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BERKELEY E A REFUTAÇÃO ÀS IDEIAS ABSTRATAS

 Caique Marra de Melo

 Este artigo tem por objetivo averiguar argumentos de refutação às ideias abstratas, provenientes de determinado mau uso da linguagem, segundo Berkeley.

A linguagem, ocupando um papel de peculiar importância na filosofia berkeleyniana, encontra-se dotada de uma pluralidade a se estender desde seu exercício vulgar até o estrito rigor filosófico, visando o deleite de sua instrumentalização a proporcionar a máxima akribéia.

Tal fator de atenção à linguagem é explicitado por Berkeley logo em seu prefácio aos Princípios: “se não tomarmos o cuidado de livrar os primeiros princípios do conhecimento das dificuldades e do engano das palavras, poderemos fazer infinitos raciocínios sobre eles em vão; poderemos tirar consequências de consequências e nunca avançar no saber” (BERKELEY, 2008, p. 56).

Esta preocupação com a linguagem salvaguarda o crivo filosófico dos embustes do ceticismo, sendo, portanto, função berkeleyniana “tentar descobrir os princípios que introduziram todas essas dúvidas e incertezas, esses absurdos e contradições nas diversas seitas filosóficas, a tal ponto que os homens mais sábios chegaram a pensar que a nossa ignorância é incurável, imaginando que ela surge da fraqueza e da limitação natural das nossas faculdades” (BERKELEY, 2008, p. 56).

A linguagem, vista aos olhos do herdeiro de Miss Vanhomrigh como uma das principais fontes de equívoco na história do saber, reserva apenas ao detentor de seu bom uso a fruição das mais límpidas verdades: “Em vão estendemos nossa visão aos céus e sondamos as entranhas da terra; em vão consultamos os escritos dos homens de ciência e rastreamos os obscuros passos da Antiguidade; basta-nos retirar o véu das palavras para contemplar a mais bela árvore da ciência, cujos frutos são excelentes e estão ao alcance de nossas mãos” (BERKELEY, 2008, p. 56).

Contudo, apesar da evidente “armadilha semântica” que a linguagem possa nos legar, Berkeley nos adverte que “o uso comum da linguagem não sofrerá nenhum tipo de alteração ou perturbação em consequência da aceitação de nossos princípios” (BERKELEY, 2008, p. 90). Afinal, já salienta o pensador de Kilkenny: deve-se “pensar como os sábios e falar como os vulgos” (BERKELEY, 2008, p. 90)3. Portanto, aliada à análise dos argumentos de refutação e seus respectivos argumentos auxiliares contrários à ideia abstrata em suas duas acepções, trataremos de realizar uma perícia acerca das decorrências do uso da linguagem como forma de peneirar a possível ingestão de embustes inerentes à pseudoconcretude linguística não congruente ao teor filosófico de Berkeley, sem prescindir da constante luta por sedimentação da confiança nos sentidos trazida por esta filosofia, que, por sua vez, não visa a suplantação destes [sentidos] por falsas crenças e hipóteses; o que designa o relevante respeito de Berkeley à linguagem vulgar que não merece ser completamente rejeitada, mas necessita apenas ser desvelada em seu caráter obscuro e ineficaz à apreensão filosófica.

 

As duas acepções de abstração: separação mental de qualidades indistintas na res e possibilidade de existência de uma ideia abstrata geral

 

Desde já, podemos elucidar o deslize decorrente de um dúbio uso da linguagem: a ideia abstrata.

De imediato, Berkeley afirma a não necessidade da existência de ideias abstratas na mente para o pleno exercício das ciências – como fora feito acerca da noção de substratum material em sua não necessidade aos progressos da ciência moderna no que se refere aos princípios mecânicos (BERKELEY, 2008, cf. p. 89) –, ampliando sua contingência até torná-la ínfima e desprezível à relevância filosófica e até mesmo à sua razão de ser no uso cotidiano.

De modo a coadunar com tal pretensão, sempre em conformidade com seu empirismo não mitigado e, consequentemente, seu sensorialismo extremado, Berkeley expõe com clareza as duas acepções de abstração a serem refutadas em seus Princípios: “nego que possa abstrair algumas qualidades de outras, ou conceber separadamente as que não existem assim separadas, ou que possa formar uma noção geral mediante a abstração dos particulares” (BERKELEY, 2008, p. 40). Portanto, respectivamente, sendo estas: separação mental de qualidades indistintas na res e possibilidade de existência de uma ideia abstrata geral.

 

Refutação à primeira acepção de ideia abstrata: a impossibilidade da separação mental de qualidades indistintas na res

 

Em resposta contrária a uma parcela considerável de importantes expoentes da modernidade4, que  legaram às qualidades primárias inerência ao objeto e às qualidades secundárias inerência ao sujeito, o filósofo de Kilkenny negará a existência externa à mente tanto das ditas qualidades primárias quanto das conhecidas qualidades secundárias, propondo às duas instâncias qualitativas (primária e secundária) um caráter de inerência à mente e, portanto, de reserva à total dependência de ser enquanto percebidas, única e exclusivamente. Ou seja, estariam todas as ideias restritas, no que se refere à possibilidade de efetivação, ao ato perceptivo de ao menos um espírito (mente), ainda que este seja um Espírito Superior na condição de causa imediata e providencial de todos os entes reais, validando, deste modo, a realidade de todo e qualquer ente efetivo por intermédio de Sua onipresença e onisciência, a garantir a existência de todas as coisas a partir de Sua percepção de todas estas a cada instante.

Portanto, em tom de precaução a possíveis inferências errôneas, a condição de possibilidade do ente real não exige o absurdo de uma percepção universal simultânea, nem sequer admitiria inconcebíveis séries de desaparecimentos e reaparecimentos instântaneos à medida de minha percepção ou de qualquer outro espírito finito; pressupõe-se, desse modo, apenas a existência de um Deus ao qual toda a efetividade natural se encontra sob a mais absoluta e imediata dependência (BERKELEY, 2008, cf. p. 165).

Após sedimentar a imanência das qualidades primárias e secundárias à mente, Berkeley limita o poderio da faculdade mental à mera combinação e divisão de ideias particulares conforme o estado em que são percebidas, de modo a propor, a partir disso, a rejeição da primeira acepção de abstração, negando à razão a capacidade de conter representativamente qualidades primárias sem a inerência de qualidades secundárias. Portanto, metodologicamente, ao se utilizar da divergência ontológica entre qualidades primárias e secundárias, que alguns modernos tiveram em vista, Berkeley ousa conferir um importante passo na disseminação da impossibilidade desta primeira acepção de ideia abstrata levantada em sua obra: “Vejo com clareza que não está em meu poder formar uma ideia de um corpo extenso e em movimento a não ser que lhe atribua alguma cor ou outra qualidade sensível […]. Em resumo, extensão, figura e movimento abstraídos de todas as demais qualidades são inconcebíveis” (BERKELEY, 2008, p. 64).

Isto posto, encontramos a impossibilidade de desvinculação da ação intelectiva em relação à estrutura sensorial dada, pois aquilo que fora captado pelos sentidos sob determinada organização – no que concerne à estrutura efetiva e necessária da res – não poderá desconsolidar-se arbitrariamente numa ação volitiva; neste caso, portanto, seria impossível concebermos um corpo extenso carente de qualidade sensível ou uma cor sem subsídio de uma figura ou extensão.

 

Refutação à segunda acepção de ideia abstrata: a impossibilidade de ideias gerais abstratas

 

Encontra-se em seu leque de contraposições o levantamento de John Locke  acerca do caráter distintivo entre os seres humanos e os animais: “Ter ideias gerais é o que distingue o homem dos animais, uma excelência que as faculdades desses jamais poderiam alcançar. Não se observa nos animais nenhum vestígio do uso de signos gerais para ideias universais, nem de palavras ou outros signos gerais, o que nos dá razão para imaginarmos que não têm a faculdade de abstrair ou de criar ideais gerais” (LOCKE, 2012, p. 159).

Berkeley encontra na linguagem a fonte de incompreensões posteriores devido à suposição de que fazer uso da linguagem pressupõe a existência de ideias gerais (BERKELEY, 2008, cf. p. 41); portanto, o que fica claro a Locke ao dizer que “palavras são gerais se usadas como signos de ideias gerais” (LOCKE, 2012, p. 443), soa absurdo aos ouvidos do bispo de Cloyne, que defende a generalidade de determinado termo dada em sua significação remetida aos particulares – em outras palavras, generalidade do termo que se torna geral ao ser convertido em signo de cada um dos individuais – e não por intermédio de uma quimérica significação detentora de conteúdo abstrato absoluto, como podemos analisar através deste exemplo: “Ele traça, por exemplo, uma linha preta de uma polegada de comprimento; essa linha, que em si é particular, é, no entanto, geral em relação a seu significado, pois, do modo como aqui é utilizada, representa todas as linhas particulares, quaisquer que sejam. Desse modo, o que é demonstrado acerca dela fica demonstrado acerca de todas as linhas, ou, em outras palavras, de uma linha em geral. E, assim como essa linha particular se torna geral ao ser convertida em um signo, do mesmo modo o nome linha, que tomado em absoluto é particular, torna-se geral ao ser convertido em um signo. E, assim como a linha deve sua generalidade não ao fato de ser o signo de uma linha abstrata ou geral, mas de todas as linhas retas particulares que possam talvez existir, do mesmo modo pode-se pensar que a generalidade da palavra linha deriva da mesma causa, isto é, das várias linhas particulares que ela indiferentemente denota” (BERKELEY, 2008, p. 43).

Assim, é permitido dizer que a generalidade do significado que se estende aos particulares se dá  única e exclusivamente pela sua relação significativa para com estes; não por natureza absoluta, mas por exclusivo respeito à definição que lhe cabe, sem abarcar nesta última as possíveis peculiaridades dos particulares que excedem a mesma, podendo abraçá-los no âmbito da efetividade sem que se interponham dificuldades para encaixá-los num só termo. Afinal, em repúdio à universalidade da ideia através de um conteúdo abstrato absoluto, Berkeley defende que seria impossível imaginar uma ideia geral abstrata de um triângulo que não é nem equilátero, nem obliquângulo, nem retângulo, nem isósceles, nem escaleno, mas todos e nenhum deles ao mesmo tempo (BERKELEY, 2008, cf. p. 45).

No entanto, vale ressaltar que dizer “sem abarcar nesta última [definição] as possíveis peculiaridades dos particulares que excedem a mesma” é defender que nem tudo que é percebido é considerado (BERKELEY, 2008, cf. p. 48)5, pois retemos apenas o que se refere à definição e omitimos o que não lhe compete, realizando, portanto, uma “abstração restrita” para que se encaixem particulares que partilham de uma mesma definição num só termo coerente a esta efetividade. Portanto, baseamo-nos no fato destes particulares resguardarem propriedades comuns correspondentes à definição sem abrir mão de suas respectivas peculiaridades e, por isso, consideramos o que se adequa à definição e relevamos o que compete apenas ao particular para podermos, deste modo, realizar certo tipo de “abstração” que nos garanta uma linguagem geral de denotação direta aos particulares (jamais por intermédio de uma ideia abstrata geral). Vide o exemplo: podemos “considerar uma figura meramente como triangular, sem prestar atenção nas qualidades particulares dos ângulos ou nas relações entre os lados” (BERKELEY, 2008, p.48), e, a partir disso, se torna permitido observarmos outros triângulos e encaixá-los no mesmo termo triângulo sem que se leve em consideração as diferenças entre os mesmos; sendo este, portanto, o limite de abstração do homem.

 

Conclusão

 

George Berkeley quebra a falsa ideia de necessidade das ideias abstratas nos âmbitos científico, filosófico e até mesmo no que se refere à vida cotidiana, desmanchando um dos maiores males decorrentes da má compreensão da relação entre palavra e representação: a ideia abstrata.

Resumidamente, Charles Sanders Peirce nos diz claramente o que Berkeley apresenta em defesa da impossibilidade das duas acepções de ideias abstratas: “Sua filosofia inteira se baseia em um extremo nominalismo de tipo sensorialista. […] Sustenta, além do mais, que as sensações podem apenas ser, assim, reproduzidas em combinações tais como poderiam ter sido dadas na percepção imediata. Podemos conceber um homem sem cabeça, porque não existe nada na natureza dos sentidos que impeça que vejamos uma coisa assim; mas não podemos conceber um som sem altura, porque as duas coisas estão necessariamente unidas na percepção. Partindo desse princípio, nega que possamos ter quaisquer ideias gerais abstratas, isto é, que os universais possam existir na mente; se eu pensar em um homem, deve ser ou em um homem baixo ou em um homem alto ou em um de altura mediana, porque se eu vir um homem, ele deve ser um ou outro desses (PEIRCE, 2015, p. 328).

Berkeley nega a existência de ideias abstratas por enxergar nelas a raiz da crença num subsistente de existência impercebida a pairar incognoscivelmente sob os acidentes acessíveis a nós: o substratum material. Afinal, para Berkeley, apenas a partir da refutação das ideias abstratas se dissipará a fundamentação abstrata da dita matéria impercebida: “Se examinarmos bem esse princípio [da existência impercebida de um substratum material] descobriremos, talvez, que no fundo ele depende da doutrina das ideias abstratas. Afinal, pode haver uma maneira mais sutil de abstração do que distinguir a existência dos objetos sensíveis do seu ser percebido, assim como concebê-los existindo impercebidos?” (BERKELEY, 2008, p. 60). Portanto, “a partir desse nominalismo Berkeley deduz sua doutrina idealista. E ele deixa além de toda dúvida que, se esse princípio for admitido, a existência da matéria deve ser negada. Nada que podemos conhecer ou mesmo pensar pode existir fora da mente, pois podemos apenas pensar reproduções de sensações, e o esse destas é percipi. Em outras palavras, não podemos pensar em uma coisa como existente sem ser percebida, pois não podemos separar no pensamento o que não pode ser separado na percepção. […] Silogisticamente: árvores, montanhas, rios, e todas as coisas sensíveis são percebidas; e tudo o que é percebido é uma sensação; ora, é impossível, para uma sensação, existir sem ser percebida; portanto, é impossível, para qualquer coisa, existir fora da percepção. Nem pode haver nada fora da mente que se assemelhe a um objeto sensível, pois a concepção de semelhança não pode ser separada da semelhança entre ideias, porque essa é a única semelhança que pode ser dada na percepção” (PEIRCE, 2015, p. 329).

 

Referências

 

BERKELEY, George. Obras Filosóficas. 1ª edição. São Paulo: Ed. UNESP, 2010.

CONTE, Jaimir. A Oposição de Berkeley ao Ceticismo. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Campinas, Série 3, v. 18, n. 2, p. 325-355, jul.-dez. 2008.

LOCKE, John. Ensaio sobre o Entendimento Humano. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 4ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015.

SMITH, Plínio Junqueira. As respostas de Berkeley ao ceticismo. Doispontos, Curitiba, vol. 1, n. 2, p. 35-55, jan/jun, 2005.

 

 

INFORMAÇÕES DO AUTOR

 

NOME: Caique Marra de Melo

FORMAÇÃO ACADÊMICA: Graduando em Filosofia pela Faculdade de São Bento

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1    É importante ser ressaltada a validade do uso do termo res desde que o preserve de uma pretensa e enganosa existência externa, independente e impercebida.

2    As obras utilizadas direta e indiretamente para a execução deste artigo não estão citadas ao longo do texto com o rigor referencial que se encontra no final deste trabalho. Portanto, suas respectivas bibliografias por extenso se encontram apenas nas Referências.

3    Esta nota é conferida por Jaimir Conte (tradutor do livro Obras Filosóficas de Berkeley citado neste artigo): “Segundo Luce e Jessop, frase do italiano Augustinus Niphus, Comm. In Aristotelem de Gen. et. Corr., livro I: 'Loquendum est ut plures, sentiendum ut pauci'”.

4    Alguns pensadores clássicos como René Descartes e John Locke propunham, contrariamente a Berkeley, existência externa às qualidades primárias, a garantir, portanto, independência ao suposto mundo exterior.

5    Por fim didático, tendo consciência do risco deste feito, optou-se por interpretar o excerto “visto que tudo que é visto não é considerado” como “nem tudo que é percebido é considerado”, apenas para facilitar a compreensão do leitor.