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Sócrates e Alcibíades: amor e paixão

“[Eros] lança sobre mim um olhar benevolente

e amigo, não enfraqueças em mim essa Arte

   de amar de que me fizeste o dom. Ao contrário,

lembra me sempre para que eu encareça cada

                           vez mais a Beleza”.

 

Alcibiádes o bem amado discípulo de Sócrates, foi o homem mais belo de seu tempo. Pertencia a mais alta nobreza ateniense, e foi tutelado de Péricles. Grande general, entretanto, causou tantos males à sua cidade quantos foram os bens. Cometeu a traição, estando ora a favor de Atenas, ora ao lado de Esparta, Demo inimigo de sua gente.

            Excelente orador, era porém dissoluto bêbado e depravado, amante dos prazeres vulgares e da luxúria, sua grande ambição era a de querer ser sempre o primeiro em tudo.

Alcibíades tornou-se discípulo de Sócrates, ouvia sempre seus discursos, nasceu desse contato constante, a grande paixão que Alcibíades lhe devotou. O amor de Sócrates a ele, entretanto, era só ternura; seus discursos e sérias advertências, tocavam-no e o comoviam até às lágrimas. Alcibíades, entretanto, era volúvel, deixava-se facilmente levar pelos aduladores, prazeres e volúpias; assim, constantemente afastava-se de Sócrates, tendo este que ir a seu encalço para trazê-lo de volta.

            Resumidamente, são estas as informações que nos traz desde a antigüidade Plutarco.

            Alcibíades nutre por Sócrates uma paixão trágica e doentia, atração e fuga a um só tempo. Os ideais socráticos o atraem, porém, ele só vê em Sócrates o reflexo daquilo que deve ser amado. A beleza autêntica de Sócrates o fascina, mas ao mesmo tempo Sócrates encarna a consciência que o acusa, que o tortura. Alcibíades reunia em si os dotes do discípulo ideal, filosoficamente bem dotado e preparado, mas que não conseguia vencer a fraqueza da ambição desmedida. Alcibíades é governado pela paixão que é estranha à razão; que deseja governar o amado; que é prisioneira que aprisiona, que oscila entre o racional e o instintivo  a tensão e o conflito de dois desejos opostos. Um tende ao bem e à verdade, outro tende à desmesura e ao poder.

O elogio de Alcibíades a Sócrates é um delírio no qual ele compara a beleza interior de Sócrates com a beleza divina, à qual ele pretende conquistar, julgando atrair e apaixonar o filósofo através de sua beleza física; passa então a ser o amante que persegue. Sócrates ao recusá-lo, aparece-lhe como dotado de uma beleza superior à sua própria, o que em sua ambição sugere a troca de uma por outra, sem perceber que só pelo seu esforço interior poderá vir a gozar não do corpo de um belo, mas da própria beleza. 2“Acreditei que ele sentia uma grande paixão pela minha florescente mocidade, e julguei que tal fato implicava para mim em vantagem e ventura: pensei que, em troca de meus favores, receberia de Sócrates toda a sua ciência (...)”.

Alcibíades, alheio à realidade, crê que a posse física do filósofo lhe dará a posse do ideal filosófico que este encerra em sua alma, assim crendo apreender o que para seu espírito, ávido de desejo sensual, é inapreensível. O que Alcibíades é incapaz de compreender é que o amor não é um bem em si mesmo, vale pelo que tende, devendo estar sempre submetido à inteligência e à razão.

            Alcibíades não consegue compreender a virtude como conhecimento, tal qual Sócrates lhe mostrava. Nele a sophrosine (sabedoria), apenas brilhou fracamente, sem nunca incendiar sua alma. Alma pobre e sem brilho que ele desnuda tragicomicamente no Banquete, beirando ao absurdo e a ingenuidade; mostrando uma personalidade complexa, capaz de amar e odiar na mesma medida. È assim que vamos encontrá-lo ao final do Banquete, uma figura triste e sem brilho, condenada pelos defeitos de caráter e ausência de moral; mesmo a despeito de tão terna e sincera confissão: 3“... o que porém é este homem aqui, o que há de desconcertante em sua pessoa e em suas palavras, nem de perto se poderia encontrar um semelhante quer se procure entre os modernos, quer entre os antigos (...) e não só de sua pessoa como de suas palavras (...). Eis aí, senhores, o que em Sócrates eu louvo” .

            Sócrates cultivava, através da filosofia, um exercício continuado de auto-conhecimento, uma análise das próprias faltas e a tentativa de superá-las. Conhecer-se a si mesmo implica em conhecer que a alma precisa ser superior ao corpo no domínio das paixões. Em sua paidéia (pedagogia) a virtude era muito mais que a simples repressão dos desejos, ela devia levar o homem a dominar paixões e oferecer a ocasião dele manifestar o domínio de si mesmo. Pois, o homem virtuoso não é aquele que renunciou às paixões, ou que conseguiu abranda-las; o homem virtuoso é o que aprimora sua conduta e pode medir, assim, o quanto de paixão seus atos comportam, pois as paixões são movimentos e, como tais, contínuas.

            A paixão socrática une indissoluvelmente logos e eros, fala filosófica e amor se mesclam em sua composição. O Eros socrático ilumina o território do discurso direcionando o pensamento filosófico para os ideais ascéticos, onde a ética, a moral e a filosofia estabelecem estreitos laços.

            Sócrates “ensinava” que o homem deve sempre procurar encontrar em si próprio: o que é bom e justo, e reconhecer que este bem é, por sua natureza, universal. Ele deve determinar por si mesmo o objetivo de suas ações e deve chegar à verdade por um esforço pessoal. Sua paixão filosófica justificava esses ideais, pois exercia sobre os jovens uma atração benéfica, forte e viril. Sócrates era um pregador da virtude, a qual identificava ao amor. Amor tal que Alcibíades, em sua embriagues sensual, jamais soube reconhecer ou cultivar. Sócrates é o amigo leal do saber, que ama os jovens com amor filosófico, único impulso capaz de conduzir à beleza, não é apenas uma paixão passageira, presa ao imediato, ao humano, ela eleva o homem para além de si e sempre em direção a si mesmo. O amor socrático, direcionado à ordem e à medida, liberta filosoficamente, promove a sabedoria e a perfeita comunhão do espírito, onde amante e amado se tornam um único, onde Eros pode definitivamente se instalar.

            Sócrates é o herói filosófico, o amante ideal, aquele que desenvolve, através da fala, o tema do erotismo docente e libertador. É o perfeito amante e o perfeito amante é o verdadeiro filósofo no mais estrito sentido pedagógico do Eros. 4“Por isso, convém que somente o espírito do filósofo tenha asas: nele a memória, conforme sua aptidão, permanece sempre fixada nesses objetos, o que o torna semelhante a um deus” na condução da alma do contingente ao essencial e eterno.

            A sedução de Sócrates começa quando este sobrepõe o amor passional, escravisante e avassalador, tal qual o amor que Alcibíades lhe tinha, ao amor que se baseia no aprendizado e no saber. Sócrates “ensinava” que o que se ama é sempre um bem para aquele que ama e, assim, de bem em bem, se chega ao Bem incondicionado, o verdadeiro Bem, o verdadeiro amigo, tanto no sentido ético, quanto filosófico. Chega-se, assim,  ao amor celestial – Urânio, que anima o trabalho docente, que confere incomparável amplitude ao pensamento, é este amor que direciona ao plano da intelectualidade, da intelectualização da paixão.

            Sócrates, como homem temperante e senhor de si, opõe-se ao que é escravo dos prazeres. Seu objeto de prazer; a Filosofia, é o mais belo e mais nobre, pois nutre-se essencialmente da amizade, e através de uma relação dialética, afetiva-intelectual promove a união entre sujeito e verdade; é comunhão ativa que une indissoluvelmente filosofia, logos e eros que através da contemplação ultrapassa o amor sensual e conquista o essencial.

            Em Sócrates a significação profunda da atitude filosófica é a de fazer ver que o filósofo é o que está desviado do sensível para facilitar o exercício da alma, para atingir esse objetivo que é alcançar o conhecimento do verdadeiro e separar o que pertence à alma do que é do estatuto do corpo. A alma conhece segundo a verdade e esse conhecimento pode-se iniciar aqui, onde pode ser parcialmente conseguido. Aqueles que não filosofam, que não esperam outras satisfações além daquelas ocasionadas pelo poder e pelo gozo sensíveis, que se deixam arrastar pelas paixões que o corpo impõe, são como Alcibíades: não conseguem entender o ideal filosófico. Não conseguem conceber que o filósofo se impõe voluntariamente uma exigência de conhecimento que o leva a crer que ao recolher-se a si, se faz alma, ascendendo, assim, a um estatuto e a um mundo que tem por natureza não participar da degenerência que atinge certamente o que se atém ao regime corpóreo. O filósofo reconhece que é o próprio Ser que será vislumbrado quando a aprendizagem permitir à alma libertar-se de sua sujeição ao sensível.

            Através dessa paixão de Sócrates se compreende, por fim, que a vida só vale para aquele que vê através da inteligência da alma liberta das torpezas do corpo. Pois, apenas nesse estágio se atinge a visão absoluta e se pode ver o que deve ser visto e não mais sombras, pois se contemplará a autêntica beleza, anteriormente apenas vislumbrada.

“... é quando alguém nesse mundo vê beleza. Recorda-se então da beleza verdadeira; recebe asas e deseja voar para o alto; não o podendo, porém, dirige o olhar para cima esquecendo os negócios terrenos e dando, desta maneira, a impressão de delirante. De todos os entusiasmos, este é o melhor e da mais perfeita  origem; saudável para quem o possui e dele participa. Quem é atingido por este delírio ama o que é belo e chama-se amante4”. Desse modo, o amor no pensamento filosófico de Platão, necessariamente expresso por Sócrates, é muito mais que uma emoção, um sentimento, é um caminho que direciona a alma à conquista da vida eterna. Logo, falar de amor em Platão é falar em virtude, equilíbrio, sabedoria e beleza; em seu pensamento amor e ordem estão unidos, tanto no plano dialético, quanto no comtemplativo intelectual.

            A fala do amor, em Platão, é fundamentalmente mítica, o próprio amor que ele concebe é mítico, seja personificado como a própria imagem do filósofo, um ser que busca a perfeição mediando a ignorância e o saber, um daimon apolineo, o qual Sócrates encarna com perfeição; seja o aparente desequilíbrio dionisíaco, expresso na paixão enlouquecida de Alcibíades que contrasta com a calma e serenidade do amor “celestial” que impulsiona o filósofo. O amor é, em Platão, sempre um dom: 6“A maior sabedoria humana ou loucura divina que um deus pode oferecer a um mortal”.

Dalva de Fátima Fulgeri

Licenciada em Filosofia - Unisantos

 

 BIBLIOGRAFIA:

Platão, Obra Completa. Pará, U. F. P., 1973. Trad. Carlos Alberto Nunes, (Col. Amazônica).

Plutarco, Vidas Paralelas. São Paulo: Edit. das Américas, 1954.

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Citações:

1-      Platão, Fedro, p. 160

2-      Platão, Banquete, p. 121

3-      Platão, Banquete, p. 52

4-      Platão Fedro, p. 154

5-      Platão Fedro, p. 154/5

6-      Platão, Fedro, p. 82

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