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O cansaço insuperável da dinâmica laboral da vida desvitalizada

Renato Nunes Bittencourt[1]

A experiência do trabalho na trajetória de nossa estruturação civilizacional sempre apresentou qualidades exaustivas. Em sociedades fundamentadas pelo espírito aristocrático-guerreiro somente a vida livre era considerada digna de ser vivida. Toda labuta representava inferioridade social, moral e mesmo espiritual. No antigo mundo grego, a obra de Hesíodo é um ponto fora da curva, ao poetar que “Graças ao trabalho, os homens são ricos em rebanhos e bens; / e pelo trabalho serás muito mais estimado pelos imortais, e pelos mortais, porque eles muito detestam os ociosos. / Trabalho não é vergonha, é o ócio que traz vergonha” (HESÍODO, Trabalhos e Dias, vs. 309-311).

O trabalho se configura como um processo sagrado de conexão entre o ser humano e a natureza divinizada que expressa a potência maravilhosa do numinoso. Hesíodo apresenta, cabe destacar, a dignidade do trabalho livre, operado pelo camponês, pelo artesão, pelo agricultor, pessoas que labutam em conformidade com suas próprias demandas econômicas, ainda que, obviamente, venham a satisfazer regularmente necessidades materiais de outrem com os frutos dos seus valorosos trabalhos.

Para o propósito da nossa argumentação, foquemos em mais uma citação sapiencial de Hesíodo: “Nada deixes para amanhã ou depois de amanhã, / pois o homem negligente no trabalho não enche o celeiro/ nem aquele que o adia; a canseira ajuda o teu trabalho, /mas o homem que adia as coisas sempre luta com a ruína” (HESÍODO, Trabalhos e Dias, vs. 410- 413).Ora, em uma sociedade que enaltece o ócio como a condição indispensável para a dedicação aos afazeres superiores do espírito, toda canseira laboral resultaria no embrutecimento da personalidade. Hesíodo se contrapõe perante tal ideário e faz do reconhecimento moral da canseira um sinal da distinção humana perante a ordenação divina do cosmos. A canseira é resultante do esforço ergonômico exercido pelo trabalhador e o resultado será a prosperidade e o bem-estar existencial. Trata-se assim de uma recompensa pelo empreendimento exercido, abençoado pelos deuses.

Ponto crucial a ser destacado reside no fato de que, não obstante todas as limitações técnicas e materiais do modo de vida do antigo homem grego, a intensidade do processo de trabalho não estava submetida aos princípios tecnocráticos próprios da era moderna e sua incessante busca científica por otimização de tempo e de recursos. No mundo antigo o trabalho do homem livre conectava-se a um calendário que interditava a dedicação contínua ao labor. Já na modernidade desencantada, a rentabilidade financeira se torna dominante e suprime toda consideração pela sacralidade do descanso e da não-intervenção humana na natureza em determinadas circunstâncias. O homem livre que trabalhava e se cansava (mas que se sentia espiritualmente recompensado por seu esforço metabólico) cede lugar ao trabalhador assalariado que apenas formalmente é livre, mas que na prática é submetido ao regime do trabalho contínuo para que se torne viável aos olhos do empregador, e assim não apenas essa massa laboral é não apenas explorada como também imersa na dinâmica socioeconômica do cansaço vital. O modo de produção capitalista, alinhado ao desencantamento técnico da realidade e ao inerente processo de mudança de compreensão dos fenômenos naturais, utiliza-se das ciências empíricas para melhor administrar a força laboral em sua mediação com a estrutura material das coisas. A disciplina, a eficiência, o engajamento, a uniformidade e a supressão da individualidade humana se convertem nas virtudes fundamentais do trabalho massivo da modernidade gloriosa e triunfante em sua busca pelo progresso. Contudo, o desenvolvimento material da sociedade capitalista era inversamente proporcional ao declínio vital do trabalhador, alienado, reificado, espoliado, desprovido das mínimas garantias legais, conquistadas heroicamente através das lutas proletárias contra os detentores dos meios de produção. Para as elites o prazer e o fausto, para as massas laborais, a dor, o cansaço e a pobreza.

A utopia liberal considera que o avanço tecnológico corrigiria as distorções estruturais do modo de produção capitalista. O uso das máquinas potencializaria a operacionalidade humana e diminuiria seus esforços metabólicos. Todavia, a automação produtiva, controlada pelo empresariado que vislumbra ampliação constante das taxas de lucratividade, não se converte em ganho efetivo para os trabalhadores, ameaçados sempre pelo abismo do desemprego. E assim a massa laboral mergulha nas oportunidades mais degradantes que despontam no mercado de trabalho.

Mesmo as pequenas reformas estruturais disponibilizadas pelo modo de produção capitalista para ofertar uma alternativa viável ao avanço do comunismo e sua luta pela emancipação da classe trabalhadora ainda fazem do operário uma figura submetida ao processo mecânico de extenuação, mesmo que porventura obtenha substantivos direitos trabalhistas e ampliação da faixa salarial. O alardeado bem-estar material prometido por esse capitalismo conciliatório apenas atenua os efeitos deletérios do ritmo desgastante do processo produtivo. O cansaço metabólico ocorre, mas é recompensado pelo poder de compra e pelo tempo livre, táticas compensatórias para ludibriar o trabalhador que se anestesia momentaneamente da intensidade desgastante da labuta cotidiana para melhor retornar ao serviço após o prazer do descanso.

O trabalhador, dotado de maior poder de consumo, renuncia à revolução em favor de uma carreira razoável estável que lhe garante conquistas materiais básicas. Tudo isso até segunda ordem. Com efeito, o pacto providencial é rompido pela conjugação entre uma agressiva agenda ultraliberal, o autoritarismo político financiado por setores empresariais que não aceitam mais o grande acordo trabalhista e a inoculação das tecnologias de informação no cotidiano laboral. Antes o controle da produtividade era visual; já na era do capitalismo cibernético exerce-se um domínio totalitário sobre a subjetividade do trabalhador, não apenas em seu ambiente profissional, mas mesmo em sua vida privada: “A falta de distância leva a que o privado e o público se misturem. A comunicação digital fornece essa exposição pornográfica da intimidade e da esfera privada” (HAN, 2018, p. 13).

O imperativo de controle empresarial visa se apropriar de cada instante disponível do trabalhador, denominado eufemisticamente como “colaborador” pela retórica motivacional ultraliberal para melhor subjugar essa mão-de-obra. A confusão entre a dimensão profissional e a dimensão doméstica, graças ao monitoramento onipresente dos aplicativos e do poder absoluto das tecnologias de informação deixam o trabalhador em estado de mobilização permanente, tal como uma situação de guerra continuada sem descanso nem relaxamento. Estado de Exceção do trabalho gerenciado tecnocraticamente. Para Byung-Chul Han.

 

A coação do desempenho é destrutiva, fazendo com que autoafirmação e autodestruição sejam uma coisa só. As pessoas se otimizam para morrer. Autoesgotamento indiscriminado leva a um colapso mental. A luta brutal de concorrência atua de modo destrutivo. Ela produz uma frieza de sentimentos e uma indiferença diante dos outros que traz consigo uma frieza e indiferença perante si próprio (HAN, 2021, p. 19-20).

 

O trabalhador, sob o regime da lucratividade ultraliberal, torna-se cada vez mais desamparado juridicamente, profissionalmente precário, obrigado ao plano profissional da flexibilidade. “Mais empregos, menos direitos”, lema nu e cru dessa dinâmica agressiva que se impõe ao trabalhador solitário. Caberia apenas destacar que “mais empregos” não significam necessariamente “bons empregos”, ou seja, empregos decentes, empregos plenos. Afinal, pode-se perfeitamente eliminar um posto de trabalho dispendioso do ponto de vista salarial e substituí-lo por dez empregos juridicamente e financeiramente precários para quem, por necessidade, aceitar se submeter perante tal descalabro. O trabalhador, antes conectado pelos laços de solidariedade profissional, encontra-se sozinho, isolado, autocentrado, e tal solidão autoimposta é enaltecida pelo gerencialmente ultraliberal como uma virtude resiliente, pois se defende o ideário de ninguém é obrigado a se comprometer com ninguém. Conforme a crítica apresentada por Franco Berardi,

 

O discurso neoliberal é carregado de uma retórica do indivíduo, mas a prática do neoliberalismo acaba por destruir a liberdade individual. A competição e o conformismo são duas faces de uma mesma moeda na esfera do mercado. Os indivíduos de hoje já não perseguem projetos de vida autônomos. Em vez disso, eles são fragmentos de tempo precarizado, fractais em recombinação incessante, unidades conectivas que devem interagir com perfeição, se quiserem ser eficientes sob o domínio da rentabilidade econômica (BERARDI, 2020, p. 193).

 

Ora, quem vive sozinho corre o risco de morrer sozinho, fato escamoteado pela doutrina ultraliberal. O adoecimento do trabalhador, mal remunerado, globalmente desprotegido, é a consequência imediata desse dispositivo, ouso dizer, necrófilo, pois não reconhece a dignidade da pessoa humana do trabalhador, mas antes o enxerga como uma coisa descartável, mero instrumento para proporcionar a manutenção do sistema capitalista.O sofrimento existencial ao que se submete o trabalhador na lógica do desempenho positivado do capitalismo ultraliberal encurta até mesmo a vivência do sono, que não é mais experimentado de maneira saudável e libertadora em sua cada vez mais breve duração.Para Jonathan Crary,

 

O sono afirma a ideia de uma necessidade humana e de um intervalo de tempo que não pode ser colonizado nem submetido a um mecanismo monolítico de lucratividade, e desse modo permanece uma anomalia incongruente e um local de crise no presente global [...]. O sono é uma remissão, uma liberação da “permanente continuidade” de todas as tendências em que estamos imersos quando acordados (CRARY, 2014, p. 20; p. 135).

 

Dormir seis horas por dia é um luxo indisponível para a grande maioria da massa laboral. Preguiça é o pecado mortal por excelência na moral ultraliberal, e para quem não consegue se manter constantemente ativo o recurso aos estimulantes é a solução para que se possa perseverar na labuta. O grande ideal para a rentabilidade ultraliberal residiria na capacidade antinatural do trabalhador dormir com um olho aberto para que pudesse continuar suas operações de maneira contínua sem prejudicar a santa produção. Nos tempos passados o escapismo mental do indivíduo consistia em sonhar com súcubos ou íncubos. Na dinâmica frenética da positividade produtivista o horror da degradação moral da experiência do sono reside em se sonhar que se está enredado nas minúcias do trabalho estressante. Entre vigília e sonho não há mais um hiato salutar. A mentalidade do trabalhador torna-se tão paranoica que se normaliza psicologicamente a devoção profissional ao serviço em um tipo de sonho que aprisiona a alma em uma crosta de ferro.

Byung-Chul Han dedica fartas análises acerca desse novo estágio do gerencialismo socioeconômico do capitalismo, denominando-o como “Sociedade do Cansaço”. Já citamos anteriormente a ideia da canseira, divinizada por Hesíodo nas priscas eras do glorioso mundo grego. Na conjuntura doentia de nossa Modernidade, o cansaço vital do trabalhador sequer é recompensado. Trabalha-se demais, sofre-se em todas as esferas da vida sem nem mesmo haver a possibilidade da compensação metabólica. Dedica-se ao trabalho contínuo até o esgotamento total do organismo: Byung-Chul Han vai além e compreende o cansaço como uma categoria ontológica, que envolve a desvitalização completa do ser humano em consequência de um projeto socioeconômico que, em nome do controle de todo tipo de contingência improdutiva, exige a entrega holística do ser humano na atividade laboral, resultando na sua dissolução interior, pois não há espaço para a contemplação, para o silenciamento e para a meditação sobre si mesmo. O repouso não é capaz de revitalizar o organismo empobrecido. O cansaço é perene e afeta a estrutura orgânica até a medula da personalidade humana, fazendo do sujeito em tal estado extenuante alguém permanentemente desvitaminada e permanentemente curvada perante as ordens gerenciais. Temos assim um ser humano desprovido de substancialidade, um mero corpo morto-vivo, um verdadeiro morto em vida, um corpo-zumbi. A função unidimensional do homem consiste em trabalhar para produzir em nome de um sistema autofágico que é alheio ao próprio caráter singular do homem:“O excesso de elevação do desempenho leva a um enfarto da alma. O cansaço da sociedade de desempenho é um cansaço solitário, que atua individualizando e isolando” (HAN, 2015, p. 71).

O ansiado tempo livre, quando concedido, não permite a desconexão com os imperativos laborais, pois o trabalhador permanece em estado de vigília, pronto para atender aos mandamentos dos seus superiores hierárquicos. O controle informacional é ubíquo e impede qualquer escapatória. Nem mesmo o luto do trabalhador em licença-nojo é respeitado. Tanto pior, a esperança conformista de se poder gozar um pouco da miríade de bens de consumo no mercado se torna cada vez mais escassa em decorrência do inflacionamento dos preços. O custo de vida, terrivelmente elevado, é assim um outro golpe mortal sobre as pretensões prazenteiras do trabalhador espoliado em todas as frentes de batalha. A carestia exige a eliminação do supérfluo e a aplicação do exercício econômico da frugalidade. No entanto, mesmo os gêneros extremamente necessários para a subsistência do trabalhador não estão disponíveis em seu parco poder de compra. Trabalha-se então nem mesmo para sobreviver, mas para se subnutrir. Esse aspecto material, demasiado material da dinâmica do trabalho na hegemonia da agenda ultraliberal é um dos fatores indissociáveis da consolidação da Sociedade do Cansaço. O trabalhador sofre assim não apenas com o desgaste metabólico de uma rotina de trabalho asfixiante, mas também com a pobreza nutritiva, com a degradação dos serviços públicos basilares, com as ameaças externas da insegurança pública que atentam contra as suas parcas posses conquistadas com seus esforços laborais.

O colapso vital do trabalhador é a consequência inevitável da sua adesão incondicional ao sistema do labor absoluto.Cabe destacar que quanto maior é o grau de adoecimento do trabalhador mais poderosa é a empresa na qual a pessoa deposita a cada dia fragmentos de sua vitalidade instrumentalizada. A velocidade incondicional da atuação se torna o parâmetro da boa atuação do sujeito de desempenho imerso no ritmo de esgotamento pessoal, pois o sistema gerencial não permite qualquer contingência que prejudique o bom andamento da lógica rentável que tanto agrada aos executivos e acionistas, regidos apenas pelo cálculo narcísico-egoísta do lucro. Exige-se respostas rápidas e gestos acelerados que sinalizam a interiorização do controle moral do trabalho que subtrai a vitalidade subjetiva daquele que está enredado no capitalismo tecnocrático, daí a importância disciplinar dos aplicativos que impõem aos indivíduos a checagem constante de informações-diretrizes. Tudo é regido pela urgência, palavra que ao ser ouvida ou lida produz agitação no receptor. Chega-se ao cúmulo de se consumir alimentos de maneira extremamente veloz para que não se perca tempo produtivo, para maior desgaste orgânico do trabalhador. Toda reflexão, todo exercício contemplativo, todo processo deliberativo, ações que demandam uma experimentação singularizada da temporalidade, são vilipendiadas pelo dispositivo gerencial. A ação produtiva deve ser a mais automatizada possível para que se retire a periculosidade do pensamento crítico que aborda e analisa todos os fatos, em especial aqueles que são prejudiciais para a perpetuação da própria forma de vida do homem produtivo, homem regido pela positividade, homem sem direito ao não, homem sem direito ao sofrer, homem sem direito ao querer, homem desprovido de qualidades, homem em direção ao nada. Eis assim os fundamentos para uma civilização do Burnout.

 

 

 

Referências

BERARDI, Franco. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. Trad. de Humberto do Amaral. São Paulo: Ubu, 2020.

 

CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo Tardio e os fins do sono. Trad. de Joaquim Toledo Jr. São Paulo: COSAC NAIFY, 2014.

 

HAN, Byung-Chul. Capitalismo e impulso de morte: ensaios e entrevistas. Trad. de Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis: Vozes, 2021.

 

_____. No Enxame: perspectivas do digital. Trad. de Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2018.

 

_____. Sociedade do Cansaço. Trad. de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.

 

HESÍODO. Teogonia / Trabalhos e Dias. Trad. de Ana Elias Pinheiro e José Ribeiro Ferreira. Lisboa: INCM, 2005.

 

 

 

 

 

 

 

[1]Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Professor do Curso de Administração da FACC-UFRJ