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O curso uniforme da natureza como axioma geral da indução em John Stuart Mill

Desde o princípio de sua existência consciente o homem tentou entender o universo. A inteligência humana faz com que esse ser consiga perceber e compreender as regularidades da natureza e agir de acordo com essa bagagem teórica que permite que o mesmo possa estar preparado para interagir de forma mais coerente com os fenômenos que o cercam.

Observam-se casos semelhantes na tentativa de entendê-los e generalizar essa explicação a todos os casos de uma mesma espécie. Essa operação racional que parte de casos particulares e generaliza conclusões para todos os casos de uma mesma espécie é conhecida no meio intelectual como raciocínio indutivo.

Várias foram as tentativas de justificar o raciocínio indutivo, mas todas elas fracassaram. Não há como fundamentar o “salto indutivo”, que generaliza de “alguns” casos para “todos” os casos. Apesar disso, o raciocínio indutivo é amplamente utilizado no desenvolvimento de pesquisas científicas e se apresenta como o método de raciocínio que mais traz novos conhecimentos ao explicar, a partir do conhecido, o desconhecido.

A existência dos riscos do raciocínio indutivo é evidente. Porém, muitos filósofos defensores da indução tentam, pelo menos, separar induções ingênuas (e que podem levar facilmente ao erro) de induções refinadas e rigorosamente inferidas. Entre eles, destacam-se Francis Bacon e John Stuart Mill, seguidos por Carnap, Reichenbach e Max Black.  

No presente artigo, nos deteremos à indução defendida por John Stuart Mill. Segundo esse filósofo, a partir do conhecimento da regularidade da natureza, de seu curso uniforme, estamos autorizados a inferir sobre situações passadas e futuras na tentativa de explicá-las ou antecipá-las. O conhecimento das causas nos leva a entender e explicar um determinado acontecimento ou esperar determinadas conseqüências.

1- A indução na concepção de Stuart Mill

No terceiro livro do Sistema de Lógica, Mill trata do problema da indução. O autor afirma que o estudo da lógica indutiva é de extrema importância, pois é através dela que se constitui essencialmente a investigação da natureza. Mill afirma que as teorias científicas são válidas a partir de inferências que são provenientes de induções e de interpretações dessas induções. Segundo ele, todo o nosso conhecimento tem suas bases nessa fonte. A grande questão da ciência lógica, para Mill, recai sobre o que é a indução e em que condições ela se torna legítima como instrumento científico válido.

Mill define indução como “a operação de descobrir e provar proposições gerais”(Sistema de Lógica[2], 1979, p.159). Parte-se de casos singulares e, de acordo com rigorosos métodos indutivos, generaliza-se a conclusão a casos semelhantes aos anteriores. Sabe-se que, ao constatarmos indiretamente fatos individuais, estamos indutivamente concluindo da mesma forma com que concluímos verdades gerais. Se fossemos analisar melhor, as inferências gerais constituem-se nada mais, nada menos do que uma coleção de inferências particulares de uma mesma espécie, independente do número que as constituem. Se essas observações nos levam a inferir algo sobre um fenômeno desconhecido, então se pode inferir de modo semelhante em toda uma classe de casos. Quanto a isso, Mill ainda afirma o seguinte: “Ou a inferência não vale de maneira nenhuma, ou então vale para todos os casos de uma mesma espécie, em todos os casos que, em determinados aspectos definíveis, se assemelham àqueles que observáramos” (SL, 1979, p. 159).

A legitimidade da indução vai depender das mesmas condições, em se tratando de princípios científicos ou em se tratando de fatos particulares. Mill conclui que, se as regras de inferência são as mesmas para casos gerais e particulares, então se pode aplicar esse princípio às regras lógicas da ciência e à lógica da ação prática e da vida ordinária. A lógica é uma mesma ciência para todos e não é diferente em se tratando de seus princípios. Uma vez logicamente verdadeiro, esse argumento será verdadeiro para todos. Seja por experimentação ou por raciocínio, a sucessão de inferências se dá por processo indutivo, uma vez que, de conclusões sucessivas e semelhantes sobre um mesmo fenômeno ou fato, pode-se concluir que todos os fenômenos que se classifiquem como sendo de um mesmo caso terão um mesmo desfecho. Dessa maneira, podem-se formular regras universais.

Mill se apresenta como um crítico acerca de certas espécies de “induções” que, segundo ele, são assim impropriamente chamadas. Para Mill, a indução “é um procedimento por inferência; vai do conhecido para o desconhecido” (SL, 1979, p.163). Podemos exemplificar casos de indução, impropriamente chamadas, quando dissermos que todos os apóstolos de Cristo eram judeus, ou ainda, se pegarmos o exemplo do navegador que, ao circundar uma terra desconhecida, conclui que se trata de uma ilha. Nesses casos não há inferência do que é conhecido para o que é desconhecido. Há apenas agenciamento de todos os fatos observados. Todos os fatos são conhecidos e por isso mesmo, isentos de qualquer procedimento indutivo. Não ocorre uma generalização e, sim, uma constatação exclusiva dos particulares.

Para ilustrar ainda mais a comparação entre induções legítimas e falsas induções, Mill apresenta a seguinte situação:

“Se, concluindo que todos os animais têm um sistema nervoso, o que queremos dizer não é nada mais do que se disséssemos “Todos os animais conhecidos”, a proposição não é geral, e o procedimento pelo qual é alcançada não é uma indução. Mas, se o que queremos dizer é que as observações feitas das diversas espécies de animais nos revelam uma lei da natureza animal, e podemos dizer que um sistema nervoso se encontrará mesmo em animais ainda não descobertos, isto na verdade é uma indução; mas, neste caso, a proposição geral contém mais de que a soma das proposições especiais das quais é inferida” (SL, 1979, p.164).

Kepler, quando determinou a natureza das órbitas planetárias, não o fez por indução, mas por observação de todos os movimentos de determinado planeta. O procedimento realizado por Kepler, diz Mill, foi o de observar, por determinado tempo, o movimento dos planetas (Marte primeiramente). Notou Kepler que a trajetória de tal movimento se repetia com o passar do tempo. Para determinar a órbita do planeta, Kepler simplesmente uniu, de forma imaginária, os pontos onde se localizou o planeta nesse período de tempo e notou que seu movimento realizava-se dentro de uma imaginária figura elíptica. Sendo assim, o cientista “experimentou” todas as posições do planeta para estabelecer sua órbita. A indução ocorre quando Kepler determina que esse planeta sempre realizará tal movimento. Levando-se em conta essa última afirmação, nota-se que se partiu de casos observados e inferiu-se que tal situação ocorreria com casos ainda não observados. 

Mill, ao apresentar os fundamentos da indução, diz que, resumidamente, pode-se definir indução como sendo a “generalização da experiência”. Para Mill, a indução propriamente dita “... consiste em inferir, de alguns casos particulares em que o fenômeno é observado, que ocorrerá em todos os casos de uma determinada classe, isto é, em todos os casos que se assemelham aos primeiros enquanto são consideradas suas circunstâncias essenciais”(SL, 1979, p. 170).

Tais inferências são provenientes da observação das leis da natureza. A fundamentação da indução em Stuart Mill está no princípio da uniformidade do curso da natureza. Mill diz que o universo é constituído de tal maneira que tudo o que é verdadeiro em um caso de determinada natureza é também verdadeiro para todos os casos da mesma natureza. Para justificar a indução através das “leis naturais” Mill diz o seguinte:

“Devemos primeiro observar que há um princípio implicado na própria afirmação do que é uma indução; uma suposição com respeito ao curso da natureza e à ordem do universo, a saber, que há na natureza coisas tais como casos paralelos; que o que acontece uma vez deverá, sob um grau suficiente de similaridade de circunstâncias, acontecer novamente, mas tantas vezes quantas as mesmas circunstâncias tornarem a suceder. E, se consultarmos o curso atual da natureza, aí encontraremos sua garantia”(SL, 1979, p. 170).

Pode-se, dessa forma, dizer que tudo quanto é verdadeiro em determinado caso de determinada natureza é verdadeiro em todos os casos dessa mesma espécie. Sendo assim, o universo é composto por casos uniformes da natureza; é regido por leis gerais que, uma vez descobertas e interpretadas de maneira autêntica, podem servir para prever futuros fenômenos. O futuro se assemelhará ao passado, se formos levar em conta a uniformidade da natureza.

O curso uniforme da natureza consiste no axioma geral, no princípio fundamental da indução. Stuart Mill chama a atenção para esse axioma geral da indução. Segundo ele, não se pode apresentar essa generalização como a máxima explicação sobre a indução. Na verdade, tal axioma é fruto de uma indução. E não se constitui numa das primeiras induções, mas sim, numa das últimas, ou como diz Mill, “uma das últimas a atingir a estrita exatidão filosófica” (SL, 1979, p.170). Essa generalização é fruto de generalizações anteriores. Através dela, diz Mill, as “leis mais obscuras” da natureza foram descobertas. Foi através da observação de que o fogo queima, de que a água molha, de que o sol aquece... que se pôde afirmar que, na natureza, tudo acontece dentro do cumprimento das leis naturais. Portanto, dizer que o mundo é regido por leis é fruto de observações, de experimentos, de induções que caracterizam o complexo processo pelo qual se chegou a essa afirmação geral.

 

2 – A indução e as leis da natureza

 

Quando Stuart Mill aborda o tema referente à uniformidade da natureza, o mesmo chama a atenção para a idéia de que não se trata de uniformidade, mas de uniformidades conjuntas. Mill defende a idéia de que “a regularidade geral resulta da coexistência de regularidades parciais. O curso da natureza em geral é constante porque o curso de cada um dos diversos fenômenos que a compõe o é” (SL, 1979, p.174). Dessa forma observa-se que um fenômeno ocorre quando estão presentes determinadas circunstâncias e não ocorre quando estas estão ausentes. Os fenômenos são uniformidades. Assim, a uniformidade da natureza é um fato complexo, composto de fenômenos (partes da regularidade geral) uniformes. A partir dessas idéias, Mill expressa sua compreensão de lei natural da seguinte forma: “A essas diversas uniformidades, quando constatadas por aquilo que se considera uma suficiente indução, chamamos, na linguagem comum, leis da natureza” (SL, 1979, p. 174).

Ao observar as leis da natureza e os fenômenos em geral, Mill constata que existem leis da natureza e uniformidades resultantes dessas leis. Como exemplos de leis da natureza, nas palavras de Mill, temos as seguintes uniformidades: “ a lei de que o ar tem peso, a lei de que a pressão em uma direção, não contrabalançada por uma pressão igual na direção contrária, produz um movimento que dura até que o equilíbrio seja restabelecido”( SL, 1979, pp. 174-175). Levando-se em conta essas uniformidades, podemos, segundo Mill, predizer outra uniformidade que é a ascensão do mercúrio no tubo de Torricelli. Esta última não é uma lei da natureza, mas é o resultado de leis da natureza. As condições em que está o mercúrio, possibilitam a realização do fenômeno de ascensão do mesmo. As leis da natureza, juntas, proporcionam tal fenômeno. Conhecidas as leis e suas causas, pode-se deduzir resultados. Porém, faltando qualquer um dos elementos determinantes para a realização do fenômeno, nota-se que ou o fenômeno não ocorre, ou ocorre de forma diferente.

 Mill admite que, anteriormente às leis naturais estabelecidas pela ciência, estabeleceram-se leis naturais pelo senso comum, pela necessidade prática e imediata dos primeiros observadores da natureza. O procedimento científico surge como a técnica de se aperfeiçoar e de se sistematizar as primeiras formas de entendimento humano acerca dos fenômenos naturais. Observa-se que:

“Nenhuma ciência precisou ensinar que o alimento nutre, que a água mata a sede, que o sol dá luz e calor, que os corpos caem no solo. Os primeiros pesquisadores científicos admitiram estes fatos e outros semelhantes como verdades conhecidas e partiram delas para descobrir novas”(SL, 1979, p. 176).

Para Mill, sem dúvida, necessita-se de induções prévias, simples, primeiras como ponto de partida para pesquisas científicas mais complexas e mais profundas. A ciência é um processo de descobertas, mas que necessita de um primeiro experimento. O papel da ciência é o de retificar generalizações mais restritas e transformá-las em amplas. O senso comum adota, na prática, as idéias provenientes de generalizações (por exemplo, o chá de limão com mel cura a gripe); o resultado de determinado experimento é válido quando o mesmo demonstra validade prática. A ciência possui ambição de amplitude, de generalização, de validade universal. Por isso, não se contenta com o “funcionamento” do fenômeno; é preciso saber o “porquê” e não somente o “para quê” das coisas.

A ciência da lógica aparece como algo indispensável no processo de se analisar as argumentações em qualquer campo do conhecimento humano. Induções que podem ser unidas pelo raciocínio se confirmam; induções que não se conciliam dentro de um fenômeno trazem dúvidas e levam a crer que, pelo menos uma delas, tem algum defeito e deve ser eliminada. Assim se estabelece leis universais: purificando os fenômenos e eliminando induções que apresentam dúvidas e que, retiradas da análise do fenômeno em estudo, não interferem em seu resultado final. Segundo Mill, “há tais induções certas e universais; e é porque as há que é possível uma lógica da indução” (SL, 1979, p.177).

Segundo a concepção indutiva de Max Black, o indutivismo existe e não necessita de justificação para ser um discurso coerente e relevante no meio científico. O indutivismo não precisa ser justificado e não pode ser justificado. Black apresenta uma nova postura diante do problema do indutivismo. Para ele o indutivismo é instrumento válido na busca da verdade por meio da ciência. Mas sabe que nenhuma das tentativas de justificar o indutivismo é convincente ou satisfatória diante das dúvidas céticas que se apresentam frente à indução. Portanto, para Black, não se deve perder tempo em tentar justificar a indução; ela existe, mas justificá-la é desnecessário, impossível ou ambos.

Black diz que não podemos negar a eficiência do indutivismo, visto que a ciência se utiliza muito desse método em suas generalizações e elaborações de teorias. “Já se sustentou muito amplamente, embora não universalmente, que o emprego de raciocínios indutivos é traço característico do método científico, indispensável instrumento para a descoberta de generalizações e de leis da Ciência” (Black, 1979, p.220).  O chamado “salto indutivo”, que generaliza a idéias de alguns para qualquer ou para todos, segundo Black, é indispensável tanto na ciência como na vida cotidiana.  Negar a indução seria um absurdo. A própria linguagem carrega elementos de procedimento indutivo. “Com efeito, a própria linguagem que empregamos para falar das pessoas e dos objetos revela existência de uma crença na duração dos objetos e na continuidade de suas propriedades, que só pode assentar-se no raciocínio indutivo, a partir da experiência” (Black, 1979, p.220).

Black, porém, concorda que o argumento indutivo gera, muitas vezes, dúvidas inquietantes. Quanto a isso Black diz que “a lógica nos ensinou que a transição de “alguns”, nas premissas, para “todos”, na conclusão, é transparentemente falaciosa: se alguns homens são brancos, de modo nenhum se pode concluir que todos o sejam (...)” (Black, 1979, pp. 220-221). Black afirma que é necessário diferenciar dúvidas céticas atrozes de questões práticas e relevantes referentes à confiança que se pode atribuir à indução. É diferente a situação de um jogador numa mesa de roleta que observa que todas as vezes a bolinha cai no mesmo número do que aquele que observa o “nascer” do sol todos os dias. O jogador de roleta pode se decepcionar na próxima jogada ao ver a bolinha na qual ele confiava cair no mesmo número cair em outro. Já o observador do “nascer” do sol dificilmente se decepcionará quanto a sua expectativa. “Já dispomos de meios satisfatórios para distinguir acontecimentos aleatórios, como os que ocorrem na mesa de roleta, e acontecimentos que obedecem a leis; quando se trata de decisões práticas, seria ridículo considerar a possibilidade de que o Sol poderia não surgir amanhã” (Black, 1979, p. 221). Induzir pode ser perigoso, mas é um dos raciocínios mais utilizados na prática científica.

Leandro Carlos Ody[1]

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLACK, Max. Justificação da Indução. In: MORGEMBESSER S. (Org). Filosofia da Ciência. São Paulo: Cultrix, 1979.

MILL, John Stuart. Sistema de Lógica dedutiva e indutiva e outros textos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

 

 

 



[1] Professor do departamento de Filosofia da Universidade de Passo Fundo. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

[2] Citaremos, de agora em diante, o Sistema de Lógica somente como SL.