cefslogo

O educar como condição para o pensar em Hannah Arendt

Adenaide Amorim Lima
Doutoranda em Filosofia (UFSM). Bolsista CAPES

Este texto aborda a relação entre o educar e o pensar na obra de Hannah Arendt. Partimos do pressuposto que a atividade do pensar requer a relação com o outro em alguma medida. É nesta relação que ocorre um processo educativo, no sentido amplo do termo. Isso não quer dizer que o pensar possa ser ensinado; pensar é uma capacidade inerente a todo ser humano. A questão é que, segundo Arendt (1987, p. 71): “O indivíduo por si mesmo não pode ser pensante” e que: “O pensamento precisa do discurso para ser ativado” (ARENDT, 2010, p. 142).Nesse sentido, no pensar há uma necessidade de algo para desencadeá-lo,uma experiência ou um discurso. No primeiro caso, exige-se uma consciência sempre desperta, no segundo, pressupõe a existência de um outro capaz de desencadear esse processo.


Esse outro deve ser capaz de ativar um processo no qual coloque as ideias do seu interlocutor em movimento e mantém a sua consciência atualizada. Arendt escolhe Sócrates, como modelo ou tipo de ideal desse outro capaz de despertar as consciências adormecidas, por várias razões. Sócrates não teria sido um tipo comum de filósofo profissional, na concepção arendtiana. Ele não deixou nenhum sistema filosófico ou doutrina. Sócrates foi um cidadão e pensador“comum”, que cultivou um modelo de vida pública passível de ser imitado. Ele soube conciliar o pensar e o agir, exercendo, confortavelmente, as duas atividades. Sócrates foi aquele que primeiro valorizou a igual pluralidade humana como fato ontológico fundamental.
Na praça do mercado, ele dialogava com todos, sem nenhuma distinção.“Sócrates parece ter sabido reconhecer que nós somos todos diferentes e todos iguais: ele dialogava com artesãos, poetas, escravos, e a todos considerava muito dignos para filosofar” (VALLÉE, 1999, p. 28). Ele agia assim porque possuía um amor genuíno tanto pela cidade quanto pelo pensamento crítico. Ele não tinha pretensões de ascender a nenhum cargo público, governar homens ou aconselhar aqueles que assim o faziam. Sócrates nunca foi um cidadão passivo, nunca abandonou a praça pública e nem se deixou submeter à dominação alheia, e nunca quis para si nada além daquilo que todo cidadão deveria querer e ter. Ele ocupava, com equilíbrio, tanto a posição de espectador quanto a de ator implicado.
Sócrates também é exemplo daquele que possui uma consciência sempre desperta, pronta para examinar qualquer assunto a qualquer hora, em qualquer lugar e por tanto tempo quanto fosse necessário. Um bom exemplo disso está em uma passagem do diálogo O banquete, escrito por Platão, em que Alcibíades, como elogio a Sócrates, se lembra de um episódio ocorrido durante a campanha militar de Potidéia na qual Sócrates e Alcibíades participaram como soldados. Segundo Alcibíades, Sócrates se destacou porque, além de sua virtude e caráter, não se deixou influenciar pelos desejos comuns como o cansaço ou as necessidades do corpo; além de suportar privações durante a campanha, ele ainda encontrava tempo para se dedicar ao pensamento profundo, alheio ao ambiente militar ao seu redor.
A questão é que uma consciência desperta, a exemplo de Sócrates, não precisa de algo ou de alguém para pôr em exercício a atividade do pensamento. Arendt atribui a Sócrates a descoberta da essência do pensamento, o diálogo dois-em-um, e que Platão teria traduzido como o diálogo sem som. Desse modo, ao pensar, Sócrates ou qualquer outra pessoa deve estar só, uma vez que se retira do mundo das aparências. No entanto, esse estar só não quer dizer estar solitário: “[...] estar só é a situação em que me faço companhia. A solidão ocorre quando estou sozinho, mas incapaz de dividir-me no dois-em-um, incapaz de fazer-me companhia” (ARENDT, 2010, p. 207). Mais do que estar sempre em diálogo com esse outro invisível, é fundamental não o desagradar. Coisa que Sócrates prezou durante a sua existência.
Sócrates afirma que é melhor sofrer o mal do que cometê-lo, ele defende a ideia de que cometer uma injustiça é pior para a alma do que sofrer uma injustiça, porque o mal causado ao outro corrompe o caráter de quem o pratica. Desse preceito socrático, Arendt interpreta que Sócrates diz isso não da perspectiva de um cidadão, uma vez que o pensamento comum na Grécia clássica, era que: “'Sofrer o mal não é digno de um homem, mas de um escravo, para quem é melhor morrer do que viver'” (ARENDT, 2010, p. 203). Mas Sócrates assume a perspectiva de um pensador quando diz: “[...] 'seria pior para mim estar em desacordo comigo mesmo do que [em acordo] com multidões inteiras'” (ARENDT, 2010, p. 203).
Arendt argumenta que, ao apresentarmo-nos ao mundo, pouco conscientes de nós mesmos, somos vistos como um, e somos realmente singulares, uma vez que os outros nos dão uma identidade. Mas também somos plurais: “[...] a pluralidade significa que cada ser humano é outro de todo o outro” (VALLÉE, 1999, p. 27). Quando estamos com a nossa consciência desperta, não somos apenas para os outros (singulares e plurais), somos também para nós mesmos. Isso quer dizer que, quando pensamos, estabelecemos relações com a outridade, com a consciência coletiva que há em nós. A consciência não é somente uma espectadora, mas também uma testemunha de tudo que fazemos. Por essa razão, Sócrates teria preferido estar em desacordo com o mundo inteiro do que consigo mesmo.
Arendt afirma que, dialogar consigo mesmo não é apenas ser dois, mas ser também vários outros, pois o interlocutor interno com o qual se dialoga faz valer o ponto de vista de vários outro sem que encontramos acordo e desacordo. Segundo Arendt, o diálogo interioriza uma pluralidade de perspectivas, e essa pluralidade se introduz na solidão. Por essa razão, o pensar está intimamente relacionado com o mundo e com o outro. Aquele que não vivencia as experiências do mundo e não estabelece relações significativas com o outro, não tem razões para se retirar do mundo, pois não tem sobre o que refletir. Portanto, o diálogo dois-em-um não perde o contato nem com o mundo e nem com os nossos semelhantes.
Eichmann–tenente-coronel nazista, condenado em 1962, cujo julgamento Arendt assistiu e sobre o qual publicou um livro–é exemplo de alguém cuja consciência está adormecida. Arendt conta que Eichmann, após visitar um campo de extermínio e deparar-se com a experiência da crueldade nazista,limitou-se a pedir aos seus superiores que o poupassem, no futuro, de tais visitas.Para Vallée (1999), Eichmann possuía uma consciência defensiva, recusando-se, voluntariamente, a falar, a pensar e a julgar. Logo, a banalidade do mal é uma falha do indivíduo que não pensa. Sem pensamento, não há consciência moral. Porém, essa falha não tem desculpa, uma vez que ela não é congênita, mas uma escolha. Eichmann escolheu silenciar a sua testemunha interior.
Partimos do pressuposto de que, em casos como o de Eichmann, que não consegue colocar o pensamento em movimento, mesmo diante de experiências aterradoras e perplexas com as quais se deparou, somente um outro com características semelhantes àquelas de um Sócrates –um pensador genuíno, preocupado com o outro–deve despertar uma consciência adormecida, evitar o mal banal e, ao mesmo tempo,evitar a degradação do espaço público. Sócrates não estava preocupado em expor verdades, sua criticidade estava além das verdades,das leis e de sua obediência. Para ele, o que importava era o próprio exercício da reflexão, mesmo que essa reflexão colocasse abaixo as estruturas e os preconceitosque sustentavam o outro (seu interlocutor) e instituísse-lhe o caos.
O método socrático de pensar com, a partir do diálogo, educa ao retiraro outro de uma espécie de consciência dogmática com uma simples, mas incisiva pergunta.Nesse processo, os conceitos que tomamos como certos são destruídos e seu significado atualizado ao levar seu interlocutora buscaroque ainda não sabe, mesmo que esteja oculto no que julgamos conhecer. O questionamento socrático começa com aperplexidade que leva aoespantoque leva àperplexidade novamente, uma vez que o espanto original não é resolvido, mas continua sem resposta.Mesmo que os diálogos sejam aporéticos,Arendt se admira com o bom senso: “Não é maravilhoso que os homens possam executar atos corajosos ou justos, mesmo que não conheçam e não possam explicar o que são coragem e justiça” (ARENDT, 2010, p. 188).
Mas, a ausência de respostas ao seu interlocutor, recém-retirado da sua zona de conforto e a esterilidade do pensamento socrático que não chega a lugar algum, ocorre porque muitas vezes, de fato,Sócrates não sabe a resposta.Para ele, o que importa é o exercício do pensamento crítico e não as verdades. O objetivo de Sócrates é promover um espaço comum de compreensão, o bom senso. Por essa razão ele reclama para si o “[...] direito de examinar as opiniões alheias, pensar sobre elas e pedir a seus interlocutores que fizessem o mesmo” (ARENDT, 2010, p. 190). Assim, ele busca nutrir a autonomia intelectual e moral do outro, ajudando-o a desenvolver o pensamento crítico e a capacidade para julgar por si próprio, uma vez que ele não estabelece regras e nem critérios para este julgamento.
Para Vallée (1999, p. 40): “[...] o pensamento educa o juízo”, nesse sentido Sócrates se caracteriza como um educador, porém um educador peculiar, pois não transmite conhecimento ou algo do tipo, mas sua abordagem é sim educativa, no sentido de orientar àqueles que com ele dialoga a seguir uma conduta reflexiva e questionadora. Mais ou menos o que se espera hoje em dia do ensino de filosofia, por exemplo. Mesmo que não seja possível ensinar ou aprender a pensar, segundo Arendt (2010, p. 193), “[...] diz-se que Sócrates acreditava que a virtude pudesse ser ensinada. E parece que ele realmente achava que falar e pensar sobre a piedade, a justiça, a coragem e coisas do gênero poderiam tornar os homens mais pios, justos e corajosos”. No entanto, ele não ensinou nada disso, exceto pelo exemplo.
Por despertar a consciência adormecida dos seus concidadãos, Sócrates se compara a um mutucaporque, assim como o inseto, ele incomodava e provocava as pessoas ao desafiá-las a pensar criticamente, que sem ele continuariam a dormir pelo resto de suas vidas. Essa comparação é mencionada no Apologia de Sócrates, de Xenofonte, onde ele explica que sua missão era despertar a consciência de Atenas, assim como uma mutuca que perturba um cavalo adormecido. Sócrates via seu papel como essencial para estimular o debate e questionar os valores, as crenças e os comportamentos estabelecidos, mesmo que isso fosse desconfortável ou mesmo irritante para os atenienses.Com o espanto das questões sem respostas que levam à perplexidade, Sócrates é comparado à arraia-elétrica (ou torpedo).
Essa comparação se dá pelo fato de Sócrates possuir um efeito paralisante sobre as pessoas com quem dialoga, deixando-as confusas e incapazes de continuar o debate. Esse efeito paralisante não é um fim em si mesmo, mas uma estratégia para forçar as pessoas a refletirem profundamente sobre suas crenças e o conhecimento que julgavam possuir. “[...] aquilo que do lado de fora é visto como paralisia – do ponto de vista dos negócios humanos comuns – é sentido como o mais alto grau de atividade de vida” (ARENDT, 2010, p. 195). Na verdade, segundo Arendt (2010, p. 194): “Esta é, evidentemente, a expressão concisa do único modo como o pensamento pode ser ensinado – embora Sócrates, como repetidamente dizia, não ensinasse nada, pela simples razão de que nada tinha a ensinar”.
NoTeeteto, ele é comparado a uma parteira.As parteiras são estéreis por já serem idosas, mas possuem habilidades necessárias para trazer ao mundo as crianças. Assim, Sócrates, por meio da maiêutica– o método que consiste em ajudar as pessoas a alcançarem o conhecimento por meio do diálogo e da reflexão –,procurava dar à luz ao conhecimento que as pessoas já possuíam, mesmo que inconscientemente. Em vez de fornecer respostas prontas, Sócrates guiava seus interlocutores por meio de perguntas para que eles próprios chegassem a conclusões. Mesmo que, segundo Arendt (2010), Sócrates sempre considerou as respostas de seus interlocutores como natimortos. No entanto, o pensamento é dialético e crítico devido às perguntas e as respostas.
Apesar de Sócrates não ensinar nenhum conteúdo aos seus interlocutores, isso não quer dizer que não havia propósito em seu método de abordar os outros. E qual seria esse propósito? Despertar esse outro para o pensamento crítico, fundado na experiência.Um tipo de pensamento modesto, porém, não dogmático. Sócrates se ocupava dos outros para que eles pudessem viver uma vida que de fato valesse a pena servivida; do contrário, essas pessoas permaneceriam na ignorância pelo resto de suas vidas. Isso não quer dizer que o exercício do pensamento torne uma pessoa sábia. O pensamento apenas desperta e isso é um bem para a cidade, e “[...] pensar e estar completamente vivo são o mesmo, e isso implica que o pensamento tem sempre que começar de novo” (ARENDT, 2010, p. 200), continuamente.
Para Arendt, pensar e compreender trazem poucos benefícios e, até mesmo, alguns malefícios para a cidade. Um dos efeitos negativos é que o pensamento possui um efeito destrutivo e corrosivo sobre os valores, critérios, costumes e padrões estabelecidos, etc. Ele é capaz de inverter a ordem das coisas, desestabilizar o mundo e não colocar nada novo no lugar. Desse modo, ele torna-se algo perigoso para todas as crenças.“Seu impacto mais perigoso do ponto de vista do senso comum é que o que era significativo durante a atividade do pensamento dissolve-se no momento em que tenta aplicá-lo à vida de todos os dias” (ARENDT, 2010, p. 1999), quando a vida ordinária se apropria dos conceitos. Mas isso não quer dizer que há pensamentos perigosos, mas que o perigo reside na própria atividade.
No entanto, os benefícios do pensar superam os riscos. Como categoria política que diz respeito a todos, comoum bom senso, o pensarse direciona para onde aponta as aparências, correspondendo aos desdobramentos do agir.Assim, o pensar não tem que ser original, mas um constante repensar, sempreocupação de se adequar ao mundo, mas de se reconciliar com ele, mesmo que,provisoriamente, por meio da compreensão. Compreender,dom do pensamento, tem como resultado o significado e a libertação do juízo. Porém, reconciliar-se com o mundo nãosignifica perdoá-lo. Perdoar tenta alcançar o aparentemente impossível e desfazer o que foi feito,“[...] é uma ação única que culmina em um ato único” (ARENDT, 1993, p. 39). A compreensão, por sua vez, é interminável, não produz resultados.
Mas, principalmente, o pensar é a possibilidade de impedir que os seres humanos cometam o mal banal. Pois pensar também é tomar decisões, assumir posicionamentos. Como ação política,o pensar gera poder, quando alguém, em uma situação de pressão,se recusaa entrar em discordância consigo mesmo. No texto O vigário: culpa pelo silêncio?, Arendt menciona o caso de dois homens que se recusaram a servir na guerra por causa da sua fé cristã e, por conta disso foram executados.A questão é que antes da execução lhes foram negados os sacramentos, pelas autoridades da igreja. Mencionamos esse caso para exemplificar que muitas vezes, estar em harmonia consigo mesmo, ir contra a manada e, inclusive, contra a autoridade, pode ter um custo alto.
Mas, quem não possui o hábito do diálogo consigo mesmo não se importa em contradizer-se, de ignorar os apelos da sua consciência e deixar-se levar, impensadamente, pelo fluxo dos acontecimentos. Arendt (2010, p. 211), diz que: “É característico das 'pessoas moralmente baixas' estarem 'em discordância consigo mesmas' [...] e dos homens maus evitar a própria companhia; sua alma se rebela contra si mesma”. Se apoiar e obedecer, para Arendt, são a mesma coisa no âmbito político. Por isso, é importante compreendermos que o espaço público está relacionado ao âmbito espiritual, na medida em que é o espaço onde a vida humana adquire significado ao transcender as meras preocupações materiais e privadas, onde os encontros com o outro são sempre prenúncios de novos começos, novas perspectivas.
Diante do que aqui foi exposto, reafirmamos que o educar, a exemplo de Sócrates, é uma dimensão fundamental para o pensar. Arendt vê no diálogo de Sócrates a capacidade de provocar perplexidade e espanto, levando seus interlocutores a reavaliarem suas certezas. Mesmo que o pensamento socrático não chegue a conclusões definitivas, Arendt valoriza essa movimentação constante do pensamento, que destrói certezas pré-estabelecidas e evita dogmatismos, mantendo o pensamento sempre vivo e ativo, uma vez que a ausência de reflexão é sempre perigosa, cujo resultado pode ser a aceitação cega de normas e regras. Assim, o pensamento, mesmo sem respostas definitivas ou conclusões concretas, se mantém como um processo essencial para a preservação da autonomia moral, da vida política e da liberdade.

Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
______. Dignidade na política: ensaios e conferências.6 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
______.Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
______. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
PLATÃO.O banquete. 3ed. Belém: Ufpa, 2011. [Bilingue].
______. Teeteto. 4 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2015.
VALLÉE, Catherine. Hannah Arendt: Sócrates e a questão do totalitarismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
XENOFONTE. Banquete Apologia de Sócrates. São Paulo: Annablume; Coimbra: CECH, 2008.