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A questão do Progresso/Antiprogresso na filosofia política de Jean-Jacques Rousseau

 

Este artigo tem por objetivo tratar sobre a questão do progresso no filósofo J.-J. Rousseau. Qual a consonância que há entre a filosofia de Rousseau e a doutrina de seu tempo? Onde situar a idéia de progresso na sua obra?

Enfatiza-se que as grandes discussões do século XVIII tornam-se possíveis mediante uma concepção da Razão que é refletida sobre si mesma. Assim, pensar a política, a sociedade, o direito, a filosofia, dá-se pelo viés da racionalidade e isto, de uma forma muito precisa, vai pontuar o discurso desse tempo que é a modernidade. O século XVIII foi um período na história do espírito europeu muito agitado de idéias e rico em tendências contrárias, considerado, inclusive, revolucionário – claro que muito mais por aqueles que se apoiariam dessas idéias no futuro – ou até mesmo contra a revolução, diante seu caráter otimista demais.

O iluminismo setecentista não é muito fácil de caracterizar, tão grande é o número de tendências, forças e importantes fatos culturais que nele se reúnem. Mas, apesar desse movimento abranger vários aspectos, segundo Lima Vaz (1991, p. 92) é a concepção da história humana que vai centralizá-lo e unificá-lo. Destarte, se um dos aspectos principais da Ilustração é a história humana, essa história é traçada pela Razão, pelos progressos da razão. E a característica marcante dessa idéia, é difundida ao longo do século XVIII.

Assim, na visão da Ilustração: o progresso implicaria numa mudança operada pelo homem, segundo fins racionais e medida pelo critério do melhor (VAZ, 1991, p. 93). Observa-se que a própria construção do conceito de Ilustração, surgido a partir de uma metáfora da luminosidade, “encontra na idéia de progresso assim definida o espaço da sua irradiação” (VAZ, 1991, P. 93). Portanto, as luzes da Razão e o progresso, definem o espaço em que se desenvolvem as características fundamentais do espírito do Iluminismo. E como se pode perceber, Jean-Jacques se afasta dessas concepções, de uma idéia de progresso tão progressiva, tão racional e tão iluminada. Para Rousseau, a história dos homens é a história da queda, e, o percurso não é o da salvação, mas o da perdição; o ‘progresso das coisas’ traz o declínio do humano e das instituições, na medida em que a perfectibilidade do homem é um processo de desnaturação e que as circunstâncias trazidas pelo progresso culminam com o despotismo, figura final da desigualdade.

Aparentemente, essas características de um progresso negativo no pensamento de Rousseau, sinalizam uma característica um tanto pessimista do filósofo. Mas, qual o sentido exato que Rousseau confere a história do progresso? O autor estaria negando o progresso de um tempo, contra a civilização? Nas obras políticas de Rousseau, aparecem suas críticas à sociedade, pois, o filósofo, antes de tudo, foi um grande crítico de seu tempo, das idéias de sua época. Dessa forma, isto sinaliza, que a idéia de progresso, para Rousseau, tinha uma feição crítica.

Desde o momento em que o filósofo ingressa no Mundo das Letras e responde de forma pessimista à academia de Dijon, ele desconcerta não só seus contemporâneos, os iluministas, como também, o espírito otimista do seu século. Para Rousseau, o progresso das ciências e das artes nada acrescentou à nossa verdadeira felicidade e somente contribuiu para corromper os costumes. Desse momento em diante, o filósofo pontua em todas as suas obras de doutrina, que a história do homem é muito mais da decadência do que de progresso. E, é esta “perspectiva da queda”, que mais nos interessa ao falar do progresso, pela própria contramão com o seu tempo e a intranqüilidade que esse contraste – que ele – nos ocasiona.

Nas suas obras políticas, consideradas de doutrina, principalmente, no Discurso Sobre as Ciências e as Artes, Discurso sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens e no Contrato Social, Rousseau traça um fio condutor entre essas obras, de uma forma muito “pontual”, sobre o declínio dos povos. Primeiramente trata da passagem da cidade primitiva para as sociedades civilizadas através da degeneração. Também, a negatividade com que Rousseau responde à questão proposta pela Academia de Dijon sobre a contribuição do progresso das ciências e das artes para o “aperfeiçoamento” dos homens. Mais na frente, no Contrato Social retoma a questão do declíniodos povos ao se referir aos povos apropriados ou não para as boas leis e aos incorrigíveis, aos quais dificilmente se pode evitar a destruição.

Ora, o interessante, no pensador, é que ele não retrata isto de uma maneira já estabelecida, mas, mostra como era e comose ‘regrediu’ através do progresso.Ele faz um percurso histórico ou anti-histórico, para ilustrar como se chegou, ou seja, como o “progresso” ‘declinou’. Se é que se pode chamar isto realmente de uma queda; ou será mesmo esse, o fim do progresso? Este processo é acentuado ao remontar a perda da liberdade natural do homem. Já, no Primeiro Discurso, o restabelecimento das ciências e das artes aponta as perdas do homem:

 “... as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e talvez mais poderosas, estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro de que estão eles carregados, afogam-lhes o sentimento dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem com que amem sua escravidão e formam assim o que se chama povos policiados” (ROUSSEAU, 1978, p. 334-335).

Assim sendo, o homem torna-se ainda mais escravo das coisas. As ciências, as letras e as artes tornaram o homem um ser fino, delicado, elegante, mas em contrapartida geraram um mundo aparente e cheio de vícios, não sendo mais possível amizades confiáveis e sinceras. O restabelecimento das ciências e das artes teve, antes de mais nada, a preocupação de polir nossos costumes que eram rústicos, porém naturais, impossibilitando o homem penetrar em si mesmo.

Segundo Jean Starobinski comentando Rousseau: “é no coração do homem que está a vida e o espetáculo da natureza e na medida em que o coração do homem perde sua transparência, o espetáculo da natureza se empana e se turva” (STAROBINSKI, 1991, p. 32).

Resulta, assim, que as ciências e as artes acabaram tolhendo a liberdade natural do homem, pois, como vimos, este não ousa mais parecer tal como é, ou seja, o homem passa a obedecer as regras já estabelecidas pela sociedade.

Eis-nos diante do mal. Só que esse mal não é fruto exclusivamente das ciências e das artes, mas, acima de tudo, da desintegração social, proporcionado pelo progresso. Portanto, as ciências e as artes contribuíram para tal desintegração, fugindo a um de seus melhores propósitos: o de servir a fins melhores.

Porém, não se trata de excluir as artes e as ciências, mas, sobretudo, em recuperar a totalidade social tomando como base a virtude por ser a única necessária entre os homens. Se não se trata de excluir as artes e as ciências então estamos diante de um mal menor.

Este momento do progresso, acentuado com o restabelecimento das ciências e das artes, causou não só a perda da liberdade humana, como, também, o desaparecimento do direito natural a partir das desigualdades, com o surgimento da propriedade privada, pois, “da cultura de terras resultou necessariamente a sua partilha e, da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça, pois, para dar a cada um o que é seu, é preciso que cada um possua alguma coisa” (ROUSSEAU, 1978, P. 266).

Essa passagem evidencia que a divisão de terras gerou uma nova espécie de direito. Observa-se então, que o mais forte, o mais corajoso, possuía mais propriedade e era, portanto, o mais rico. Com efeito, a desigualdade natural começa a desaparecer surgindo, assim, os ricos e os pobres. A sociedade, como observa Rousseau, encontra-se em pleno estado de guerra. Tal situação era prejudicial àqueles que possuíam grandes propriedades, isto é, aos mais ricos.

Na tentativa de amenizar esse estado de guerra, conseqüência da lei do mais forte, surge para o homem a necessidade de legalizar o direito de propriedade e todos se submeterem as máximas de instituições contrárias as naturais. Então, os homens nascidos livres tiveram que: “... confiar a particulares a perigosa custódia da autoridade pública e se delegasse a magistrados o cuidado de fazer observar as deliberações do povo” (ROUSSEAU, 1978, p. 271). A observância do Direito, como conjunto das Leis, cabe aos magistrados. Estes surgem em decorrência da incapacidade do governo em eliminar os vícios de constituição. Pois, o governo surge de forma irregular, já que os mais sábios legisladores fizeram com que o Estado político permanecesse imperfeito. Sendo assim, os magistrados seriam, em princípio, a melhor forma de assegurar a liberdade humana, pois, a magistratura seria baseada nas leis fundamentais, onde com a destruição das mesmas, as magistraturas deixariam de ser legítimas e, conseqüentemente, o povo já não mais lhes deveria obediência. Pois, é basicamente a lei que define o Estado. Com efeito, o povo voltaria a ser livre. Mas, ao contrário, os magistrados usavam o poder em benefício próprio, a lei não competia a ele, ficando, dessa forma, comprometida a obediência da lei somente a uma das partes.

Observa Rousseau, porém, que o fato dos magistrados serem escolhidos pela riqueza ou crédito como também pela elevação do poder e pela virtude, incentiva ainda mais a competitividade entre os homens, pois: “... tornando todos os homens concorrentes, rivais, ou melhor, inimigos, cotidianamente determina desgraças, acontecimentos e catástrofes de toda espécie, fazendo com que tantos pretendentes entrem num mesmo combate” (ROUSSEAU, 1978, p. 278).

Com essa situação, surge o despotismo, que é legitimador de uma posse ilegal. Este, aos poucos, vai destruindo o que existia de bom e de sadio em todas as partes do Estado. Pois, o primeiro passo do despotismo seria esmagar as leis e, conseqüentemente, o povo. Dessa forma, não existiriam nem chefes e nem leis, mas, sim, tiranos. Não existindo mais probidade e nem dever a consultar, só restava aos escravos a obediência sem limites. Esse terceiro e último grau da desigualdade, composto por senhores sem regras e sem freios e por escravos, tem como conseqüência a transformação do poder legítimo em poder arbitrário. Eis, portanto, o motivo pelo qual o despotismo fecha o círculo da evolução do progresso da desigualdade. Rousseau mostra-se insatisfeito com relação a essas modificações ocorridas no espírito humano que: “... deteriorando a espécie, torna mau um ser ao transformá-lo em ser social e, partindo de tão longe, trazer enfim o homem e o mundo ao ponto em que o conhecemos” (ROUSSEAU, 1978, p. 280).

É nesse quadro de degradação dos costumes, de ausência de liberdade, em que a desigualdade chegou ao seu ponto máximo, que se pode observar os progressos sofridos pelo homem, dentro dessa perspectiva de uma história do declínio.

Para Rousseau, a história possui uma função exemplar que é a de conhecer a natureza humana – sua natureza –, daí resultaria lições para a vida. Talvez, esse teria sido o motivo da ligação que Jean-Jacques faz da História Moderna com a Antiguidade Clássica:

os exemplos de virtude moral e cívica que povoam seus mais diversos textos são sempre tirados da Antiguidade. Suas referências à virtude cívica espartana e aos valores cívicos dos romanos (...) A crítica de fontes que toma novo impulso possibilita ao historiador atender a uma exigência fundamental na opinião de Rousseau, que é a da fidelidade ou do realismo do relato. Enfim, o caráter nacionalista e patriótico da história moderna e a percepção da história como processo de declínio são, como sabemos, temas caros ao pensamento de Rousseau (SOUZA, 2001, p. 55).

Os discursos de Rousseau mostram de forma muito clara que o trajeto percorrido pelo homem é o da degeneração. “A história dos homens é a história da queda” (SOUZA, 2001, p. 71). O filósofo exemplifica isso muito bem, falando das transformações das instituições, das nações que decaíram na mesma proporção que as ciências e as artes, ou seja, tudo que já se pode perceber e constatar nos seus discursos políticos – os momentos do paraíso e do pecado e a carência de uma redenção –, sintetizados aqui.

Os temas da história do homem como caminho de degeneração e, enfraquecimento; as transformações pelo qual os governos legítimos passaram para governos arbitrários, ou seja, o surgimento do despotismo, e, também, a perfectibilidade que acaba sendo um processo de desnaturação, “... parece que a concepção da história em Rousseau é marcada pela idéia de uma trajetória linear de decadência e corrupção progressivas, tanto do ponto de vista das transformações pelas quais passa a alma humana, quanto do ponto de vista de suas instituições” (SOUZA, 2001, p. 75).

A essa perdição que se chega nos discursos e no pensamento de Jean-Jacques, talvez não se possa mesmo chamar de progresso, se o entendemos no sentido de avanço, de melhoras. Mas, há realmente um progresso, segundo o próprio Rousseau. Porém, com esse “progresso das coisas”, há, também, a queda do homem e das instituições. Rousseau estaria na contracorrente de sua época, pois, mesmo ele sendo herdeiro de uma longa tradição, quando ele elabora o percurso do declínio, o faz integrando a noção de progresso e também uma avaliação do conteúdo deste conceito.

Dessa forma, o que realmente se pode perceber é que ao criticar o progresso, ao traçar o caminho de um antiprogresso, a grande perspectivade Jean-Jacques Rousseau é diagnosticar o seu século, assinalando a crise moral e social pela qual a sua época passava. “Se o homem continua a sofrer os males, é porque o próprio homem os engendrou, contra as suas próprias disposições naturais. A desigualdade, a tirania, o mundo das aparências são a prova de que o homem está comprometido com uma história que ele mesmo forjou” (SOUZA, 2001, p. 79).

 Mesmo a idéia de progresso, para Rousseau, desembocando numa idéia de antiprogresso, há também, me parece, uma possibilidade afirmativa para o autor no que se refere ao progresso. Seria uma possibilidade de reversão desse quadro? Até que ponto se pode recuperar as perdas ocasionadas pelo progresso?

Tanto no plano individual, como no social, Rousseau nos convida a pensar nessas possibilidades, por intermédio do Emílio e, também, pelo Contrato Social. No Emílio, Jean-Jacques, depois de esboçar todo o processo educacional que o Emílio passaria, dá a entender que seu aluno mereceria viver num outro século, ou seja, sua proposta educacional é incompatível com a situação vigente de degradação dos costumes, de ausência de liberdade e de crescimento da desigualdade. Mas há uma ‘fresta na janela’. Quem sabe, num século futuro. Também no Contrato Social, momento em que tudo já parecia irremediavelmente perdido, há, talvez, uma última chance, pois o autor aponta uma possibilidade.

... a exemplo de algumas doenças transtornam a cabeça dos homens e lhes arrancam a recordação do passado, não haja certas vezes, no decurso da vida dos Estados, épocas violentas nas quais as revoluções ocasionam nos povos o que algumas crises determinam nos indivíduos, fazendo com que o horror do passado substitua o esquecimento – o Estado, abrasado por guerras civis, por assim dizer renasce das cinzas e retoma o vigor da juventude, escapando aos braços da morte (ROUSSEAU, 1978, p. 61).

Portanto, a crise que se tenha ‘alcançado’, através do progresso, poderia ser a condição de possibilidade para o retorno a uma origem do que era bom; não retornando ao estado de natureza, até porque, a esse estado, nem Jean-Jacques Rousseau considerava possível. Segundo Milton Meira do Nascimento (1990), a reversão desse quadro a que se chegou, não se inscreve no curso normal dos acontecimentos. “Talvez, por isso mesmo, os revolucionários de 1789, na França, ao elegerem Rousseau como patrono da Revolução, acreditavam estar vivendo esse momento de delírio, ou de sonho, de recuperação mesmo da vida diante da morte iminente” (NASCIMENTO, 1990, p. 10).

A crise que o homem chegou, ‘alavancada’ pelo ‘desempenho’ do ‘progresso’, pode possibilitar, também, uma crise interna no homem, e isso de alguma forma provoca em Rousseau uma Revolução. Lima Vaz (1991, p. 182) nos diz que a crise da civilização pode ser observada e constatada por uma tarefa de ‘desconstrução’ da idéia de homem e, também, da sua (nossa) história e, Jean-Jacques Rousseau, realmente é, o obreiro, provavelmente, mais genial dessa desconstrução, cuja obra pode ser considerada a fonte principal.

                                                                     Luciano da Silva Façanha

 Doutorando em Filosofia, PUC/SP

 

BIBLIOGRAFIA:

 

NASCIMENTO, Milton Meira do. Prefácio. In: Rousseau: a educação na infância. CERIZARA, Beatriz. São Paulo: Scipione, 1990.

 

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social; Discurso sobre a origem e os

fundamentos da desigualdade entre os homens; Discurso sobre as ciências e as artes. Tradução: Lourdes Santos Machado. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

 

SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e história: o pensamento sobre a história

no Iluminismo francês. São Paulo: Discurso Editorial. 2001.

 

STAROBIBNSKI, Jean. A transparência e o obstáculo: seguido de sete ensaios

sobre Rousseau. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

 

VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991.

 

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