FUNDAMENTOS COSMOGENÉTICOS DO INVENTÁRIO CATEGORIAL DE CHARLES SANDERS PEIRCE
Caíque Marra de Melo - Mestrando em Filosofia PUCSP
Cabe à metafísica, em se tratando de uma abordagem referente aos fundamentos cosmogenéticos do inventário categorial de Charles Sanders Peirce, retroceder a um estado anterior ao próprio universo, para só assim procurar a formulação de uma cosmogênese condizente a uma condição de possibilidade plausível ao inventário categorial e a todas as possibilidades engendradas no recorte espaço-temporal.
Assim, a fim de esmiuçarmos tal percurso genético, pressupondo noções repetidamente pressupostas no pensamento peirceano – como Sinequismo, Idealismo Objetivo e Evolucionismo –, busquemos primeiramente o princípio possibilitante de todo continuum, dado que o primeiro não do universo (ou seja, o primeiro alter) já pressuporia a restrição de um primeiro e que uma ontogênese da lei, resultante categorial último – tendo em vista que a terceiridade pressupõe as outras duas categorias –, já se daria por necessidade lógica pautada numa tessitura de mediações reais.
Charles Sanders Peirce enuncia que o panorama geral do curso da lógica apresenta um processo de determinação do indeterminado, ou seja, do vago para o definido (cf. CP, 6.191). Tal processo se exemplifica fenomenologicamente no fato da primeiridade, sendo mera qualidade de sentimento, não pressupor nenhuma das outras categorias e, no entanto, a segundidade pressupor a primeiridade, de modo a contrapô-la, e a terceiridade, por sua vez, pressupor as duas categorias antecedentes. Do mesmo modo, por exemplo, nota-se que, em se tratando da faceta metafísica das categorias, o Evolucionismo encontra a derivação da lei a partir do acaso, evidenciando a tendência universal à aquisição de hábitos (cf. IBRI, 2015, p. 107).
No entanto, tendo em vista nossa explanação cosmogenética, levanta-se um importante alerta:
O tempo faz, da potência, ato. Mas o tempo, como a condição de possibilidade da passagem do indefinido ao definido, é em si mesmo um continuum e, como tal, requer que certa forma de regularidade o licite como ser. Não há tempo real sem a realidade da Lei: ambos são concomitantes (IBRI, 2015, p. 108).
Assim, torna-se crucial uma verificação genética que se anteponha até mesmo ao tempo, pois, como visto, este já pressupõe o inventário categorial que lhe fundamenta. Afinal,
[...] o tempo é em si mesmo alguma coisa organizada, possuindo sua lei ou regularidade, de tal modo que o próprio tempo é uma parte daquele universo cuja origem estará sendo considerada. Temos, desse modo, que supor um estado de coisas anterior à organização do tempo (CP, 6.214).
Levantadas todas essas questões, o presente momento exige-nos uma determinação: definir a consistência do dito estado inicial compreendido enquanto condição de possibilidade do próprio universo. Tal condição, segundo Peirce, não se encontra nem num puro abstrato e, como se poderia pensar, nem sequer num estado de vazio absoluto, pois ambas as condições pressuporiam alguma coisa. Assim sendo, por conta da cientificidade genética perscrutada por Peirce, devemos partir de um estado absoluto de nada, ou seja, de um estado que nada esteja implicado, puro zero. Deste modo, tal zero puro antecede a todo primeiro (cf. CP, 6.217).
O zero puro, por ser o nada do não-nascido, diferentemente de algo que se opõe a um primeiro, que, por sua vez, implicaria num segundo, é, como nos diz Peirce, infinita possibilidade indefinida e ilimitada, ou seja, possibilidade sem fronteiras (cf. CP, 6.218). Assim, não há nenhuma derivação necessária a partir deste absoluto nada, havendo apenas irrestrição, ausência de lei.
A partir do que fora dito, levando em consideração a lógica da liberdade tão presente no pensamento peirceano, surge um fator relevante ao surgimento da primeira efetividade do universo: toda possibilidade, para não se negar enquanto possibilidade, em algum momento deve, num roupante de liberdade, se autoanular, dando a brecha necessária para o primeiro ato.
Digo que nada “necessariamente” resultou do Nada de liberdade sem limites. Isto é, nada de conformidade com a lógica dedutiva. Mas tal não é a lógica da liberdade ou possibilidade. A lógica da liberdade, ou potencialidade, é aquela que anulará a si mesma. Pois se ela não se autoanular, ela permanece completamente inútil, uma potencialidade do nada-fazer, e uma potencialidade completamente inútil é anulada pela sua completa inutilidade (cf. IBRI, 2015, p. 112).
Deu-se assim a primeira efetividade, ainda que esta não consista em nada além de “alguma qualidade” (CP, 6.220), sendo apenas um produto de uma inferência hipotética enquanto mera possibilidade. Tal qualidade, tendo por base a compreensão fenomenológica da primeiridade, consiste numa talidade (suchness) una, ou seja, que não pressupõe dualidade, sendo meramente consciência imediata (cf. IBRI, 2015, p. 113).
O passo do absoluto nada para uma potencialidade de qualidades significa, apenas, alguma determinação, algum modo do ilimitado se limitar, embora, ainda, destituída de quaisquer traços que façam o próximo passo ser desenhado por alguma forma logicamente necessária (IBRI, 2015, p. 116).
Peirce compreenderá toda qualidade por ser uma consciência, porém, como dirá, não uma consciência desperta, mas meramente uma coisa da natureza desta, como que uma potencialidade de consciência (cf. CP, 6.221). Assim, Peirce chega ao termo quale-consciência, ou seja, chega à noção de consciência-qualidade que será essencial ao engendramento da gênese da idealidade e ao surgimento categorial logicamente fundado.
É posto que toda potencialidade seja da natureza de um continuum, pois nela não se distinguem individuais e, por isso, não se encontra subsumida a uma sequência temporal, sendo mera possibilidade comprometida apenas com uma presentidade (cf. IBRI, 2015, p. 114). Deste modo, tal consciência-qualidade consiste numa unidade.
A quale-consciência parece deter, assim, a unidade de um sentimento, identificando-se com a ideia de qualidade de sentimento; a consciência desse sentimento não se põe como algo distinto da qualidade o caracteriza. [...] Na medida mesma em que esta experiência de unidade é apenas presente, ela não comporta quaisquer relações binárias, seja para com o passado, seja na referência ao futuro. Disso decorre, ainda, a impossibilidade de uma relação de mediação de um terceiro, caracterizando uma conexão entre passado, presente e futuro (IBRI, 2015, p. 117).
Dito isso, Peirce faz questão de ressaltar o fato de uma unidade não consistir apenas em uma pluralidade, ou seja, não ser limitada apenas ao conjunto de individuais, pois estes, como Ibri aponta, não podem perfazer um continuum. Deste modo, compreende-se que a uma autoconsciência não bastaria o conglomerado de um feixe de hábitos, pois a esta compete o estado de centro dos mesmos à medida mesma que é compreendida em sua unidade, sendo, portanto, nela que se promove a própria síntese, e não, pelo contrário, sendo tal consciência o produto de individuais. Por conseguinte, concebe-se que “a unidade sintética precede toda operação lógica” (IBRI, 2015, p. 118).
O cérebro não mostra qualquer célula central. A unidade de consciência não é, assim, de origem fisiológica. Ela pode, unicamente, ser metafísica. Na medida em que os sentimentos têm qualquer continuidade, é da natureza metafísica do sentimento ter uma unidade (CP, 6.228).
Estabelecidos, portanto, o caráter absolutamente presente e a condição de continuum de possibilidades, avessa a qualquer dualidade, presentes nesta unidade primeira, vê-se que tal quale-consciência é inteiramente simples e, por consistir num agora que é um, e apenas um (cf. CP, 6.231), revela-se numa descontinuidade do tempo que pressupõe uma recusa ao necessitarismo, pois “no espaço da presentidade se engendrará o elemento novo não inscrito no passado, que, também, não faz qualquer referência ao futuro” (IBRI, 2015, p. 120). Surge, a partir disso, uma importante ressalva peirceana: “O que é absolutamente simples deve ser absolutamente livre. [...] E, se ela não tem aspectos, nenhuma lei pode dela se apoderar”; deste modo, “o quale-elemento que aparece internamente como unidade, quando visto pelo lado exterior, é visto como variedade” (CP, 6.236). Assim, Peirce acaba por encontrar variedade e unidade da qualidade de sentimento como modos de ser de uma única categoria, a primeiridade.
Onde quer que a espontaneidade do acaso seja encontrada, lá existe sentimento na mesma proporção. De fato, acaso nada é senão o aspecto externo daquilo que internamente em si mesmo é sentimento (CP, 6.265).
Vimos, resumidamente, que a partir do absoluto nada, indefinido e ilimitado, surge um continuum absolutamente livre por justamente ser absolutamente presente e uno. Contudo, a isso se coloca uma questão que parece estar pressuposta no problema da qualidade de sentimento vista como continuum generalizado (em outras palavras, continuum que é unidade de potencialidades): se esta qualidade, absolutamente livre e una, é senão em si e para si mesma, ela, para ser compreendida enquanto continuum, exigiria uma mente que a representasse, pois, como coloca Ibri, “ela não pode estar em seu estado generalizado” – ou seja, em unidade da multiplicidade do possível inerente a tal continuum (cf. IBRI, 2015, p. 124) – “sem a possibilidade de ser sentida” (NEM, p. 135). Além disso, se faz necessário o seguinte adendo:
Se há algum aspecto de dualidade nisto, certamente não é ainda da natureza da segundidade, mas, apenas, da distinção e não separação entre representação como consciência una e um complexo de qualidades que é a própria variedade possível (IBRI, 2015, p. 124).
Mas, levando adiante o fato de que cada complexo de qualidades a constituir a variedade possível seja uma dimensão deste continuum, a inviabilidade de uma representação unitária dessas possíveis dimensões conduz as qualidades que compõem tais complexos a um estado de determinação positiva de si mesmas a partir de brutais reações aleatórias (cf. IBRI, 2015, p. 124).
Colocamo-nos, então, no início do tempo. Qualidades já são possíveis. A existência efetiva se iniciou. Surgem reações acidentais. São estabelecidos diversos contínuos. Uma tendência à generalização é operativa. Não se pode, porém, ainda dizer que alguma coisa exista; muito menos alguma consciência pessoal. As reações acidentais são puramente acidentais, não reguladas em qualquer grau pela lei; constituem o trabalho do acaso cego e brutal (NEM, p. 139).
Assim, a partir destas reações acidentais – meras sequências de brutalidades reativas arbitrárias, próprias, portanto, tanto à primeiridade, pelo acaso, quanto à segundidade, pela reação –, a tendência eidética operativa faz com que se formem contínuos que singularizam a dimensionalidade até então infinita, constituindo, deste modo, a terceiridade, justamente por ocorrer a substanciação de formas de regularidades gerais.
De um continuum de possibilidades infinitas de qualidades destacam-se singularidades que poderão ser amalgamadas em contínuos de dimensionalidade de algum modo definida. Por que se daria tal formação? Não por outro motivo senão pela tendência eidética de aquisição de hábitos; ela substanciará formas de regularidade geral, que constituem a terceiridade (IBRI, 2015, p. 126).
Dito isso, o surgimento do tempo se dará por intermédio da regularidade dos eventos que encontra seu gérmen de substanciação na tendência eidética aqui ressaltada: o universo tende à aquisição de hábitos. Assim, há o rompimento da dualidade cartesiana, pois tanto interioridade quanto exterioridade partilham de uma natureza ideal que comunga do dito processo universal rumo à regularidade. Há, portanto, uma tessitura mental a permear toda a realidade, pois, de acordo com a filosofia peirceana, mente é tudo aquilo capaz de adquirir hábitos; ou seja, o universo todo se encontra composto por idealidades passíveis de afetação tanto pelo acaso quanto pela lei, fazendo com que suas respectivas interações com segundos, em ação e reação, impliquem num feixe cognoscível de hábitos de conduta.
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS
IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noétos. 1ª edição. São Paulo: Ed. Paulus, 2015.
_______. The Continuity of Life: On Peirce’s Objective Idealism. In: Peirce and Biosemiotics: A Guess at the Riddle of Life. Vinicius Romanini; Eliseo Fernándes (Eds.), Springer Dordrecht Heidelberg New York London, 2014.
PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Edited by Charles Hartshorne, Paul Weiss, and Arthur W. Burks. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1931-35 e 1958, 8 vols. (Fazemos referência a esta obra na forma usual: CP indica Collected Papers; o primeiro número indica o volume e o segundo indica o parágrafo.)
_______. The New Elements of Mathematics by Charles S. Peirce. Edited by Carolyn Eisele. The Hague, Mouton Publishers, 1976, vol. 4. (Fazemos referência a esta obra na forma abreviada NEM, seguida pelo número da página correspondente ao quarto volume da edição utilizada.)