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Rudolf Bultmann: hermenêutica e desmitologização

 Oneide Perius

 Doutor em Filosofia - PUCRS

Desmitologizar supõe negar que a mensagem da Escritura e da Igreja esteja inelutavelmente vinculada a uma visão de mundo antiga e obsoleta. Rudolf Bultmann (1970, p.47).

 

Rudolf Bultmann, importante teólogo protestante de Marburg, é decididamente, uma das vozes mais polêmicas na teologia do século XX.   Ainda assim, sua obra é marcada por uma impressionante ousadia hermenêutica além de rigorosa coerência interna.Vamos nos concentrar, no âmbito desta comunicação, com seu projeto de desmitologização do Novo Testamento. Segundo Bultmann, o κήρυγμα (Kerigma, Mensagem) do texto sagrado só pode ser atualizado quando separado da mitologia cosmológica que sustenta este texto.

A tese central de Bultmann é a de que a mensagem central do Novo Testamento não está inelutavelmente vinculada a uma visão de mundo antiga e obsoleta. Na medida em que está relacionado a esta linguagem mitológica o κήρυγμα é não-crível ao homem moderno, pois este está convicto de que a perspectiva mítica do mundo é arcaica. O homem, este ser hermenêutico por excelência, não pode adotar uma visão de mundo a seu bel-prazer, visto que é sempre um ser historicamente situado. Exatamente por isso seria um absurdo tentar convencê-lo a aceitar como verdadeira a perspectiva mítica do mundo. A tarefa hermenêutica do teólogo é, portanto, separar o κήρυγμα do mito, separar a mensagem da visão de mundo mítica onde se insere. Ficará bastante evidenciada a dívida de Bultmann, neste projeto de desmitologização, para com a tradição hermenêutica. A proximidade com as categorias da filosofia heideggeriana também são amplamente percebidas.

O nome de Rudolf Bultmann aparece, seguramente, entre os mais proeminentes nomes da Teologia do século XX.  Ele assume, a partir de 1921, cátedra de teologia (Novo Testamento) na Universidade de Marburg. No período inicial de seu trabalho (1922 a 1928) conviveu de maneira muito próxima com Martin Heidegger, então professor de Filosofia na mesma Universidade. Certamente, ainda que nossa apresentação não possa se ocupar disso com maior detalhe, muitos paralelos podem ser estabelecidos entre os dois pensadores. Com ainda mais nitidez podemos observar a influência de Ser e Tempo (1927) sobre as idéias teológicas de Bultmann. No período anterior à elaboração de Ser e Tempo, várias vezes Bultmann assiste aos cursos de Heidegger como ouvinte além de, em 1924, contar com a colaboração de Heidegger em um seminário sobre a ética paulina. (PIKAZA, Xabier, 2000, p.39) Além disso, não só nas referências explícitas, mas de um modo mais decisivo na própria linguagem quase heideggeriana adotada por Bultmann, fica bem clara a importância que haveriam de ter estes encontros na construção da obra do Teólogo de Marburg. Quando em 1933 Bultmann dedica a Heidegger o primeiro volume de seu livro Glauben und Verstehen (Crer e Compreender), recorda que as discussões em Marburg lhe permitiram “descobrir e elaborar uma linguagem existencial mais adequada para expressar a novidade cristã.” (PIKAZA, Xabier, 2000, p.40)  

 Tão importante quanto a influência de Heidegger é, também, a influência da teologia dialética de Karl Barth. Este publica, em 1919,dois anos antes de Bultmann publicar sua grande obra sobre a História da Tradição Sinótica, a primeira versão do livro que inaugura a teologia do século XX: seu comentário à Carta aos Romanos. Inaugura a teologia do século XX pois faz uma dura crítica à teologia liberal dominante desde o século XIX. A teologia liberal via Cristo como um ideal supremo da humanidade. Partia, portanto, de uma interpretação humanista do Evangelho como se sua mensagem central fosse um conteúdo moral que se pudesse alcançar através da razão. Além disso, nas palavras de Gadamer, este livro de Karl Barth é um verdadeiro ‘manifesto hermenêutico’, e nisto reside especialmente seu significado para Bultmann.  Maurizio Ferraris, em sua História da Hermenêutica escreve: “Para Barth, na realidade, a finalidade da exegese não é a objetivação do texto, que seria alcançada através da metódica exclusão da historicidade do intérprete. Ao invés disso, a tarefa da exegese para ele consiste em reatualizar a mensagem evangélica, fazer a tradução dessa mensagem à linguagem e às problemáticas atuais. Nesta tradução, a historicidade do interprete é central e já não constitui um limite epistemológico. Esta historicidade aparece, ao invés disso, como condição positiva da exegese.” (FERRARIS, M. 2005, p. 217) Bultmann, neste sentido, se coloca como herdeiro da teologia dialética de Karl Barth pois, segundo ele, tornar a mensagem do Evangelho imanente ao próprio processo histórico como um ideal humanista das sociedades modernas é esterilizar a radicalidade, suavizar o escândalo do κήρυγμα neotestamentário. A mensagem do evangelho, para Bultmann, não pode ser simplesmente acomodada ao curso da história como ideal que se está buscando na civilização tecnológica. Ao invés disso, se corretamente interpretada, ela é uma mensagem radical que pode levar o ser humano a questionar a autenticidade de sua existência no interior da sociedade contemporânea. A tarefa, portanto, é hermenêutica. Recuperar e reatualizar esta mensagem é condição de possibilidade para que continue sendo palavra viva.

A partir disso, portanto, se coloca a questão: como interpretar?

 Desmitologização

 É importante destacar que desmitologizar(Entmythologisierung)é um genuíno exercício hermenêutico. Não significa, de modo algum, uma destruição da linguagem mítica como se essa fosse simplesmente o resultado de uma visão de mundo ingênua. Bultmann faz, ao invés disso, uma leitura antropológica do mito, isto é, o mito não seria uma tentativa de estabelecer objetivamente o que o mundo é. Do contrário, o mito seria uma tentativa de expressar a compreensão que o ser humano tem de si próprio no interior deste mundo. Portanto, a tarefa hermenêutica não seria a de destruir o mito como uma falsa linguagem, mas sim, recuperar a resposta neotestamentária sobre o lugar do ser humano em seu mundo.

 O projeto da desmitologização, apesar de estar presente em toda obra de Bultmann, e certamente sua grande obra sobre a história da tradição sinótica já pode ser lida neste sentido, se intensifica nos anos quarenta a partir do clássico ensaio Novo Testamento e Mitologia, havendo continuidade no texto, já clássico, Jesus Cristo e Mitologia de 1951. Nestes textos Bultmann expõe de maneira detalhada o seu projeto de desmitologização. Em Jesus Cristo e Mitologia (1970, p.22)podemos ler:

 ...devemos abandonar as concepções mitológicas precisamente porque queremos conservar seu significado mais profundo. Este método de interpretação do Novo Testamento, que trata de redescobrir seu significado mais profundo oculto por trás das concepções mitológicas, eu o denomino Desmitologização. Não propomos eliminar os enunciados mitológicos, mas sim, interpretá-los. É, portanto, um método hermenêutico.

 O projeto, de maneira geral, se constitui de dois momentos: em primeiro lugar uma desconstrução da suposta objetividade da linguagem neotestamentária. Em outras palavras, ler os Evangelhos para saber o que ocorreu de fato na época e informar-se sobre o Jesus histórico seria um grande equívoco. O que aparece nos Evangelhos não pode ser tomado como descrição de fatos históricos, ao invés disso, trata-se da proclamação das comunidades cristãs de seu Messias. Portanto, essa boa nova é apresentada na linguagem mítica aceita pela visão de mundo da época onde eventos sobrenaturais, espíritos bons e maus, estavam sempre prestes a interferir nos acontecimentos cotidianos. Em seu texto Jesus Cristo e Mitologia (1970, p.20,21) Bultmann escreve:

Para o homem de nosso tempo, a concepção mitológica do mundo, as representações da escatologia, do redentor e da redenção, já estão superadas e carecem de valor. Podemos, esperar, desse modo, um sacrifício do entendimento, um sacrificium intellectus, para aceitar aquilo que, sinceramente, não podemos considerar como verídico, somente por que tais concepções nos são sugeridas pela Bíblia?

 Presente em toda a obra de Bultmann, portanto, está a concepção já clássica na hermenêutica de que nenhum ser humano pode adotar uma visão de mundo a seu bel-prazer, isto é, ninguém pode pular sua própria sombra. Como filhos de uma civilização tecnológica, somos profundamente marcados pela visão de mundo científica e seria um grande erro, neste sentido, esperar que o homem moderno renunciasse a essa sua visão de mundo e, através de um sacrificium intellectus, pudesse se transportar para o mundo do Novo Testamento. Tal incompreensão hermenêutica é diretamente responsável pelo crescente abandono, esvaziamento e mesmo negação do Kerigma neotestamentário. A vida da mensagem cristã depende da tarefa desmitologizadora. Só esse exercício hermenêutico vai mostrar que a mensagem neotestamentária não se opõe à visão de mundo científica e que não é preciso aceitar como válida uma visão de mundo obsoleta no ato de aceitar a sua atualidade.

No entanto, o projeto desmitologizador não se constitui apenas de uma etapa negativa de desconstrução. Esse passo é, na verdade, necessário para tornar possível uma outra tarefa ainda mais essencial: tornar possível uma nova interpretação da mensagem neotestamentária desde uma perspectiva existencialista. Segundo Bultmann, sem a tarefa hermenêutica de separar a mensagem (Kerigma) da roupagem mitológica onde é apresentada, o Novo Testamento não pode mais fazer nenhum sentido ao homem moderno. Fundamentalmente, a perspectiva hermenêutica da desmitologização se nega a aceitar que a Palavra de Deus seja fixa, estática e, portanto, que tivesse seu sentido definido e definitivamente explicitado no texto bíblico. Bultmann, como bom hermeneuta, sabe que as diferentes gerações realizam diferentes experiências com a Palavra de Deus. Acreditar que a palavra de Deus seja palavra viva significa, dessa maneira, aceitar que a tarefa interpretativa esteja com ela inelutavelmente vinculada. O sentido da Palavra se constitui na experiência hermenêutica de quem se deixa interrogar e ensinar por ela. No entanto, ainda que seja assim, nenhuma experiência hermenêutica pode esgotar o significado desta Palavra Viva. Parodiando André Gide, poderíamos dizer: é Palavra Viva pois oferece às sucessivas gerações alimentos renovados, tendo em vista que cada geração traz uma fome diferente.

 Ainda assim, quando se fala em desmitologização e se tem em mente toda a violenta reação dos setores mais tradicionais da teologia protestante a esse projeto de Bultmann, não podemos deixar de observar que se trata, sim, de uma proposta extremamente ousada, mas que de nenhum modo Bultmann abandona as exigências hermenêuticas de uma leitura coerente, honesta e muito bem fundamentada. Inclusive é importante observar, neste sentido, como muito bem nos lembra o teólogo de Marburg, que a tarefa da desmitologização já é iniciada nas próprias Escrituras. Segundo ele, Paulo de Tarso e João já põem em marcha o processo de desmitologização. Para eles, quem crê já vive a nova vida. Portanto, não é preciso esperar o que possa vir depois da morte ou um evento cósmico como o fim dos tempos para que a mensagem de Cristo faça sentido. O Kerigma é vivenciado por quem crê. Segundo Bultmann, portanto, uma vez que esta tarefa já iniciou com o próprio cristianismo, ela está mais do que legitimada como sendo profundamente necessária.

 Karl Barth, ainda que tenha sido sem dúvida uma das fontes inspiradoras de Bultmann, vê em sua obra uma espécie de recaída na teologia liberal do século XIX. Em síntese, Barth vê nela um excesso de racionalizações como se a mensagem neotestamentária tivesse que, para ser validada, passar pelo crivo da racionalidade científica moderna. Bultmann reage a isso da seguinte maneira:

 É errôneo objetar que a desmitologização significa racionalizar a mensagem cristã, dissolvê-la como produto do pensamento racional. (...) Muito pelo contrário, a desmitologização esclarece o verdadeiro significado do mistério de Deus. (...) A palavra de Deus não é um mistério para meu entendimento. Pelo contrário, não posso crer verdadeiramente sem compreendê-la. Porém, compreende-la não significa explicá-la racionalmente. Eu posso compreender, por exemplo, o que significa a amizade, o amor e a fidelidade e precisamente porque os compreendo verdadeiramente sei que, enquanto os experimento, constituem um mistério que não posso receber senão com gratidão. (1970, p.57,58)

 Desse modo, compreender que o Kerigma é atual é condição de possibilidade da experiência de deixar-se interrogar e ensinar pala Palavra. Esse exercício hermenêutico de desmitologização não é, definitivamente, uma tentativa de reduzir a mensagem neotestamentária a um conteúdo racional, a uma filosofia. Por exemplo, para nós modernos, uma pessoa quando fica doente procura um médico e não se põe a rezar para que milagrosamente sua doença seja curada. Exigir que essa mesma pessoa, que na sua vida cotidiana age dessa forma, tenha que aceitar uma visão de mundo arcaica onde a doença era vista como possessão de algum espírito maligno, é afastá-la da possibilidade de experienciar a força e atualidade do Kerigma em sua vida, é bloquear a possibilidade de a experiência acontecer, sendo que somente ela pode vivificar a Palavra.

 A experiência existencial com a palavra é que precisa se tornar possível. Esta experiência nenhuma racionalidade pode explicar, no entanto, sem a tarefa hermenêutica de mostrar ao homem contemporâneo que lançar-se em tal experiência não implica aceitar uma visão de mundo antiga e obsoleta, ela encontra-se sistematicamente bloqueada ou então falsificada. A mensagem neotestamentária é o mandamento do amor, da vida que partilhada é mais completa do que uma vida solitária. Nos Evangelhos, Cristo sempre dá-se a conhecer no ato da partilha. Portanto, a centralidade da mensagem não é a apresentação de feitos sobrenaturais de um homem histórico, mas um ensinamento que nos levaria a questionar o nosso individualismo e egoísmo, marcas da vida nas sociedades modernas. Este Cristo teológico nos fala hoje. É uma mensagem que não nos faz aceitar as estruturas de morte, de exclusão e de negação da vida. A mensagem neotestamentária é uma mensagem de vida, de promoção da vida, de ressurreição. Nada tem a ver com mitologias e fatos sobrenaturais.

 A atualidade deste projeto de Bultmann torna-se ainda mais evidente quando se observa a proliferação das teologias neo-pentecostais totalmente imersas em uma incompreensão em relação ao significado do texto bíblico. O significado do ser cristão se decidiria, para estas teologias, na aceitação ou não das mitologias. Desse modo, perde-se definitivamente a possibilidade real da experiência com a mensagem, que se esvazia e se torna álibi para muitos discursos que pouco tem a ver com o seu real significado.

 Considerações Críticas

 Ao longo do século XX várias foram as críticas dirigidas a Bultmann. Certamente isso atesta a vitalidade e importância de suas idéias. Não vamos nos deter aqui em uma descrição das diferentes críticas advindas do campo teológico. Ao invés disso queremos apontar para uma crítica que talvez seja importante destacar, crítica esta bastante inspirada em Walter Benjamin. De acordo com os autores das Teoria Crítica, de uma maneira geral é muito difícil, senão paradoxal, falar de uma existência autêntica no interior de uma sociedade coisificada. Torna-se mesmo uma ideologia defender a possibilidade de uma existência autêntica sem questionar as estruturas de morte que sistematicamente se produzem nas sociedades contemporâneas. Dessa forma, reduzir o kerigma a um significado puramente existencial, compreendendo a ressurreição como um acontecimento com significado puramente pessoal de vitória da vida sobre a morte, sem levar em consideração o significado político da mensagem neotestamentária, seria adotar uma chave hermenêutica muito restritiva. Para que a mensagem neotestamentária possa ser experienciada é preciso não obliterar, para além de seu significado existencial, o seu significado político. Ignorá-lo seria, certamente, endossar uma ideologia de existência autêntica no interior de uma sociedade que retira dos seres humanos toda possibilidade de autenticidade. O viés da teologia da libertação, no âmbito da América Latina, me parece apontar para a necessidade deste referencial hermenêutico mais amplo.

Ainda assim, apesar das críticas e apesar das reações bastante exaltadas que a teologia de Bultmann costuma provocar até hoje, parece-nos um olhar lúcido, ousado e necessário para que a tradição do cristianismo libertário não se perca em uma estéril e ideológica repetição de mitologias.

 Bibliografia

 

BARTH, Karl. Carta a los Romanos. Trad: Abelardo Martinez de la Pera. 1.ed. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 1998.

 

BULTMANN, Rudolf. Crer e Compreender. Ensaios selecionados. Trad: Walter Schlupp, Walter Altmann e Nélio Schneider. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

 

_______________. Historia de la Tradición Sinoptica. (Trad: Constantino Ruiz-Garrido) Salamanca: Sigueme, 2000.

 

________________ Jesucristo y Mitologia. Trad: Ramón Alaix y Eduardo Sierra. 1.ed. Barcelona: Ediciones Ariel, 1970.

 

FERRARIS, Maurizio. Historia de la Hermenéutica. Trad: Armando Perea Cortés. 2.ed. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2005.

 

PIKAZA, Xabier. Prólogo a la edición Catellana. In: Historia de la Tradición Sinoptica. Trad: Constantino Ruiz-Garrido. Salamanca: Sigueme, 2000. pp.9-54.