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De-struição da história da ética: sentido e método

O objetivo neste artigo é apresentar brevemente o que Enrique Dussel pretendia quanto escreveu Para una de-strucción de la história de la ética, publicado em 1972, numa época em que o próprio autor reconhece que ainda queria estabelecer uma ética universal ontológica. Embora tenha renunciado posteriormente ao projeto ontológico, pela sua própria impossibilidade lógica, manteve o intento de alcançar uma ética universal, sem abandonar a forma de-strutiva de sua análise, como se evidencia em seu último livro Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão.

É necessária uma precisa compreensão do termo de-struição, empregado por Enrique Dussel, para definir a natureza de sua crítica à filosofia tradicional, assim como do método por ele adotado.

O sentido do termo de-struição foi inspirado notadamente nas palavras de Martin Heidegger, o qual é citado por Dussel:

De-struição não significa aniquilar, mas desarticular, separar e pôr de lado... De-struição quer dizer: abrir nosso ouvido, libertá-lo para aquilo que na tradição se nos coloca como ser do ente (pág. 6).

Assim, já percebemos que o termo de-struição carrega a idéia de uma análise rigorosa de seu objeto, a Ética em sua História, com a liberdade de não se restringir às significações já estabelecidas tradicionalmente. Não é intenção, por conseguinte, arruinar, desprezar, aniquilar os sistemas éticos conhecidos ao longo história:

A de-struição significa um desarmar o dito pelos filósofos a partir de seus pressupostos não pensados, e por isso mesmo não ditos (contracapa).

Nessas palavras podemos verificar o sentido preciso do termo de-struição, qual seja, o de desmontar os argumentos filosóficos tradicionais mediante a indicação de fundamentos anteriormente não explicitados pelos filósofos que pensaram a ética. A intenção é historiográfica, mas de cunho filosófico. Podemos assim também afirmar, sem dúvida, que a Filosofia da Libertação exige de antemão a libertação da Filosofia

Etimologicamente o termo vem do latim struere, o qual significa “edificar, fabricar, preparar, aparelhar, ordenar, arranjar, traçar, idear, dispor, acrescentar, aumentar, tecer etc”, acrescido do prefixo de, o qual possui o propósito de negação ou privação. Destarte, de-struir significa des-fazer, des-atar, des-montar,visando à re-construção da Ética, como Filosofia, desde sua História, tendo em vista uma Ética de conteúdo material universal, que vá além dos limites espaço-temporais estabelecidos pela história.

Assim, assumindo o emprego etimológico e filosófico do termo, Dussel o emprega como sinônimo de crítica. Porém, não podemos nos esquecer de que Dussel, justamente ao desmontar o sistema vigente desde a Grécia Antiga, projeta uma nova Ética, uma nova Filosofia, atribuindo ao homem papel fundante na História. Assim, é inevitável a de-struição também no tocante ao período moderno e contemporâneo. Essa é uma das primeiras des-articulações, uma releitura do papel cabente ao homem na história.

Quando Dussel propõe a de-struição da História da Ética, na verdade, está pretendendo a de-struição da própria Ética, a Ética sendo sempre histórica, visto que o homem é um ser pela história e não apenas um ser na história. O homem faz a história e se faz pela história. A história se verifica, se faz verdade no ser do homem. A historicidade é condição do homem, sua temporalidade. Essa indicação é importante, vez que muito comumente se fala da história como algo exterior ao homem, algo de que o homem faz parte, quando, na verdade,

não é que o homem seja histórico porque está na história. O homem é histórico, porque a historicidade não é senão um modo de viver a temporalidade inerente à essência do homem (pág. 7).

Para realizar um trabalho autêntico, é preciso libertar-se dos sistemas construídos ao longo do tempo e, então, estabelecer livre e historicamente o homem em seu papel fundamental: ser ético.

“Des-atar os nós” da história da ética é mais do que simplesmente analisar os sistemas passados ou presentes. Assim, Dussel faz divisão da história da Ética analisando de-strutivamente cada um dos sistemas estabelecidos desde a Grécia antiga, ao apontar os limites histórico-concretos que pautaram o pensamento de autores como Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant e Hegel, entre outros.

Por outro lado, a de-struição da história da ética não é apenas uma análise do passado, mas, a partir do passado, liberto de seus dogmas, é sobretudo uma busca do ser presente livre:

A de-struição da história não é senão a atitude apropriada pela qual se reconquista, contra a en-cobridora interpretação vulgar da história, o sentido esquecido que foi instaurado pelos grandes gênios culturais do passado; isto é, desde onde esses homens eram-no-mundo. A historicidade autêntica é concomitante à tarefa de-strutiva, e somente começa quando alguém des-cobre que seu acontecer é histórico, porque, livre, e deixa manifestar-se às coisas (pág. 7).

Dussel propõe construir a Ética da Libertação a partir do modelo passado de-struído. Antes, “esses homens eram-no-mundo” (“os grandes gênios culturais do passado”). Agora, a Ética “somente começa quando alguém des-cobre que seu acontecer é histórico, porque livre, e deixa manifestar-se às coisas”.

Fica claro, portanto, que a HistóriadaÉtica para Dussel deve ser entendida como a manifestação da própria ética. Mas qual a sua acepção de ética?

A Ética não deve ser vista apenas como conjunto de normas morais vigentes em algum tempo ou espaço. Muitas discussões existem ainda, na filosofia, sobre o conceito de Ética e de Moral. Muitos afirmam mesmo não haver diferenças ou confundem um com o outro. Para Dussel, contudo, é imperioso notar a distinção, vez que propõe uma Ética Perennis, isto é, uma ética duradoura e imutável ao longo do tempo e do espaço. Logo, não pode estar se referindo à moral, a qual todos sabemos é vigente em função de determinados grupos e determinadas épocas.

Lembre-se que o termo “ethos” é transliteração dos dois vocábulos gregos: êthos (com éta inicial) e éthos (com épsilon inicial). E, conforme explica também Dussel, o primeiro vocábulo refere-se à morada habitual, enquanto o segundo refere-se ao agir habitual. Em ambos os sentidos, entretanto, não se compreende o sentido dusseliano de ética, qual seja, o momento temático ou explícito daquilo que já foi vivido no aspecto do éthos. É o princípio que norteia o comportamento humano e não se refere ao hábito particular nem ao coletivo. É o oráculo que em Delfos foi proferido pela sacerdotisa a Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”.

Todavia, esse ainda não é o sentido filosófico do termo, porquanto se refere notadamente ao sentido comum. A reflexão metódica sobre essa ética, científica diz Dussel, resulta na ética filosófica, a qual surge na Grécia, sem dúvida. Porém, essa ética filosófica que se prolongou no tempo e no espaço, de diversos modos, não é a ética buscada pelo nosso autor, posto que, embora já traga em si a intenção de universalidade e o sentido destrutivo, essas reflexões sempre tiveram seu fundamento na realidade particular dos vários grupos dominantes ao longo da história.

A ética pretendida por Dussel é a ética destrutiva dessas éticas filosóficas. É o pensar crítico dos sistemas estabelecidos.

As éticas grega, cristã ou moderna sempre foram críticas, é verdade, mas nunca se libertaram dos aspectos contingentes que as sustentaram. Evidentemente, Aristóteles e outros filósofos mais recentes, por certo pretenderam estabelecer uma ética universal. Incorreram, entretanto, no equívoco intransponível de se pautarem apenas pelo mundo que os cercava. Somente no século XX, depois de ter passado por vários sistemas, em plena globalização, o homem alcançou a condição suficiente para estabelecer uma Ética Universal, mediante radicalização suficientemente crítica e ampla. Essa é a tarefa do filósofo da libertação: De-struir a História da ética ocidental e, concomitantemente, con-struir uma ética Universal, descobrindo, para isso, os fundamentos das éticas filosóficas passadas e despojando-se do que há de particular em cada uma delas. Assim, surgirá a ethica perennis:

Nestas duas últimas partes temo-nos detido menos, ainda que tenhamos escrito mais, para mostrar tudo o que há de positivo para uma con-strução da ética ontológica, tão rica em análises positivas para uma ethica perennis, que deverá igualmente contar com os aportes dos tempos modernos (DHE 155).

Nossa tarefa é descobrir o fundamento e os grandes temas da ética ontológica entre os muitos mais numerosos temas acerca dos quais tratam as éticas filosóficas tradicionais... É necessário deixar o grego das éticas gregas, o cristão das éticas cristãs, o moderno das éticas modernas, e ante nossos olhos aparecerá uma antiga e sempre fundante ethica perennis a qual é necessário hoje descobrir, pensar, expor (DHE 10).

Ao filósofo da libertação, concluímos, concerne conhecer, des-montar, analisar, excluir o particular, reunir o que é comum a todos os sistemas e então fazer uma reflexão crítica com o intuito de encontrar uma Ética de validade universal.

Enrique Dussel, ao pretender descobrir uma éthica perennis, voltou-se para a ética ontológica. No entanto, como bem nos alerta o professor Eliseu Cintra, como poderia Dussel

visar a uma “ética universal, ethica perennis ou ética ontológica fundamental”, se também, nessa tarefa posterior, honestamente seu “pensar filosófico” tem “como ponto de partida a finitude”? A “finitude”, como ponto de partida necessário de todo “pensar filosófico” é a própria impossibilidade da “ética universal, ethica perennis ou ética ontológica fundamental”.

A solução encontrada por Dussel surgiu pouco tempo depois de ter escrito “Para una de-strucción de la historia de la ética”, a partir seu encontro com Emmanuel Lévinas, cujo pensamento ganhou fundamental importância na obra dusseliana. O segundo tomo prometido naquela obra deu lugar, pois, à sua grande obra filosófica, “Para uma ética da libertação latino-americana”, editada em cinco volumes. Nesse texto, Dussel reconhece, ainda que implicitamente, a existência do referido paradoxo:

O segundo momento, em verdade o terceiro (já que o primeiro é ôntico-ontológico dialético; o segundo, ontológico-ôntico dedutivo), é o salto meta-físico ao Outro. Este método meta-físico nos permitirá expor uma filosofia latino-americana ... Este método parte de Lévinas, embora vá além e o escrevemos depois de uma nova estada na Europa em 1972... (ELLA, II, 155)

Assim fica creditado ao filósofo judeu-lituano-francês o momento epifano-filosófico, podemos dizer de amadurecimento, do pensamento filosófico de Enrique Dussel.A partir daí, abraçando a tese levinasiana, exposta principalmente em “Totalidade e Infinito”, Dussel reformulou o seu paradigma sobre ética e, sem abandonar a idéia de estabelecer uma ética de validade universal, libertou-se da ontologia heideggeriana e voltou-se para a ética metafísica da alteridade, com fundamento no pensamento de Lévinas, o qual, sem dúvida, foi ainda a grande indicação teórico-filosófica para os ideais dusselianos.

Destarte, fundado ultimamente em Lévinas, ainda que com algumas divergências, Dussel firmou-se em sua reflexão filosófica, estabelecendo, para isso, de início, o método para a de-struição da ética ocidental, ou o método para a Filosofia da Libertação, como veremos a seguir.

Em face da nova proposta filosófica de Lévinas, Dussel consegue desvencilhar-se do paradoxo em que se encontrava e estabelece o método Ana-lético, concluindo que o homem, ou mais precisamente o outro é o ponto fundamental a ser pensado, e o método dia-lético, restrito à totalidade hermética, em que o outro faz parte do mesmo mundo do Eu, não satisfaz à necessidade da razão humana. Isso porque a dialética consiste no raciocínio argumentativo que vai dos entes ao fundamento e do fundamento aos entes, encerrando-se numa totalidade em que a dis-tinção do outro é esquecida.

Lévinas mostrou bem que o outro não faz parte do meu mundo e, logo, não faz parte dessa totalidade dialética, concluindo que se exige a consideração do outro como fundamental para a realização da justiça.

Dussel, então, atento a essa questão estabeleceu o que denominou o método Ana-dia-lético, isto é, o método que vai além da dialética, ou precisamente, o método que parte do outro como fundamento.

O método do qual queremos falar é Ana-lético, vai mais além, acima, vem de um nível mais alto (ana-) que o do mero método dia-lético ... Agora se trata de um método (ou do explícito domínio das condições de possibilidade) que parte do Outro como livre, com um além do sistema da Totalidade; que parte então de sua palavra, da Revelação do Outro e que con-fiando em sua palavra age, trabalha, serve, cria. (ELLA, II, 200)

Por isso, tratando-se de um método que parte do outro, considerando-o como além da Totalidade, não reduzido à compreensão do Eu, e, portanto, livre e distinto, o método analético é intrinsecamente ético e não apenas teórico ou ôntico ou ontológico.

E essa característica significa que o filósofo deve ser, desde o início ético, o que implica em ser um servidor do Outro, ou mais precisamente, um servidor da liberdade do Outro.

O método ana-lético inclui então uma opção prática histórica prévia. O filósofo, aquele que quer pensar metodicamente, deve já ser um “servidor” comprometido na libertação. (ELLA, II, 203).

 

Luiz Meirelles

Mestrando em Filosofia – PUC/SP

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