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A POSSIBILIDADE DA EXPERIMENTAÇÃO DO ABSOLUTO PELA INTUIÇÃO ATRAVÉS DA ARTE

Denise Hilena Roca Guerra

Precisamos percorrer um breve caminho explicitado por Henri Bergson, em sua obra O Pensamento e o movente, para compreendermos a metafísica como uma experiência do absoluto e, em seguida, percebermos como a obra de arte possibilita uma experiência metafísica, uma experimentação do absoluto. Bergson nos apresenta que os conceitos de absoluto e metafísica são tratados de maneira diversa pelos filósofos. No entanto, estão de acordo quanto à distinção entre estes conceitos:

Se compararmos entre si as definições de metafísica e as concepções de absoluto, percebemos que os filósofos, a despeito de suas aparentes divergências, concordam em distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer uma coisa. A primeira implica que se dêem voltas ao redor dessa coisa; a segunda, que se entre nela. (BERGSON. p. 183-184)

Para conhecer algo do âmbito metafísico, alguns filósofos vão defender a necessidade de adotarmos certo ponto de vista e fazermos uso de símbolos a fim de encadear impressões, afecções e ideias, possibilitando assim uma apreensão. Deste modo, segundo Bergson, estamos fora do objeto experienciado, fazendo análise, comparando, mensurando, atribuindo valor. O conhecimento metafísico, neste caso, torna-se correspondente, visto que procuramos identificar alguma coisa previamente conhecida ante o inusitado, buscando analogias que possam traduzir a experiência.

O conhecimento que atinge o absoluto não se ancora em nenhum tipo de símbolo, não possui referência, portanto, não pode ser traduzido por conceitos já existentes. Algo se passa em um movimento absoluto e faz com que desprendamos afeição a esse movimento, atribuindo-lhes “estados de alma”, que são capturados no interior deste movimento, através do esforço da imaginação, pela intuição, fazendo com que o sujeito entre no objeto, se insira no objeto. Não obstante, não poderemos experimentar a mesma coisa, capturar os mesmos “estados de alma”, nas experiências com o absoluto, pois estamos em constante devir e a apreensão do absoluto irá depender da intuição, ou seja, da simpatia para com o tipo de “estado de alma” que capturamos no movimento absoluto. A partir dessa conexão com o absoluto, por estarmos inseridos no objeto, a referência para explicar este fenômeno é inexistente, pois é imprescindível abandonar a busca por qualquer tipo de norteamento ou coerência para que se possa experienciar e apreender de forma plena o absoluto, não de fora, mas dentro do movimento.

Podemos observar que, para Bergson, há duas formas de conhecimento: o conhecimento obtido pela análise e o conhecimento obtido pela intuição. O conhecimento metafísico só poderá ser concebido por meio da intuição, já que a análise é um método de conhecimento científico.

A partir disto, gostaria de relacionar uma experiência real obtida em contato com um elemento de arte, cujo caráter é a experimentação de sons, como uma possível fonte de conhecimento metafísico nos termos de Bergson. Para este alcance foi preciso entrar em contato com o objeto de arte e, por meio de afeição aos sons criados ou ao seu “estado de alma”, deu-se o processo de intuição, proporcionando a penetração no que fora produzido, a saber, o som. Este contato gerou um novo tipo de conhecimento e uma nova produção de ser enquanto sujeito, de modo que nesta experiência não se encontrou, e nem poderia, nenhuma forma de comparação com outro saber que proporcionasse algo semelhante a este contato. Esta nova produção de ser enquanto sujeito se dá na medida em que o que se experimenta contempla uma nova configuração de percepção, tanto de afecção como de gosto. No instante do contato com o som, buscando relacionar o movimento contido nesta ação com a intuição proposta por Bergson, algo se manifesta e afecta a interioridade, ocasionando uma sensação inusitada que chega a nos confundir, causando um incômodo, justamente por não conseguirmos categorizar ou definir esse fenômeno. A intuição acontece por meio de uma tomada de consciência muito diferente do modo que habitualmente pensamos. Existe algo que se passa entre o sujeito e o objeto, que entendo, a partir da minha experiência, ser a simpatia que Bergson explicita. A simpatia é um fenômeno que abre um campo significativo e este campo propicia intuir o objeto de arte, fazendo com que esse se torne fluido e passe também por um processo de duração. A duração não permanece no espaço após o contato, é um tipo de duração interna que causa um estado de desconstrução e construção de entendimento, produção de subjetividade, que permanece mesmo estando em contato com as coisas que estão fora deste ambiente interno, que estão dispostas no espaço, fazendo com que fiquemos, em certa medida, fora de adequações, com os sentidos deslocados.

Quando pensamos em tomada de consciência estamos fazendo uso da racionalidade e sua principal característica é entender por meio de identificação, classificação, qualificação e o movimento obtido nesta experiência com os sons produzidos de modo experimental não aconteceram desta forma e, por este motivo, afirmo que a intuição é um outro tipo de tomada de consciência.

Cito abaixo parte de um e-mail enviado por mim para a autora da obra com um relato sobre a sensação e o efeito causado após o contato com a sua produção: “O que me remeteu a pensar em desinstalação foi o fato de me sentir como que jogada para outra dimensão, fui tirada do prumo, o inusitado que abala, um real experimento que causa o espanto. No caso, os sons me desmontaram e possibilitaram uma nova conexão comigo mesma no momento em que eu os experienciava, proporcionando uma outra maneira de me perceber ao perceber o que me era desconhecido. Conhecer uma nova música não me causa esta desinstalação, pois normalmente as novas músicas são novas a partir de velhas. De fato, temos referência para o que se segue, para a criação do "novo". No entanto, com os sons que você apresentou, seria algo em torno do oposto do que se espera, e aí está o lance...”

A possibilidade desta experiência se deve em grande parte ao tipo de objeto de arte apreciado, ao seu “estado de alma”. A autora cria músicas experimentais, ou seja, é possível que ela também passe por um processo de desinstalação para produzir este tipo de arte. São sons que não trazem uma cadência ou métrica estrutural confortante, não dialoga com o habitual, não possui base em outros tipos de sons. Existem alguns sons que consideramos diferentes e para o reconhecermos assim é necessário que exista uma referência para compararmos e intitularmos como diferente. Na obra experienciada, que me possibilitou chegar a este entendimento e serviu de inspiração para pensar este tema, os sons não foram diferentes, foram únicos. Esta experiência instiga o lance no abismo, no sentido de lançar, por meio da produção estética, a sua percepção ao encontro de notas e ruídos maravilhosamente desconcertantes, que só poderá ser percebido através do desprendimento fundamental das coisas.

Essa experiência e entendimento da intuição do objeto ocorreram antes do contato com a obra do Bergson, o que, para mim, garante ainda mais a potência do que fora experienciado, porquanto não tinha nenhuma referência para que eu pudesse fazer relações e pensar nestes termos. O conhecimento se deu através do esforço para entender o que se passou neste fenômeno e em sua duração enquanto movimento interno. Meses depois tive a oportunidade de entrar em contato com os conceitos que foram pensados por Bergson para explicar esse tipo de conhecimento metafísico e isto ampliou meu entendimento sobre esse processo, deixando-o menos “confuso”, mas não menos complexo. Considero que esta experiência foi filosoficamente marcante e sinto que sua duração ainda reverbera, me provocando a pensar.

 

Referência

BERGSON, Henri. O Pensamento e o movente: ensaios e conferências. Tradução por Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

RIBEIRO, Vanice. VR: Investigações sonoras. Disponível em: https://soundcloud.com/vanice-ribeiro. Último acesso em: 22 jun. 2016.

Artigo produzido por: GUERRA, Denise Hilena Roca – Graduanda - Licenciatura em Filosofia - Unisantos