cefslogo

O PENSAR ARENDTIANO NO ENSINO DE FILOSOFIA 

Adenaide Amorim Lima

Doutoranda em Filosofia - UFSM

  1. Introdução

Desde o início da educação formal no Brasil, com os jesuítas, até os dias atuais, o ensino de filosofia nunca teve um lugar de destaque no currículo oficial. A nossa história mostra que, mesmo quando esteve presente, o ensino de filosofia foi deturpado e submetido a interesses religiosos, políticos e econômicos. Esse conjunto de fatores prejudicou o desenvolvimento pleno do propósito da filosofia e, consequentemente, recai na formação de estudantes/cidadãos mais conscientes, críticos e reflexivos.

Do decorrer de sua história, com a Lei nº 11.684/2008, a filosofia obteve uma vitória ao torna-se disciplina obrigatória no currículo do Ensino Médio, porém, naquele contexto, a maioria dos professores que lecionavam esta disciplina tinha formação em outras áreas e usavam a filosofia para complementar suas cargas horárias. Um pequeno contingente tinha o certificado de professor de filosofia, obtido, a título de formação complementar, realizado em um ano, na modalidade à distância (EAD). 

Após a aprovação da Lei nº 11.684/2008, houve um aumento significativo de cursos universitários de filosofia, juntamente com incentivos na qualificação destes profissionais como o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e o Programa Residência Pedagógica (PRP), implementados nos cursos de licenciaturas das instituições públicas. 

Atualmente há um significativo número de professores altamente capacitados para ensinar filosofia. O contraditório é que, em 2017 foi aprovada a Lei 13.415, que retira do currículo a obrigatoriedade da disciplina de filosofia e demais ciências humanas. A mesma lei mantém em evidência, com maiores cargas horárias, disciplinas úteis à formação de trabalhadores para o mercado de trabalho. Enquanto sociedade, o que perdemos com as reformulações contidas nesta da lei? É sobre isso que gostaríamos de refletir no presente texto, mas antes precisamos compreender as contribuições do ensino de filosofia no atual contexto, a partir do conceito pensar, elaborado pela filósofa Hannah Arendt.

 

  1. O pensar como bom senso

O pensar, conceito elaborado por Hannah Arendt, aparece de modo mais estruturado no seu livro A vida do espírito. Diferente da vita contemplativa (atividade reservada aos filósofos quando buscam o mundo das coisas elevadas) e do conhecimento (atividade que surge de uma necessidade prática, das descobertas científicas), o pensar é uma capacidade e, ao mesmo tempo, uma atividade cognitiva comum e acessível a todo ser humano. O pensar não precisa ser ensinado, precisa apenas ser estimulado. Por ser um processo dialógico, o pensar busca o consenso entre um eu consigo mesmo para o melhor agir. 

Arendt analisa profundamente os meandros do exercício do pensar motivada por sua preocupação com o divórcio entre o conhecimento técnico/científico e o pensamento na modernidade. Um fato importante ocorreu entre abril e dezembro de 1961: a filósofa acompanhou o julgamento de Eichmann em Jerusalém e suas impressões estão documentadas na obra Eichmann em Jerusalém, publicado em 1963. Ao ouvir o que Eichmann dizia, Arendt formula a hipótese da “banalidade do mal”, como algo sem motivação, mas fruto da irreflexão. Após esse acontecimento, Arendt dar-se conta de como a ausência de reflexão sobre o que estamos fazendo pode nos tornar capazes das piores maldades, tudo isso sem nos darmos conta. Arendt descreve essa absurda descoberta:

O que me deixou aturdida foi que a conspícua superficialidade do agente tornava impossível rastrear o mal incontestável de seus atos, em suas raízes ou em seus motivos, em níveis mais profundos. Os atos eram monstruosos, mas o agente – ao menos aquele que estava em julgamento – era bastante comum, banal, e não demoníaco e monstruoso (ARENDT, 2010, p. 18).   

Ao dar-se conta do “[...] próprio caráter cáustico da atividade do pensar em relação a seus ‘resultados’, se há algo no pensamento capaz de evitar o mal, só pode ser alguma propriedade inerente à própria atividade” (CORREIA, 2002, p. 174). Foi esse descompasso entre pensar – ou sua ausência – e a capacidade de julgar, faculdade comum e acessível a todos, que chamou a atenção de Arendt. 

[...] uma experiência tão comum em nossa vida cotidiana, em que dificilmente temos tempo e muito menos desejo de parar e pensar – que despertou meu interesse. [...]. Será possível que o problema do bem e do mal, o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo do que é errado, esteja conectado com a nossa faculdade de pensar? (ARENDT, 2010, p. 19, grifos da autora).

O pensar é uma atividade que se realiza na transcendência desse mundo de forma espiritual/mental, nessa atividade as distâncias temporais e espaciais são anuladas e quando estamos pensando, alheios ao mundo, há um processo de “dessensorialização” do mundo que é colocado na presença do espírito pela imaginação e pela memória. Tanto a imaginação fictícia, quanto a imaginação reprodutiva necessitam do mundo sensorial e das experiências. A imaginação tem por função recolher essas experiências e organizá-las para dispô-las ao pensamento como objetos de sua reflexão, sempre que necessário. A experiência do pensamento não pode ser compartilhada, contudo, o pensamento pode materializar-se por meio da palavra. Só assim é possível que o mesmo se manifeste no mundo da aparência e que sejam objeto e percurso do ensino de filosofia.

 

  1. Retorno ao modo socrático de ensinar

Eichmann teria relatado que, o que deixou a sua consciência tranquila, em relação à sua ação, foi o fato de ninguém ter o questionado ou ido contra a Solução Final: “[...] nenhuma voz se levantara no mundo exterior para despertar sua consciência” (ARENDT, 2010, p. 143). Para a filósofa, quanto mais ela ouvia o que Eichmann dizia, ficava mais claro que a sua capacidade de falar estava intimamente relacionada à sua incapacidade de pensar.  

Antes deste acontecimento, em suas entrevistas, Arendt sempre se considerou uma pensadora política, rejeitando algumas vezes o título de filósofa, porém, após este episódio, ela retoma com o seu livro A vida do espírito, ao seu primeiro amor, a filosofia. O seu objetivo era o de obter amparos para combater esse mal, fruto da irreflexão. Além do pensar, neste livro ela também trata dos conceitos querer e julgar. Com isso percebemos não só que a filosofia é fundamental em nossa sociedade contemporânea, como também que, há problemas que só cabe a ela se ocupar.

Para Arendt o “[...] pensamento enquanto capacidade humana não é uma prerrogativa de poucos e ao mesmo tempo também que a inabilidade de pensar, o esquivar-se da interação consigo próprio, não é um efeito da burrice, mas uma possibilidade sempre presente para todos” (CORREIA, 2002, p. 179). Ninguém está livre de agir de modo irrefletido, até porque “[...] adesão a códigos de expressão e conduta convencionais e padronizados têm a função socialmente reconhecida de proteger-nos da realidade, ou seja, da exigência de atenção do pensamento” (ARENDT, 2010, p. 19). É humanamente impossível a reflexão todo o tempo.

Arendt ressalta, mesmo que a atividade do pensar seja uma capacidade de todo ser humano, se essa capacidade não for desenvolvida nos manteremos na irreflexão, Em uma sociedade automatizada como a nossa em que carimbar um papel, apertar um botão pode ter efeitos inimagináveis, isso é aterrorizador. Afinal, não conseguimos prevê o alcance e as consequências de uma ação irrefletida. Eichmann nos fez pensar quando disse que ninguém o advertiu sobre o que ele estava fazendo. Implica-nos concluir, então, que é preciso alguém para despertar uma consciência adormecida. Reconhecemos nesse alguém, no atual contexto, o professor de filosofia, por meio do ensino.

Esta pergunta é central: Como a filosofia, através do seu ensino, pode ser sinônimo de despertar/libertar o pensamento? Promover o exercício da reflexão não é uma tarefa única exclusiva da filosofia ou do seu ensino, qualquer pessoa com bom senso possui a potencialidade para refletir sobre as importantes questões do nosso mundo, como também pode despertar e educar àqueles cujas consciências ainda estão alheias ou adormecidas. Mas, a filosofia não pode fugir desta que é a sua responsabilidade primordial, a sua razão de ser. O professor de filosofia, mais que qualquer outro, é chamado a essa responsabilidade. 

O exemplo paradigmático daquele que promove o exercício da reflexão é Sócrates. Arendt reconhece em Sócrates o exemplo do pensador genuíno. Nas características deste pensador, enxergamos as qualidades que o professor de filosofia ou qualquer outra pessoa deve possuir para cultivar em si e despertar no outro o exercício do pensamento.  É importante lembrar: Sócrates não estava preocupado em expor verdades ou definir conceitos. O seu objetivo, através do próprio exercício da reflexão, era levar o seu interlocutor à inquietação.

O método socrático, como sabemos, possui três etapas: 1) o espanto como ponto de partida; 2) a perplexidade ou estranhamento daquilo que nos é dado cotidianamente como verdade; 3) a esterilidade do pensamento que não gera respostas nem verdades. Sócrates exerce a reflexão como um cultivo que não rende frutos, não coloca um produto no mundo e, por essa razão, a perplexidade não se esvai ao final dos diálogos socráticos, ela permanece com o seu interlocutor. Esse desamparo é um dos caminhos possíveis para que o agente que ignorava que era ignorante se conecte e dialogue com o seu eu interior, a sua consciência recém-desperta. A consciência que, conforme Arendt, significa literalmente “conhecer comigo mesmo” é um paradoxo na medida em que há uma diferença na unicidade: “[...] eu não sou apenas para os outros, mas também para mim mesmo; e, nesse último caso, claramente eu não sou apenas um” (ARENDT, 2010, p. 205).

Sócrates faz perguntas que nem mesmo ele sabe as respostas. O exercício da reflexão gira em círculos e não chega a lugar algum. Essa dinâmica não dá à consciência um conforto, um parâmetro para seguir. Uma conclusão tende a aquietar e encerrar a consciência quando a deixa confortável, dando-lhe uma espécie de segurança. A quietude, fruto da segurança das respostas definitivas, desobriga a consciência ao exercício da reflexão contínua, pois faz com que a consciência encerrada em uma resposta tome o pensamento do outro como um guia seguro para as suas ações. O que pode nos levar a obediência cega ou adesão de códigos de condutas totalitárias.  O exemplo de Eichmann – um cidadão obediente e respeitador de leis –, alguém que facilmente aderiu ao código operacional nazista e fez parte dele como um dever, sem se questionar.

 No exercício contínuo do pensar as respostas, mesmo que provisórias, impede uma consciência preguiçosa de ultrapassá-las e questioná-las. É por essa razão que Hannah Arendt identifica em Sócrates um “tipo ideal”, uma figura representativa e um exemplo de pensador não profissional. Nesse sentido, não está em jogo o lugar ocupado por quem pensa – filósofo ou sábio –, mas o próprio exercício que está ao alcance de todos. Claro que Sócrates não é a única referência para o ensino de filosofia, muito embora o seu ofício pode ser tomado como prática do exercício da reflexão.

Não cabe ao professor de filosofia apresentar verdades. Vários métodos de ensinar filosofia enfatizam essa questão. A importância de uma aula filosofante, inquietante pode ser medida mais pelas perguntas do que pelas respostas apresentadas. Sócrates tem uma ideia de filosofia que inclui o outro, que se preocupa e se ocupa do outro: ele não busca somente “[...] pelo direito de examinar as opiniões alheias, [mas] pensar sobre elas e pedir a seus interlocutores que fizessem o mesmo” (ARENDT, 2010, p. 190). Essa dinâmica coloca o pensamento sempre em movimento e nunca como algo estável e acabado. A reflexão destrói as opiniões e as falsas sabedorias porque descortina novos horizontes e novas possibilidades para além do que já é dado. Não é por acaso que Sócrates é o paradigma do pensar para Arendt, daquele que também faz o outro pensar. Consideramos Sócrates é o exemplo máximo para o professor de filosofia e seu ensino. 

 

  1. Ensino de filosofia: tempo/espaço do pensar

Hoje, diferentemente da época socrática, a filosofia se realiza no contexto de uma disciplina, no interior de uma instituição de ensino. O ensino de filosofia atualmente pode ser reconhecido como sendo o tempo/espaço mais democrático que dispomos destinado à reflexão. Educar os jovens para o exercício da reflexão, a partir do ensino de filosofia, não é somente ensinar conteúdos, vai além disso. Despertar a consciência alheia, não é propor um percurso para se chegar a algum lugar e alcançar um determinado resultado. Talvez, por essa razão, as tendências neoliberais da educação questione a utilidade do ensino de filosofia no currículo. O mais importante para o ensino de filosofia é justamente essa inutilidade de que fala Deleuze e Guattari (2010), capaz de libertar o indivíduo da sua automação, da sua ignorância. É a filosofia que nos desperta para o diálogo nós mesmos, para o debate com a nossa consciência e para a ação em consonância com ela. 

Sócrates, apesar de acreditar que a virtude pudesse ser ensinada, nunca demonstrou qual era a essência da virtude. Ele se dizia incapaz para isso. Mas, em relação ao seu interlocutor, realizava algo: destruía a opinião que o seu ouvinte possuía sobre a essência da virtude. Por meio da reflexão com o outro, Sócrates transmitia a sua perplexidade. Por essa razão, somos levados a compreender que o pensar não pode ser ensinado, mas somente uma consciência desperta é capaz de despertar outra. É por isso, mais agora do que nunca, que o papel do professor de filosofia, em seu exercício como sujeito reflexivo e profissional, é fundamental. 

A filosofia e o seu ensino é uma urgência em nossa sociedade contemporânea em crise. Devemos lutar, politicamente, pela “cidadania curricular” da filosofia, dado a sua importância e necessidade. Afinal de contas, quem controla as nossas vidas, em uma sociedade tão excessivamente tecnológica? E se estes agentes forem meros burocratas e obedecedores de ordens? O retorno à reflexão de Arendt é necessário, pois ela lembra que a questão do pensamento é um assunto marginalizado e que a sua importância política e moral só aparece em momentos conturbados. 

É nesses momentos que o pensamento deixa de ser um assunto marginal em questões políticas. Quando todos se deixam levar impensadamente pelo que os outros fazem e por aquilo em que crêem, aqueles que pensam são forçados a aparecer, pois sua recusa a aderir fica patente e torna-se uma espécie de ação. [...] a maiêutica socrática, que trás à tona as implicações das opiniões não examinadas e, portanto, as destrói [...] é política por implicação (ARENDT, 1993, p. 167).

Para Arendt, o pensar tem um efeito libertador para uma faculdade muito importante coletivamente, e que se apresenta na política, a faculdade de julgar. “O pensamento lida com invisíveis, com representações de coisas que estão ausentes; o juízo sempre envolve particulares e coisas que estão à mão. Mas os  dois se interligam de um modo bem semelhante ao que liga uma consciência e a consciência moral [pelo pensamento]” (ARENDT, 2003, p. 167). Ao libertar o julgar, o pensamento e a consciência moral se manifestam no mundo da aparência. Há, portanto, uma reconciliação entre o fazer e o pensar.

Quando refletimos sobre o ensino de filosofia, quando defendemos a sua inserção ou permanência nos currículos escolares, quando defendemos que os responsáveis por esta disciplina seja alguém com formação específica, estamos defendendo o direito de pensar, como uma necessidade humana e também social. Se quisermos uma sociedade em que o pensar supere a burocracia e esteja indissociável da ação, precisamos defender e qualificar a filosofia e o seu ensino nos espaços formais de ensino.

 

  1. Conclusão

Este texto é uma defesa do ensino de filosofia e um convite ao leitor a refletir sobre a importância do lugar desta disciplina no currículo. Conforme procuramos enfatizar, em nossa sociedade contemporânea o ensino da filosofia é necessário e urgente. Onde mais teremos acesso a um espaço e tempo para refletir e debater sobre o que estamos fazendo e as consequências de nossas ações? Quem, além do professor de filosofia, está disposto e tem um dever moral para tal tarefa? 

Uma sociedade automatizada, associada a tecnologias cada vez mais avançadas e a indivíduos burocratas, que não passa pelo crivo da razão as informações que recebem e que tem em si um senso de dever fortemente incutidos, que são cumpridores de ordem sem reflexão, sem bom senso, é a receita para o desastre.

A mesma pensadora que vislumbrou o pior cenário da burocracia como política de estado, através do caso Eichmann, é a mesma que faz um retorno lúcido e esclarecedor sobre a importância do pensar como atividade do espírito, através do retorno à atividade de Sócrates, como exemplo paradigmático. A partir da nossa reflexão com Arendt, o que sugestionamos é: refazer constantemente o caminho do pensar como atividade essencial, iniciando nos espaços formais da filosofia como disciplina do currículo. É uma necessidade e uma forma de atenção ante uma sociedade que cada vez mais se complexifica.

Referências

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

______. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das letras, 2004.

______. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

______. A dignidade da política: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993, p. 91-116.

BRASIL. Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008. Altera o art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio.

______. Lei nº 13.415 de 13 de fevereiro de 2017. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13415.htm. Acesso em:

CORREIA, Adriano. “Sentir-se em casa no mundo”: a vida do espírito (mind) e o domínio dos assuntos humanos no pensamento de Hannah Arendt. Tese (Doutorado) em Filosofia, Universidade Estadual de Campinas, 2002, 247 folhas.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? São Paulo: Editora 34, 2010.