University Press.
BRASIL. Código Penal, Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
HART, H. L. A. 2008.Punishment and responsibility, 2º ed., New York,Oxford University Press Inc., 315 p.
KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes, Petrópolis, RJ: Vozes ; Bragança Paulista, SP : Editora Universitária São Francisco, 2013. – (Coleção Pensamento Humano).
Autor: Alexandre Ayub Dargél. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS, Doutorando em Filosofia na UNISINOS e professor da Faculdade de Direito da UNISINOS.