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Guerras culturais no Brasil e o fortalecimento do conservadorismo

A cultura é cenário de um conflito continuado e não menos repleto de consequências sociais do que os confrontos armados, os quais frequentemente precede. Teixeira Coelho

Alan dos Santos - Doutorando em História da Cultura - Mackenzie/SP

Introdução

O presente ensaio político-filosófico tem por objetivo resumir em poucas linhas o tema das guerras culturais no Brasil – tema que pretendemos expandir e prolongar para uma pesquisa que estamos realizando no programa de pós-graduação em nível de doutorado em Educação, Artes e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Postulamos, pois, que o conceito de “guerra cultural”, embora pouco discutido no Brasil atualmente, nos permite compreender a gênese e o desenvolvimento da forte polarização política e cultural que assola o Brasil atualmente.

Em resumo, iremos investigar a dimensão eminentemente política da cultura. Tentaremos compreender a cultura como um lugar onde se exerce o governo dos corpos e das consciências, isto é, o governo das condutas humanas e os processos de subjetivação política.

Trata-se de um ensaio filosófico que articula e perpassa por algumas áreas das chamadas ciências humanas, sobretudo pela filosofia política e pelos estudos culturais.

O nascimento das guerras culturais

O tema da guerra cultural surgiu nos EUA na segunda metade do século XX através de alguns pensadores identificados política e culturalmente com as ideias do conservadorismo. A segunda metade do século XX impôs diversas transformações culturais e diversas revisões de ordem moral que obviamente não agradaram aos conservadores: pessoas que defendem uma ordem política e econômica de cunho liberal moderado e ao mesmo tempo a moralidade judaico-cristã, ainda que nem todos os conservadores se reconheçam como cristãos. Trata-se de uma espécie de laicização da moral cristã (secularização, nas palavras de Charles Taylor), desvinculando-a das questões propriamente religiosas; esse é o caráter central do conservadorismo político, hegemônico na cultura política dos EUA.

Trata-se de compreender o cristianismo como manifestação da cultura, e não necessariamente como rito religioso. Para os conservadores, a moral (sobretudo a defesa da moralidade cristã) é o tema político de maior importância na esfera pública (mais do que a economia ou o desenho institucional do Estado). Em suma, a moralidade é o grande termômetro das discussões e dos embates políticos. A moralidade é também o grande termómetro de medição da guerra cultural.

Grosso modo, na guerra cultural vemos, por um lado, os conservadores defendendo os valores morais clássicos que fundaram o ocidente e, por outro lado, as forças progressistas (leia-se esquerdistas) pondo em questão esses mesmos valores morais e admitindo novas possibilidades de ser e de existir, em suma, novas formas de subjetividade e de moralidade. O tema da “guerra cultural” surge como uma espécie de denúncia feita por alguns filósofos conservadores[1] contra um mundo que caminha a passos largos para longe da moralidade cristã que ajudou a fundar a cultura geral do ocidente o qual vivemos. O medo dos conservadores era (ainda o é) o avanço da pauta progressista no interior das sociedades de cunho mais conservador e tradicional.

Na segunda metade do século XX, temas como os direitos civis, direitos dos homossexuais, legalização do aborto, movimentos sociais feministas e ecologistas dentre outros surgiram com força no cenário político-cultural dos EUA. O conjunto desses movimentos políticos e dessas práticas culturais passou a ser chamado de “novas esquerdas” (new left). Foi o surgimento das “novas esquerdas” que despertou o medo e o risco político para a hegemonia cultural conservadora norte-americana.

Sobre o nascimento da guerra cultural nos EUA, vale lermos o seguinte parágrafo escrito por Pablo Ortellado em artigo intitulado de Guerras culturais no Brasil:

Costuma-se atribuir a James Hunter a precisa identificação do fenômeno e a difusão do termo “guerras culturais” para se referir ao processo pelo qual temas como o direito dos homossexuais, a legalização do aborto, o controle de armas e a legalização das drogas passaram a ganhar proeminência no debate político americano no final dos anos 1980, opondo “conservadores” a “progressistas”. Para ele, essa nova polarização dividia o espectro político de outra maneira, opondo ortodoxos ou conservadores, de um lado, e progressistas, de outro. Os conservadores se definiriam por um “compromisso com uma autoridade moral externa definida e transcendente”, e os progressistas, por uma autoridade moral “caracterizada pelo espírito da era moderna, um espírito de racionalismo e subjetivismo”. (ORTELLADO, Guerras culturais no Brasil, 2014)

O trecho acima de Ortellado é interessante porque ele localiza a origem e o centro de difusão da expressão “guerra cultural”; explica que essa expressão nasceu nos EUA através de filósofos e pensadores conservadores que se preocuparam temerosamente com a ascensão de políticas culturais progressistas (aborto, casamento gay e por aí vai). A guerra cultural reconfigurou a disputa ideológica do mundo contemporâneo: deve-se entender por direita política, hoje, os conservadores contrários à nova agenda de costumes sociais progressistas (algo bastante diferente do que Norberto Bobbio definiu como sendo a direita política: os defensores da liberdade frente os da igualdade); já por esquerda política, deve-se compreender não mais a pretensão de planificação econômica preconizada por certo marxismo grosseiro, mas sim os defensores dessa nova agenda político-cultural que visa reformar a vida e o homem pela cultura (não mais pela economia ou pelo Estado).

Vejamos uma citação de Peter Kreeft que também aborda de modo emblemático e ilustrativo a questão da guerra cultural, reforçando os principais aspectos apresentados por Ortellado:

Há uma coisa sobre a qual todos nos Estados Unidos concordam, não importando se se é liberal ou conservador, rico ou pobre, ateu ou religioso, empregado ou patrão, homem ou mulher, gay ou hetero, pró-vida ou pró-escolha, capitalista ou socialista: praticamente todos os que têm dois olhos e um nariz concordam que a nossa cultura está atolada em problemas, para não dizer coisa pior.

Diferentes grupos têm diferentes explicações para os problemas. Os conservadores culpam os liberais[2] e os liberais os conservadores. Os heteros culpam os gays e os gays os heteros. Os brancos culpam os negros e negros os brancos. Os homens culpam as mulheres e as mulheres culpam os homens.

Alguns dizem que não é culpa de ninguém, que isso está simplesmente acontecendo. Esse é o pessimismo mais puro de todos, pois significa que não há nada que se possa fazer. Pensar assim é o mesmo que afirmar que os Estados Unidos estão condenados, pois o que não foi quebrado, não precisa ser concertado, ou pior, se a doença não tem causa, também não tem cura. (KREEFT, Como vencer a guerra cultural, 2011, p. 9-10)

 

Percebe-se que Peter Kreeft elabora uma divisão cultural bastante semelhante àquela apresentada pelo pesquisador brasileiro, um conflito que opõe duas identidades políticas e culturais distintas: uma delas mais próxima do conservadorismo e outra mais liberal (que nos EUA significa “esquerdista”, como vimos na nota de rodapé extraída do livro de Kreeft).

Guerras culturais no Brasil

O tema da guerra cultural, embora tenha surgido nos EUA, chegou ao Brasil. Um fato curioso é que a guerra cultural no Brasil culmina com o aparecimento de um conservadorismo político até então ausente da vida pública brasileira.

Cresce no Brasil, hoje, um movimento cultural autodeclarado conservador que parece se organizar e pensar o mundo contemporâneo de modo semelhante com os pensadores estadunidenses identificados com a tradição conservadora que citamos há pouco. Até pouco tempo atrás não víamos no Brasil, de modo tão exposto e aberto, pessoas defendendo valores conservadores como vemos hoje. Com a redemocratização do Brasil após a última ditadura militar, declarar-se conservador significava aderir às ideias do regime ditatorial e, por este motivo, ninguém se afirmava como conservador no Brasil. Poucos o faziam. Mas o quadro parece ter mudado ou estar em plena mutação. E muito por conta dos equívocos e escândalos de corrupção dos governos de esquerda no Brasil, sobretudo as gestões petistas. Esse novo conservadorismo surge como uma reação direta contra o legado deixado pelo petismo e contra quaisquer outras possibilidades de candidaturas progressistas.

Mais do que focar na disputar eleitoral, o “novo conservadorismo” no Brasil parece disputar um lugar ao sol também no campo da cultura. Alguns acontecimentos recentes demonstram isso de modo claro e direto. Os casos mais emblemáticos talvez sejam as disputas em torno de duas exposições artísticas e culturais: a do Santander Cultural intitulada de Queermuseu — Cartografias da diferença na arte brasileira e a performance no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, uma releitura de uma obra de Lygia Clark que envolvia um corpo nu masculino. Esses dois acontecimentos artístico-culturais despertaram uma forte indignação popular por parte da sociedade civil mais ou menos capitaneada por movimentos sociais alinhados com o conservadorismo, como é o caso do Movimento Brasil Livre (MBL), que organizou uma forte campanha publicitária na internet contra as duas exposições.

Esses dois casos refletiram bem a chegada da guerra cultural no Brasil: vimos dois lados opostos se organizando em defesa de suas visões de mundo e da cultura: os conservadores lutando pelo fechamento e cancelamento das exposições e os esquerdistas / progressistas defendendo os curadores e as exposições de modo geral.

Antes dessas exposições, que são recentes e datam de 2017, pudemos identificar traços tipicamente conservadores - traços de guerra cultural - já nos protestos pró-impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT). Na ocasião, foram levantados cartazes exaltando o pensamento de um filósofo conservador que até pouco tempo atrás era visto como uma figura exótica no cenário cultural brasileiro. Referimo-nos ao Olavo de Carvalho. Nos protestos pró-impeachment era comum vermos cartazes com os dizeres “Olavo tinha razão”, fazendo alusão à militância conservadora e antipetista dele.

Aliás, é preciso dizer (na verdade reconhecer) que a disseminação das ideias conservadoras no Brasil hoje se dá muito por conta dos trabalhos de Olavo de Carvalho, gostemos dele ou não. Foi do Seminário de Filosofia do Olavo de Carvalho que nasceram movimentos culturais como o Terça-Livre (um centro de comunicação alternativo de cunho conservador), o Brasil Paralelo (destinado a ensinar a História do Brasil na internet a partir de uma perspectiva conservadora), além de editoras tipicamente conservadoras como a Vide Editorial e a É Realizações.

Olavo de Carvalho deixou de ser uma figura estranha no debate público brasileiro. Já não dá mais para ignorá-lo ou simplesmente menosprezá-lo. Ele se apresenta como um dos principais centros organizadores do pensamento conservador no Brasil. Muitos dos filósofos conservadores que pensaram a guerra cultural que citamos nesse artigo (e que a esquerda brasileira sequer se presta a conhecer, nem como “estratégia de guerra”) são estudados, por exemplo, no seu Seminário Online de Filosofia.

Para reforçar as nossas palavras sobre a influência do Olavo de Carvalho na disseminação do conservadorismo no Brasil, leiamos o trecho abaixo escrito por Pablo Ortellado no artigo que já citamos aqui:

Há apenas dez anos, comentaristas conservadores como Olavo de Carvalho ainda eram figuras folclóricas no jornalismo brasileiro. Nos últimos anos, porém, os meios de comunicação de massa incorporaram tantos conservadores que eles passaram a dar o tom geral do jornalismo de opinião. Dentro e fora da imprensa, todo debate político hoje é dominado por um discurso de ódio que coloca temas morais como o combate ao homossexualismo e o endurecimento penal em primeiro plano e subordina as questões econômicas e sociais a essa visão de mundo punitiva. (ORTELLADO, Guerras culturais no Brasil, 2014)

Para finalizarmos este artigo-ensaio, caberia explicar que o núcleo das argumentações de Olavo de Carvalho (2014) sobre a guerra cultural no Brasil esboçadas em seu livro A nova era e a revolução cultural: Fritjof Capra e Antonio Gramsci é o de que com a tomada do poder político pelos militares em 1964, a esquerda política viu-se numa encruzilhada fundamental para prosseguir com a sua própria existência. Havia três alternativas na ocasião para as esquerdas, diz ele: 1) aproximar-se do centro democrático e compor a oposição parlamentar pelo MDB; 2) optar pela luta armada e, grosso modo, pela ditadura revolucionária do proletariado, ou seja, radicalizar pela esquerda; e 3) distanciar-se do jogo político e preparar a revolução pela cultura.

Para Olavo de Carvalho, esse terceiro caminho foi o escolhido pela maioria da militância organizada de esquerda, que, em pleno regime ditatorial, conseguiu adentrar nas universidades e ocupar as cátedras de ciências humanas, além de criar nesse período as principais editoras socialistas, isto é, centros de difusão de textos socialistas (talvez o exemplo mais emblemático seja a criação da Editora Civilização Brasileira, uma das primeiras a lançar as obras completas de Karl Marx e de pensadores marxistas no Brasil).

Segundo o filósofo conservador, a esquerda nunca se expandiu tanto no campo da cultura como durante o regime militar. Essa opção pela cultura culminou na descoberta por parte dos socialistas brasileiros dos trabalhos de Antonio Gramsci, filósofo italiano comunista do século XX, o principal teórico da Revolução Cultural. Com a descoberta dos trabalhos de Gramsci, grande parte da esquerda brasileira recusou a luta política pelas armas e optou pela luta política através da cultura.

Podemos discordar do diagnóstico do Olavo de Carvalho sobre a situação cultural do Brasil durante o regime militar, mas, de qualquer modo, essa cartografia da guerra cultural que ele desenha é interessante para pensarmos o Brasil hoje.

Os trabalhos de Olavo de Carvalho, sobretudo o livro que citamos sobre Gramsci e a Revolução Cultural, nos ajuda a compreender o processo de identificação (subjetivação) política do conservadorismo no Brasil. Em suma, os trabalhos de Olavo são importantes para compreender o que se passa na subjetividade das pessoas que se dizem conservadoras no Brasil. Como ele postula que a cultura política brasileira está hegemonicamente controlada pelas esquerdas, ele acredita que o conservadorismo se situa na posição de resistência, enquanto que as esquerdas se situam no controle da cultura. Não concordamos com essa descrição. Concordamos, sim, que as esquerdas passaram a ocupar um espaço maior na cultura; no entanto, grande parcela da população brasileira ainda se identifica com valores ditos conservadores ou tradicionais.

Referências bibliográficas

CARVALHO, Olavo de. A nova era e a revolução cultural: Fritjof Capra e Antonio Gramsci. Campinas: Vide Editorial, 2014.

COELHO, Teixeira. Guerras culturais. São Paulo: Iluminuras, 2000.

KREEFT, Peter. Como vencer a guerra cultural: um plano de batalha cristão para uma sociedade em crise. Campinas: Ecclesiae, 2011. Tradução de Márcio Hack.

ORTELLADO, Pablo. Guerras culturais no Brasil, Le Monde Diplomatique Brasil, edição 89, dez. 2014. Disponível em: < http://diplomatique.org.br/guerras-culturais-no-brasil/ >, último acesso em 27 de novembro de 2017.

SCRUTON, Roger. Os pensadores da nova esquerda. São Paulo: É realizações, 2014. Tradução de Felipe Garrafiel Pimentel.

TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola, 2005. Revisão de Renato da Rocha Carlos.

 

 

[1] Peter Kreeft, George Lakoff e David Horowitz são exemplos de filósofos ou pensadores conservadores que trataram do tema da guerra cultural contra um suposto avanço das práticas político-culturais das esquerdas.

[2] [Nota de rodapé extraída do livro] O termo liberal, amplamente usado nos EUA, tem significado próximo ao que “esquerdista” tem no Brasil. Optou-se por essa tradução porque o autor também usa a palavra leftists, ou seja, esquerdistas. Os termos, porém, são praticamente equivalentes.