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 A consciência Pós-Moderna como emanação da filosofia trágica

Renato Nunes Bittencourt[1]

O projeto filosófico da Modernidade postulava o progresso da condição humana em suas interfaces morais e técnicas, como se porventura fosse possível ocorrer uma associação intrínseca das duas instâncias em uma convergência teleológica rumo ao aprimoramento contínuo da vida.

O espírito do progresso libertaria o ser humano do caos e das ditas trevas da ignorância pelas quais as gerações antepassadas sucumbiram, impedindo o estabelecimento do bem-estar nas civilizações. Contudo, a despeito do pretenso universalismo do ideário moderno, que encontrou sua representação discursiva por excelência no pensamento iluminista, suas bases axiológicas permaneceram eurocêntricas, criando-se assim o absurdo paradoxo de que, simultaneamente ao enaltecimento da dignidade e dos direitos inalienáveis do homem, a opressão contra o mesmo continuava incólume graças ao sistema da escravidão negra ainda em vigor e aos atos de pirataria colonialista/imperialista praticados contra as nações imputadas como “bárbaras”. Mesmo no solo europeu o espírito de fraternidade do Iluminismo não obteve pleno êxito, pois diversas guerras sulcaram de sangue suas terras sagradas, cindindo uma frágil esperança de um porvir humano efetivamente feliz e emancipado de toda miséria e mal-estar social.

O pensamento iluminista foi derrotado por sua incapacidade de afirmar a singularidade e a contingência da condição humana, privilegiando o sentido genérico do conceito de homem, isto é, a sua abstração teórica desvinculada da práxis autêntica. Os Direitos do Homem e do Cidadão foram assim redigidos para os brancos, imputados pelo pensamento eurocêntrico como os genuínos seres humanos, e não para os “outros” que orbitavam na periferia desse sistema fechado. O Iluminismo se configura assim como uma grande mistificação ideológica incapaz de promover a experiência da alteridade e da efetiva justiça global.

Nietzsche, na maturidade da Modernidade, ou seja, no período Oitocentista, foi um dos principais filósofos a desmistificar esse ideário que em nada estava comprometido com a potência criadora da vida. A crítica aos valores modernos não significa uma disposição reacionária pró-classicismo, mas uma constatação de que o projeto civilizatório da sociedade burguesa ocasiona a decadência da própria energia vital do ser humano, que se emancipou, de certa maneira, das correntes teológicas, mas se aprisionou nos grilhões da tecnocracia, da burocracia, do trabalho exaustivo e alienado, na correria do tempo urbano desprovido de reflexão, marcado pela agitação histriônica que excita de maneira doentia o sistema nervoso do sujeito. Para Nietzsche, ao contrário do que hoje se crê, a humanidade não representa uma evolução para algo de melhor, de mais forte ou de mais elevado. O “progresso” é simplesmente uma ideia moderna, ou seja, uma ideia falsa. O europeu de hoje vale bem menos do que o europeu do Renascimento; desenvolvimento contínuo não é forçosamente elevar-se, aperfeiçoar-se, fortalecer-se (NIETZSCHE, 1997, p. 17).

O homem moderno é o homem psicofisiologicamente decadente, desprovido de unidade de estilo, de todo valor existencial regido pela singularização dos seus caracteres. A massificação cultural promovida pela apropriação burguesa dos meios de produção e suas interfaces na vida social estabelece a tirania do comum, do usual, do gregário, incapaz de pensar e agir por conta própria. Regido pelo cálculo e pela neurose da adequação incondicional ao tempo cronológico, o homem moderno perde sua capacidade de criação emancipada das pressões do mercado.

A Modernidade vivencia uma grande crise na consciência religiosa. O materialismo tecnocrático, intrinsecamente vulgar e sinal do empobrecimento cultural de toda uma geração social, afasta grande parte da massa humana da experiência eclesiástica, substituindo-a pelo usufruto do bem-estar material proporcionado pelo avanço científico nas grandes cidades. As instituições cristãs são abaladas fortemente nas suas estruturas ideológicas, perdendo vertiginosamente o prestígio adquirido ao longo dos séculos por suas obras catequéticas, pelo ferro e pelo fogo. Nietzsche denomina como “Morte de Deus” o processo cultural da dissolução da vivência religiosa tradicional:

Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido?  perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com sue olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – você e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como se através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuía sangrou inteiro sob os nossos   punhais – quem nos limpará este sangue e com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos que inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda história até então! Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisam de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o cometeram!” – Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternam deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?” (NIETZSCHE, 2001, p. 147-148)

Todavia, a herança milenar da moral cristã permanece incrustrada na consciência do homem moderno que, mesmo adotando um modo de vida secular, permanece ainda arraigado em parâmetros existenciais religiosos. O divino é escamoteado no cotidiano social. O secularismo não quebrou as correntes da dominação teológica, pois apesar do distanciamento da sociedade moderna em relação ao plano religioso da vida orientada pelo dispositivo eclesiástico, a fé na realidade transcendente foi apenas transferida para outras instâncias da estrutura social. A crença na verdade teológica transferiu-se para a verdade jornalística, surgindo assim uma nova consciência religiosa no homem moderno, adorador dos fatos puros. Mesmo o culto secular das celebridades representa uma derivação do espírito religioso, direcionado para figuras publicas de destaque social que apresentam uma aura artificial similar aos dos antigos santos.

A verdadeira experiência religiosa, contudo, independe dos fenômenos sociais, políticos e culturais que afetam as bases valorativas da modernidade. Por verdadeira experiência religiosa podemos considerar a que independe do establishment eclesiástico, sejam as vivencias místicas singulares ou coletivas, assim como as ações religiosas que muitas vezes se caracterizam pela contraposição aos estatutos religiosos formais, cristalizados nas estruturas eclesiásticas. A “Morte de Deus” enunciada por Nietzsche abala, portanto, apenas a estrutura corrompida da fé tradicional, incapaz de vivenciar plenamente a beatitude sagrada com o divino que se encontra para além de toda crença institucionalizada.

A crença no progresso da humanidade é uma teleologia divina disfarçada, pois associa o aprimoramento moral da condição humana com o desenvolvimento técnico, ou seja, uma relação necessariamente improvável.  Contudo, para grande dissabor do otimismo estabelecido, a tecnologia científica que se aprimora a cada ano não é acompanhada pela contraparte moral da civilização moderna. O ser humano continua preso aos seus preconceitos culturais reacionários, pois de modo algum ele consegue se libertar do peso das tradições arcaicas que embotam seu pensamento e sua capacidade de agir criativamente. A situação civilizacional atinge o colapso, pois o ímpeto de destruição do ser humano foi agora potencializado pelos aparatos técnicos, daí decorrendo as grandes guerras que colocaram em risco o futuro da humanidade e do próprio planeta, exaurido pela exploração predatória dos seus recursos. A ausência de um projeto desenvolvimentista sustentável é a principal prova de que o interesse das grandes nações espoliadoras das forças vitais da natureza não consiste na preservação racional da mesma, mas na sua apropriação absoluta. O espírito colonialista/imperialista presente nas orientações ideológicas das nações rapinantes conduz assim ao alentado projeto futurista de criação de colônias humanas em outros planetas, de modo a se conciliar o absurdo projeto tecnocrático moderno com uma possível conservação da vida humana, em especial das elites economicamente viáveis, que poderão arcar com os custos elevados de uma existência afetada pelos efeitos físicos da degradação natural na Terra.

Para Lyotard, a dita Condição Pós-Moderna ocorre pela “incredulidade em relação aos metarrelatos” (LYOTARD, 2002, p. XVI). Isso significa a dissolução das narrativas universais que gerenciavam a vida humana sob a égide das organizações civilizacionais e o reflorescimento dos agentes sociais tradicionalmente recalcados pelo discurso da univocidade, essencialmente repressor. A alteridade adquire assim estatuto político no seio social, ainda que sofra contínuas represálias dos segmentos reacionários que se proclamam os defensores da Moral e da Ordem, evidenciando assim sua filiação aos paradigmas normativos arcaicos.

A consciência da Pós-Modernidade, nascida da constatação do fracasso civilizacional do mundo tecnocrático, não consiste no pessimismo incondicional em relação ao modo de ser da humanidade inserida nesse contexto cultural. Justamente a partir do reconhecimento de que o projeto moderno não se efetivou e talvez tampouco venha a se realizar por causa dos seus paradoxos axiológicos, o advento do pensamento pós-moderno permite talvez a solução desses impasses. Para Michel Maffesoli,

 O vínculo social, aquilo que fazia com que os indivíduos compusessem uma sociedade e se sentissem membros dela, na época que chamamos de Moderna, era um racionalismo abstrato. Nossa época, esta que chamamos de Pós-Moderna, vai se deslocando pouco a pouco diante de nossos olhos: é feita de afetos, sentimentos e excessos que nos dirigem, mais do que os controlamos. O cérebro dá lugar ao ventre e a seus apetites múltiplos (MAFFESOLI, 2004, p. 79-80).

Não existe verdade universal, identidade universal, valores universais, morais universais, talvez nem mesmo uma política universal, circunstância que demonstra por qual motivo a pretensão iluminista de uma paz perpétua seja impossível, assim como a impotência das organizações internacionais em regular convenientemente os conflitos no globo.

Urge a retomada do pensamento trágico de Heráclito, que na aurora da filosofia antiga dissera que “Em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo, nem substância mortal tocar duas vezes na mesma condição; mas pela intensidade e rapidez da mudança dispersa e de novo reúne” (HERÁCLITO, Fragmento DK 91). Com efeito, a identidade é um fluxo, um processo móvel em constante mudança dos seus caracteres, de modo que não existe uma essência fundamental que constitui a condição humana e sequer qualquer outra forma de vida. Tudo muda constantemente mediante o fluxo do tempo, regido por um princípio criativo que transforma todas as coisas sem qualquer imputação moral de punição ou aperfeiçoamento da existência: “O Tempo é criança jogando, brincando. Reinado de criança” (HERÁCLITO, Fragmento DK 52).

Considero que essa intuição ontológica da filosofia trágica encontra atualmente grande ressonância no pensamento de Stuart Hall que, nas suas inestimáveis reflexões sobre a identidade cultural na pós-modernidade, se fia justamente nessa disposição para construir sua hipótese da inexistência do atomismo do sujeito:

A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente e não biologicamente (HALL, 2006, p. 12-13).

A noção clássica de identidade é uma grande ilusão epistêmica e psicológica, pois nega o princípio de alteridade latente no próprio sujeito, que sempre depende, a rigor, de uma figura externa de interlocução nos atos comunicacionais, mesmo que estes nunca sejam capazes de expressar plenamente nossas vivências interiores. O “Eu” não apenas pressupõe a existência do “Outro”, mas em si já porta o próprio “Outro”.  Stuart Hall expressa de modo preciso tal problema ao dizer que “dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2006, p. 13). 

Encontramos ainda subsídios para o contraponto ao ideário moderno, herdeiro do projeto filosófico socrático/platônico/aristotélico/cristão, no pensamento sofístico, em especial na obra de Protágoras de Abdera, que já apresentara no antigo mundo grego o relativismo dos valores fundamentado na medida humana de avaliação de todas as coisas: “o homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são, e das que não são enquanto não são”, (dito por Sexto Empírico em Contra os Matemáticos, 7, 60).

Isso não significa uma ausência de critérios axiológicos na condução da vida humana, mas apenas a crítica perante toda pretensão universalista de se propor e impor parâmetros universais de avaliação na existência. Por conseguinte, a perspectiva relativista não nega o debate, o conflito de ideias, pois no jogo retórico da argumentação, obtém a vitória quem apresenta com mais sofisticação e precisão o seu discurso. Dessa maneira, o relativismo sofístico não gera a estagnação cultural do sujeito, pois este se encontra na constante urgência de se atualizar intelectualmente para renovar o seu estofo de argumentações.

Uma análise filosófica dos paradigmas epistemológicos da dita Pós-Modernidade jamais pode ser abarcada em apenas um breve artigo acadêmico. Contudo, ao longo da argumentação precedente, encontramos subsídios para a fundamentação da hipótese de que suas valorações, radicalmente contrárias aos paradigmas universalistas da Modernidade, manifestam razoável convergência com as perspectivas filosóficas que se caracterizam precisamente pela sua incompatibilidade com a racionalidade metafísica hegemônica ou com dispositivos metafísicos de ordenação moral de mundo. Por conseguinte, podemos afirmar que a formulação do discurso filosófico da Pós-Modernidade é uma retomada extemporânea tanto de alguns aspectos do pensamento trágico, obnubilado pela vertente racionalista iniciada pelo socratismo-platonismo, como também da vertente sofística que desconsidera a existência de qualquer paradigma absoluto de valor. A consciência trágica e os pressupostos sofísticos são disposições que afirmam assim a importância da singularidade e da contingência na elaboração de uma consciência filosófica imanente, promovendo assim uma nova orientação existencial que legitima a transformação como um primado fundamental da vida.

 Referências

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HERÁCLITO.  “Fragmentos”. In: Vol. Pré-Socráticos, Col. “Os Pensadores”. Trad. de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

 

LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Trad. de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

 

MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a Pós-Modernidade: o lugar faz o elo. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004.

 

NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. Trad. de Artur Morão. Lisboa: Ed. 70, 1997.

 

__________.  A Gaia Ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia da Letras, 2001.

 

SEXTO EMPÍRICO. “Contra os matemáticos” In: SOFISTAS. Testemunhos e Fragmentos. Trad. de Ana Alexandre Alves de Souza e Maria José Vaz Pinto. Lisboa: INCM, 2005 [Sobre Protágoras, p. 79].

 



[1] Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Professor do Curso de Especialização em Pesquisa de Mercado e Opinião da UERJ. Professor da Faculdade CCAA e da Faculdade Duque de Caxias-UNIESP. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.